Steven Spielberg tem o seu mais recente The Fabelmans a bater à porta dos ecrãs de cinema do mundo — e pronto para os Oscars. Em formato coincidente, dois dos seus clássicos filmes voltaram também ao cinema e ao maior formato que este tem para oferecer [nas duas primeiras semanas do mês, em cópias IMAX]. E, pela ligação temática, é interessante pensar em como The Fabelmans, um filme sobre a sua própria vida e família, vai tão marcadamente ao encontro da ligação do realizador com a sua veneração twainiana face à adolescência e infância. Depois de um excelente remake do West Side Story (2021), e num momento em que parece voltar a um nível de performance como já não o víamos há anos, este é o momento ideal para pegar em dois dos filmes, de entre uma carreira farta, que marcaram aquilo que Spielberg faz melhor: o temor de Jaws (Tubarão, 1975) e reverência de E.T. the Extra-Terrestrial (E.T. – O Extra-Terrestre, 1982).
Mas comecemos pelo facto destes filmes sequer voltarem a agraciar os ecrãs de cinema contemporâneos. Por um lado, as inovações na tecnologia de exibição e 3D permitem que se possam ver estes filmes — já de si próprios muito dados a provocar os sentimentos felizes de comfort food. Por outro lado, a indústria de exibição ainda está a sentir os efeitos da pandemia e nada melhor do que a celebração de dos 40 anos de E.T. para criar um conceito de evento que chame as pessoas ao cinema apelando ao seu apego nostálgico e juntando uma pitada de relevância face à tecnologia. Com as estreias ainda sem os números de anos anteriores, o chamariz é claro: dois filmes que tanto na estreia como ao longo das décadas se tornaram em filmes favoritos de públicos mundo fora e que “agora podem ser vistos como nunca foram” pelas capacidades tecnológicas do presente, usando a tecnologia IMAX e 3D (aprovadas pelo realizador) para sublinhar a imersividade dos filmes. Jaws responde particularmente bem ao uso de um artifício de criação de profundidade dado o pendor da fotografia de Bill Butler para criar a ilusão de olharmos não para uma tela mas através de uma janela — o deep focus que Spielberg traz dos anos 1940 e 1950, porventura noutro gesto nostálgico..
Os traços largos de E.T. são fáceis de traçar. É a história de um miúdo que gosta de jogar Dungeons and Dragons e andar de bicicleta, mas que ao encontrar um alienígena perdido em seu quintal decide protegê-lo contra as autoridades para o ajudar a voltar para casa. Um filme estreado no verão de 1982 que se tornou no maior êxito de bilheteria do ano, conquistando quatro Oscars e nove nomeações, incluindo Melhor Filme. É o urtext que resulta em decalques nostálgicos como Stranger Things e um exemplo do tipo de cinema que é simbólico das gerações centrais da cultura actual. O panorama mediático está repleto de ofertas nostálgicas, há uma clara vontade de evitar o original e voltar ao que conhecemos e aos lugares reais ou imaginários onde nos sentimos bem. Não será demais, embora não deixe de ser um pouco “psicologia de divã”, pensar em como as crises (económicas, climáticas, políticas,…) dos últimos anos têm criado uma vontade que sempre se espalhou no cinema de Spielberg: uma procura constante de recapturar os prazeres de infância. Mas o grande génio do realizador americano, marcado para sempre pela associação nos anos 1970 com Francis Ford Coppola e George Lucas, é a sua capacidade para contar uma história que agarra a audiência pelo colarinho.
A aura de raridade junta-se à particularidade de serem dois filmes clássicos, que se tornaram objecto de fascínio, de estudo, de sucesso e de nostalgia twainiana, como só o Spielberg perceberia e realizaria.
Baseado no livro (já de si um best-seller) de Peter Benchley, Jaws é sobre um tubarão assassino que desencadeia o caos numa zona de praia em Long Island. É considerado o primeiro (o protótipo, no sentido moderno da coisa) blockbuster de verão. Foi nomeado aos Oscars, tendo vencido três, incluindo melhor banda sonora, e mantém-se um filme capaz de cativar as imaginações de quem o vê, cinco décadas depois. Jaws é um filme delicada e precisamente construído que pega no terror do invisível e na ideia do herói (quase) solitário contra a autoridade gananciosa e cega; equilibrou as suas emoções com uma atitude cética em relação à liderança política. Amity é salva por diferentes versões de heroísmo masculino, representados no homem de ação que já não está na flor da idade de Quint, o sensato e científico Hooper e o relutante mas pragmático Sheriff Brody. Mas, como indiquei acima, a palavra-chave é temor. O medo e a tensão são construídos cena a cena e o trabalho de composição e edição é ajudado pela exímia música de John Williams.
A reverência de que falava acima é tangível na emoção presente nos filmes de Spielberg, muitas vezes expressa como admiração-tornada-muda face a maravilhas tecnológicas, mas não só:nada o pode definir melhor do que a “Spielberg Face”, uma expressão recorrente no cinema de Spielberg em que alguém olha (normalmente para algo que surge de cima, mas pode estar simplesmente em frente e ao longe) e a câmara se fixa no conjunto de emoções que lutam pelo domínio: comoção, assombro, medo e submissão. E é essa mistura de maravilhamento e terror que traz uma magia inesperada ao cinema deste autor. E.T., claro, é um filme-expiação em que o realizador pega no seu drama pessoal enquanto jovem de pais suburbanos divorciados, recriando o drama da separação de uma família e o desejo de felicidade de uma criança em imagens emblemáticas da cultura ocidental (se não mundial). Seria difícil não encontrar quem não reconhecesse a referência de “E.T. phone home” ou da imagem de crianças a voar em direção à Lua de bicicleta. É uma emoção quase pirosa demais, que noutras mãos cairia no melodrama potencialmente barato.
E.T. é predicado na ideia de tensão e alívio, mas onde a ideia de um alienígena poderia evocar filmes de terror e medo no cinema, aqui evoca solidão e vulnerabilidade onde o personagem que é estranho ao planeta não é considerado como uma ameaça mas como o gatilho de uma aventura. O alienígena não é um invasor, mas algo mais perto do animal perdido e a missão do rapaz é ajudá-lo. A aventura é o ingrediente Mark Twainiano, e o resultado é uma narrativa de afinidade e não de conflito. Em vez de pesadelos no escuro, a promessa de bravura face ao perigo.
Já Jaws alimenta activamente os nossos medos e anseios, sublinhando o desamparo dos vítimas e a impotência dos espectadores: nós e a população, bem como a figura de autoridade que coloca sobre os seus ombros a necessidade de resolução. O oceano é apresentado como como veículo para a aventura mas como poço e origem de pesadelo.
Saliente-se, assim, o regresso destes clássicos, embora provocado por questões económicas que se prendem pela vontade de chamar audiências às salas de cinema para eventos especiais — um gesto que recorda quando a Disney voltava a editar filmes específicos para o mercado do home video, retirando-os do proverbial vault. A aura de raridade junta-se à particularidade de serem dois filmes clássicos, que se tornaram objecto de fascínio, de estudo, de sucesso e de nostalgia twainiana, como só o Spielberg perceberia e realizaria. Não é por acaso que Jaws é o primeiro blockbuster, embora seja também uma lição de cinema e exemplo de como algo tão simples — uma narrativa sobre um tubarão predador numa praia em tempo de férias — e com efeitos práticos já com 47 anos, ainda consegue prender o espectador da mesma maneira, pela forma como Spielberg trabalha o ambiente de temor presente no filme. Aqui, a escolha de esconder o “vilão” durante a maior parte do filme só contribui para o seu suspense e para nunca se sentirem as décadas do filme (“It’s not the years, it’s the mileage”). No caso de E.T., por muito que o CGI actual tenha eclipsado o uso de efeitos práticos deste filme, o seu peso nostálgico — e a sua qualidade de urtext assinalada acima — permanece, mas para além dos detalhes técnicos, mantém-se a capacidade de contar esta história. Spielberg fez o que toda a boa ficção-científica (ou de fantasia) faz e sublimou questões de crescimento e de amizade que ainda ressoam hoje em dia. Se experimentarem rever E.T., especialmente se a lua em 3D estiver tão perto que parece que se pode tocar, será impossível não se comoverem com a simplicidade desta história, replicando uma “Spielberg Face”.
Este texto foi escrito na sequência da reposição em IMAX tanto de E.T. como de Jaws, a que se seguirá, a partir do dia 22, a reposição de Avatar (2009) de James Cameron.