Oh, it’s a long, long while from May to December
But the days grow short
When you reach September
When the Autumn weather turns the leaves to flame
One hasn’t got time for the waiting game
Oh, the days dwindle down to a precious few
September, November
And these few precious days
I’ll spend with you
These precious days
I’ll spend with you
Kurt Weill e Maxwell Anderson, September Song
Muitas das histórias de amor da Hollywood dos anos 50 passaram por Itália (e, muito apropriadamente, por Itália passou também o casamento em crise do casal Ingrid Bergman e George Sanders no filme de Roberto Rossellini), mas é possível que tudo tenha começado em September Affair (Paraíso Proibido, 1950), de William Dieterle. Itália foi-se habituando a vestir um sem número de clichés nesses cenários de idílio romântico, a descoberta do lugar onde os americanos (e, em particular, as americanas) se habituaram a encontrar uma liberdade própria que lhes permite abrir o coração a aventuras que lhes estariam vedadas na sua terra natal.
Manina Stuart (Joan Fontaine) e David Lawrence (Joseph Cotten), que se cruzam casualmente na entrada de um edifício em Roma, David segurando a porta para Manina passar, são duas pessoas com muito pouco em comum. Partilham apenas o facto de se encontrarem numa fase da vida em que não esperam já muitas surpresas, acomodados no lugar que encontraram para si – ele, um industrial bem-sucedido, marido e pai, e ela, uma pianista que serenamente pratica o seu métier, ainda que não tendo alcançado a total realização profissional. Roma é a cidade certa para o coração romântico e solitário de Manina. Quando ela levanta o bilhete de avião que a levará a Nova Iorque, o funcionário mostra-se invejoso, querendo ele próprio viajar para os EUA. Mas Manina limita-se a afirmar que aquilo de que ela gostaria mesmo era de não viajar e ficar para sempre em Roma.
Será no avião que David e Manina acabam por se conhecer verdadeiramente, numa conversa de circunstância breve, mas que flui desabridamente. O avião padece de alguns problemas técnicos e acaba por ser desviado para Nápoles, algo que ambos vêem mais como uma oportunidade do que como uma contrariedade. Torna-se claro que nenhum deles tem especial vontade de deixar Itália e aí encontram algo que os une. Será, pois, num detour que estes dois seres se encontrarão, numa urgência de aproveitar um último êxtase que a vida possa oferecer-lhes, numa altura em que essa possibilidade não era já esperada. Um encontro em Setembro, a meio caminho entre a juventude e a velhice, entre Maio e Dezembro, como refere a canção de Kurt Weil e Maxwell Anderson que eles escutam depois de um almoço em que tudo parece ser perfeito, o que torna a partida (e consequente separação) difícil. No rosto de Manina, enquanto ouve a canção, está aquilo que adivinhamos serem pedaços de relações afectivas do passado, momentos felizes e tristes, todos os meses de Maio e a Setembro a transparecerem do seu semblante. A forma relaxada como eles se comportam demonstra bem que a vontade de ambos é mesmo perder o avião – “Baby, you’re gonna miss that plane” podia ser uma citação deste filme. Não será afinal o enamoramento maduro uma conversa infindável? O que nos relembra, em contraponto, o casal que Mark e Joanna observam em Two for the Road (Caminho para Dois, 1967) – “What kind of people sit like that without a word to say to each other? Married people”. A dona do restaurante queixa-se de que os turistas estão sempre apressados, sempre pressionados pelo relógio. Manina e David não são turistas normais, eles vão-se deixando inebriar pelo prazer daquele almoço, da paisagem, da música, numa revolta contra o maldito relógio que tantas vezes decide o destino do amor, num instante em que tudo se ganha e tudo se perde. “Let’s be unconventional!” – é o grito de liberdade e entusiasmo de David.
A intensidade visível no rosto de Manina, ao interpretar o tema de Rachmaninoff, permite pressentir a dor própria do fim de uma história de amor.
Mas se esta relação flui como uma conversa ao sabor da música e do Chianti, é num momento sem palavras que testemunhamos a paixão que os une. No hotel, David acompanha Manina ao quarto, vira costas, subindo as escadas, e Manina regressa à porta do quarto. E há um breve segundo, não mais, em que David hesita e olha para trás. Desnecessário acrescentar o que quer que seja a esse momento fugaz, uma troca de olhares na obscuridade. Será através de rebuscadas contorções narrativas, tão próprias do melodrama, que eles terão uma oportunidade de anonimidade, de cortar as amarras com o passado, quando o avião em que deviam ter seguido viagem acaba por despenhar-se e eles são dados como mortos. Como eles próprios dizem, passam a ser fantasmas, contemplando o mundo dos vivos, mas vivendo num mundo à parte. Ou será que eles contemplam, na verdade, o mundo dos mortos, já que eles redescobriram a vida, ao redescobrir o amor? David encontra em si uma veia de galã que talvez o próprio desconhecesse, mergulhando no beijo a Manina. “That was entirely premeditated”. Manina responde ao arrojo, dizendo-lhe “I didn’t think it was gravity.”
Joseph Cotten poderá parecer um protagonista romântico improvável, ou talvez andemos apenas desatentos aos filmes que a dupla Cotten/Dieterle nos deu, títulos como I’ll Be Seeing You (Com Todo o Meu Coração, 1945), Love Letters (Cartas de Amor, 1945) ou Portrait of Jennie (O Retrato de Jennie, 1948). O seu David é absolutamente cativante enquanto homem que, sem dar conta e sem o procurar activamente, se deixa contagiar pela paisagem italiana, por um certo modo de vida relaxado, longe da ânsia de produzir e criar lucro. Ironicamente, o encantamento é tal que David e Manina acabam por habitar um lugar só seu que por vezes os deixa imunes a parte da beleza que os rodeia, a ponto de o guia que os acompanha na visita a Pompeia se mostrar algo desolado pelo facto de, terminada a visita, o casal não fazer mais do que admirar o pôr-do-sol, em lugar de mostrar o seu maravilhamento pelas impressionantes ruínas que acabava de visitar [mais uma vez somos levados a relembrar Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954) e a imagem de Ingrid Bergman, solitária, profundamente perturbada pela visão dos dois amantes num abraço de centenas de anos].
Sabemos, porém, que essa existência encantada não poderá prolongar-se durante muito tempo. Os sinais vão surgindo, ameaçando uma perturbação do paraíso. Se Manina ignora os comentários da sua professora de piano, Maria (Françoise Rosay), única pessoa ciente da condição do casal, lamentando o facto de Manina estar a passar ao lado de uma carreira que poderia ser brilhante, já David vai sendo lentamente resgatado para uma existência produtiva, a promessa de voltar a ser uma peça com lugar próprio na engrenagem económica. Manina, enquanto mulher, consegue conceber uma existência votada exclusivamente ao amor, vivendo de e para o amor. David, embora tente fazê-lo, vai sentindo uma frustração progressiva, tomado pelo ennui de uma existência incompleta. Maria é espectadora e quase oráculo, afirmando que a decisão do casal, de viverem solitariamente, na condição de fantasmas, atirando fora duas vidas, não é mais do que um pacto de suicídio. David quer regressar à “vida”. E à “vida” regressará também Manina, resignadamente, porque o feitiço (o amor?) foi, a dado ponto, quebrado. Essa é uma verdade revelada num fugaz momento, tal como acontecia na cena dos olhares que se trocavam quando David deixava Manina à porta do quarto. Manina contempla, deslumbrada, a paisagem de Capri, algo que ela pretende partilhar, mas o olhar de David é de desinteresse, regressando aos desenhos de engenharia do livro que tem à sua frente.
Manina havia prescindido da sua carreira antes mesmo de procurar a consagração, mas ela regressará ao palco, em Nova Iorque, tendo a sua apoteose justamente com a peça musical que o ouvido atento identificará como verdadeiro hino do melodrama, o Concerto n.º 2 para piano e orquestra de Rachmaninoff, o mesmo que ouvimos em Brief Encounter (Breve Encontro, 1945) de David Lean, The Seventh Veil (O Sétimo Véu, 1945) de Compton Bennett ou I’ve Always Loved You (Sempre em meu coração, 1946) de Frank Borzage. A intensidade visível no rosto de Manina, ao interpretar o tema de Rachmaninoff, permite pressentir a dor própria do fim de uma história de amor. Reconhecendo que a fuga ao passado deixou de ser possível, Manina e David despedem-se no aeroporto, ela levada para longe dele justamente no avião que tinha unido as suas vidas, restando-lhes apenas a memória daquele Setembro como abrigo no Inverno que se adivinha.