Gosto de coincidências. Com um intervalo de apenas alguns dias estreou nas salas comerciais portuguesas o mais recente filme de George Miller, Three Thousand Years of Longing (Três Mil Anos de Desejo, 2022), e chegou-me a casa um livro comprado por impulso a um alfarrabista de Facebook. Esse livro intitula-se Análise Estrutural da Narrativa – seleção de ensaios da revista “Communications”. Trata-se da tradução em português do Brasil de um volume homónimo francês (de 1966), que compõe o primeiro volume de uma série dedicada às ciências da comunicação da editora Vozes, onde estão coligidos textos de Roland Barthes, Umberto Eco, Christian Metz, Tzvetan Todorov, entre outros. Ontem, ao sair da sessão do filme de Miller, quis repassar rapidamente as páginas do livro, porque me pareceu que o filme se apresentava como uma espécie de espetáculo popular sobre os debates que animaram os narratologistas dos anos 1960, em particular a herança do formalismo russo (Propp), a dita Escola de Praga e o entusiasmo estruturalista de Lévi-Strauss e Barthes. Aliás, mais do que ler o livro, passei-lhe os olhos (como faz a personagem de Tilda Swinton no filme), e a partir de alguns sublinhados deixados pelo anterior proprietário, e pelas memórias vagas e ambulatórias das aulas do professor João Maria Mendes, comecei a recordar-me um pouco da “sintagmática” com que estes teóricos pretendiam analisar as fórmulas narrativas.
O primeiro ponto que o professor Maria Mendes sublinhava era que os estudos Propp se aplicavam apenas e só a um conjunto muito limitado de contos populares russos, e que as conclusões sobre as variações narrativas identificadas não deviam ser extrapoladas para toda a literatura (e menos ainda para outras formas discursivas). O mesmo era válido para a investigação de Greimas sobre as narrativas míticas. E se Barthes e Levi-Strauss alargaram o escopo das suas análises, tornando-as quase abstratas (porque só assim se universalizariam), o certo é que perderam também a sua aplicabilidade esquemática. Mas, como o cinema popular norte-americano sempre absorveu os modelos literários (o policial, a novela gótica, as histórias de espiões, as fábulas, etc.), é natural que os únicos que se continuam – hoje em dia – a interessar-se por essa abordagem estruturalista sejam, nem mais nem menos, os professores de argumento cinematográfico. O sucesso de figuras como Robert McKee ou William Goldman e dos seus livros sobre escrita de argumento resulta da mera declinação didática do pensamento dessa escola dos anos 1960.
Visto por esta perspetiva, Three Thousand Years of Longing é uma paródia divertida a esse esquematismo ao tornar-se numa espécie de sonho molhado do estruturalista desprevenido (sublinhe-se a ideia de sonho). De facto, esta é a história de uma narratologista (Swinton) que encontra um génio da lâmpada (Idris Elba) que lhe concede três desejos. Só que, sendo ela uma académica dedicada à investigação discursiva, começa logo a reconhecer os padrões narrativos que se escondem por detrás da trama, questionando-a, antecipando-a, ou provocando-a. Daí resulta que o génio lhe irá contar as anteriores tentativas falhadas de satisfazer três desejos aos proprietários dos frascos onde foi residindo ao longo dos três mil anos do título. Aí, este conto que já era meta-literário (sem nunca se tornar explicitamente meta-cinematográfico – o que é surpreendente) por conta da profissão da heroína, passa a ser também sobre a arte de contar, sobrepondo-se assim uma terceira camada narrativa (à qual se sobreporá, ainda, uma quarta, quando certa personagem da história do génio é um sultão apaixonado por um contador de histórias).
Three Thousand Years of Longing é uma espécie de sonho molhado do estruturalista desprevenido.
Esta solução de matriosca mítica oferece um rico leque de possibilidades estruturais e faz do filme um exercício lúdico sobre a variação. Entenda-se aqui variação tanto do ponto de vista narrativo, como do próprio universo cinematográfico, isto é, o filme surge como uma ode ao cinema clássico de aventuras pelo Médio Oriente, fazendo lembrar The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1940) – o filme com Sabu e Rex Ingram a fazer de génio. Essa dimensão lúdica identifica-se no modo como a dimensão formalista se explicita de tal modo que quase se torna em puro signo. Se levarmos à letra o meta-estruturalismo de Barthes (“propõe-se distinguir na obra narrativa três níveis de descrição: o nível das funções, o nível das ações e o nível da narração.”), no filme de Miller, a garrafa é pura função; a ação, no primeiro nível, está praticamente esvaziada; sendo por isso, intensamente narrativo; e no segundo nível a coisa inverte-se, e a ação toma conta do discurso. Posto doutro jeito, a abertura da “lâmpada” espoleta – no primeiro nível narrativo – um encontro verborrágico entre duas personagens que, num pequeno espaço (um quarto anónimo de hotel onde mal cabe o agigantado génio), simplesmente se entretêm com histórias da carochinha – algo bem improvável para um filme mainstream produzido em Hollywood no século XXI – ficando para segundo plano (narrativo e hierárquico) a ação propriamente dita.
Os dois primeiros atos, onde o contar é a razão de ser e de estar das personagens principais, é o que de mais interessante se encontra no filme. Aí opera-se uma genuína recuperação de uma certa épica que o cinema clássico norte-americano soube construir a partir do imaginário d’As Mil e Uma Noites. A fluidez narrativa, o acumular de episódios e personagens, a dimensão moral e um certo gosto pelo encantamento fantasista do Médio Oriente (aqui não chegou o debate da apropriação cultural) fazem de Three Thousand Years of Longing uma justa – ainda que nostálgica – homenagem a essa produção que, imagina-se, George Miller terá visto enquanto pré-adolescente nos anos 1950 (o realizador celebrou este ano o seu 76.º aniversário). Só que depois, no terceiro e último ato, as histórias do génio e as perguntas da narratologista esgotam-se e um primeiro desejo é pedido, alterando o esquema episódico e fragmentário do filme, virando-o para o drama romântico. Essa súbita alteração (que é de tom, mas é também geográfica – as personagens mudam-se para Londres), embora curiosa e surpreendente, traz água no bico.
Miller não resiste ao desejo de fazer desta fábula um conto moral virado para a contemporaneidade (não lhe basta uma reflexão universal sobre o bem e o mal). O que daí resulta é uma solução bastante forçada, que associa os poderes mágicos do génio às leis da eletromagnética, sendo as capacidades mágicas dele inversamente proporcionais aos avanços nas chamadas tecnologias da informação (televisão, telemóveis, internet, etc.). Para quem não percebe, as personagens dizem-nos claramente:“os avanços científicos esvaziam a nossa necessidades de efabulação”. É um argumento bem conservador de velhinho anquilosado que acusa as parafernálias digitais de todos os males do mundo (inclusive a capacidade de fantasia). Pior ainda quando tudo em Three Thousand Years of Longing é pastiche digital do que foram, uma vez, grandes exercícios de direção de arte, como os fez William Cameron Menzies.
Só que, apesar de tudo, há um paradoxo nos planos finais do filme que se prende – lá está – com questões de “set design”. Nessa última cena, as duas personagens principais encontram-se num jardim público londrino, só que há uma estranheza que perpassa o espaço (as cores muito saturadas, o verde demasiado liso, o azul quase plano). Eis que se torna claro: aquela colina verde sobre céu azul é, nem mais, nem menos, que o “papel de parede” padrão de um computador com sistema operativo da Microsoft. Afinal, tudo desemboca aí, nessa espécie de grau zero da paisagem – o happy end feito signo digital. Sempre lhe resta uma ponta de ironia. Ainda bem!
★★☆☆☆