Die bitteren Tränen der Petra von Kant (As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, 1972), de Rainer Werner Fassbinder, começou por ser uma peça de teatro da autoria do realizador que entretanto a passou a filme através do seu olhar simultaneamente de cena e de cinema. O realizador admitiu encenar as suas peças como filmes, assim como o fez com o cinema, tratando-o como teatro. Esta peça é a transposição pessoal de Fassbinder da relação com o seu amante Günther Kaufmann e também do seu dedicado assistente Peer Raben.
A abrir o genérico vemos gatinhos numas escadas que nos prendem a atenção; e esta não é uma abertura nada inocente. Tem-se apontado a estreita inspiração no cinema de George Cukor, em particular com The Women (As Mulheres, 1939), e o seu surpreendente genérico em que faz analogias entre alguns animais e as personagens. Depois da distracção animal entramos logo no quarto de Petra von Kant, de onde não sairemos durante as duas horas e quatro minutos que dura o filme. Uma cama impõe-se no décor e será palco para a dominação dos sentimentos que será posta em cena. Verdadeiro huis clos rodado ao longo de dez dias com Margit Christensen (Petra von Kant), Hanna Schygulla (Karin), Irm Hermann (Marlene), nos papéis principais.
O jogo teatral será assumido e traduzido com fulgurante extravagância, à qual Fassbinder acrescenta tudo o que o cinema permite para desencadear imagens e agitar os corpos das mulheres que ocupam todo o filme: não há homens aqui. Não escapamos ao décor do quarto de Petra onde ficaremos presos ao hedonismo reinante, manequins, espelhos, uma pintura de Poussin (Midas e Baco), um tapete felpudo, gira-discos, bonecas, todo um conjunto de acessórios que combinam com a sofisticação de Petra, estilista de moda. Perto dela gravita Marlene, assistente para todo o serviço, empregada, desenhadora, figura muda, esfíngica, presença-sombra que não arredará pé. Mankiewicz é referido no início, a propósito de uma carta que Petra dita a Marlene, piscadela de olho a outro mestre – a ambiguidade e o espelho de All About Eve (Eva, 1950), outro filme de mulheres.
Petra entra a matar e impõe-se dominadora, fria e irascível agita-se na sua gaiola dourada. Marlene serve-a de forma subserviente, tem uma posição silenciosa e atenta – estamos sempre a vê-la, esguia e longilínea alimenta a estética do filme e pontua o drama do silêncio com pose. Logo no início, dança com a patroa, “Smoke Gets In Your Eyes”, dos Platters, e o lírico romantismo da melodia esbarra nos corpos que se movimentam em perfeita estilização.
Tudo se compõe e desenha no cenário e no corpo das mulheres, o ambiente acorda para o drama e Petra sai da cama. A veia dramática de Fassbinder nasce na figura da pouco inocente Petra que se dará à palavra, ao testemunho, à força das verdades exibidas, fruto da experiência que alimenta o desencanto da sua vida e um casamento falhado. A primeira troca verbal com a personagem Sidonie (interpretada por Katrin Schaake) serve logo para a recepção testemunhal de Petra e para fazer a palavra circular abundantemente. Fassbinder faz enquadramentos de mestre que colocam, a certa altura, Petra no centro do plano ladeada pelos seus guardiões manequins na entrega confessional. Estes manequins serão, mais tarde, descobertos e deitados em intimidade: intromissões acrescentadas ao rodopio das emoções que se libertam sob múltiplas faces, personagens e objectos que entram na frenética do drama. Fassbinder aproveita tudo para sugerir o escape do desejo, numa mise en scène tensa, palavrosa e carnal.
Karin/Hanna Schygulla será introduzida a Petra por Sidonie e muito depressa vai ganhar as suas graças, estender-se na sua cama, mudar-se para sua casa e logo tomar o coração da excêntrica estilista – melo, melo! Petra ficará perdida de amores por ela, para o lado de Karin levantam-se outros interesses. A escalada emocional é implacável e fica depressa exposta, não há muito espaço para alongamentos. As personagens são sugadas por um canal que se alimenta de um esquema dependente e primário que se alterna: o dominador vai passar a dominado. Há ainda uma ideia de osmose oriunda de Persona (A Máscara, 1966), de Ingmar Bergman, quando Fassbinder coloca Petra e Karin num plano, tal águia de duas cabeças, quando estas se cruzam.
Fassbinder gosta do efeito de choque e não deixa muito espaço ao drama, só o que, semelhante a actos, (cinco cenas), marcará a progressão e a passagem do tempo far-se-á por elipses. A atmosfera do décor quarto-sala, torna-se um sugador de sentimentos e palco único que alberga estas mulheres que se dão ao jogo do desejo, do interesse e do dever… O lugar da palavra continua a ter espaço privilegiado, memórias, dramas familiares, gostos e tendências, álgebra ou letras, a ginástica e a disciplina, o que se prefere. Um rol de banalidades, profundidades, o supérfluo, as confissões, tudo ferve no caldeirão. Petra e Karin seduzem-se, peitos cónicos, corpetes de pérolas, plumas, copos de champagne, cabeleiras postiças, luzes baixas; o artifício é mestre nos adereços, e claro, no exuberante guarda-roupa. A densidade está do lado da palavra, do drama convulsivo que se escapa, de um campo visual onde habita uma bela arquitectura melodramática conectada à herança de Douglas Sirk. O verniz irá estalar, enquanto o drama se manifesta na gravidade da representação, no efeito dos sentimentos e na pose aqui mestra.
O campo visual está dentro do espaço que é concentracionário de um teatro-cinema em movimento real, visceral e amargo. O tempo do cinema transborda para uma realidade extraordinária, suspensa, quase irreal, meio sonâmbula e muito psicológica. Petra transforma-se, Karin transforma-se, Marlene, quase que não se transforma… as transmutações parecem um canto perverso de sereias que sentem demais, choram demais, silenciam demais – não ser amada é duro e ser-se desprezada terá consequências.
Vaidade, poder, humilhação tudo passa por aqui, o gráfico vai mesmo subir. Fassbinder disseca os sentimentos, não perdoa – vê-se reflectido em Petra, reajusta-se à imagem do mundo onde foi de mandatário a mandado. O cinema vem dar movimento e relevo ao espaço, recorta-o com zonas de sombra e luz escassa, mostra corpos reais em cena, corpos pictóricos nus, mistura-os, confunde-os, numa mitologia moderna viva e descarnada. O cinema vai fechar o quadro, animá-lo em travellings, modular figuras e espaço, fixá-las – e continuamos a não ter saída do quarto-sala. Petra vai ser o centro da turbulência, o grau intenso do drama narcísico e passional. Virá a rejeição e o momento em que as lágrimas vão ser muito amargas e as palavras cortantes vão reflectir o desejo, a angústia – e muita dor pelo meio e por todo o lado.
Fassbinder teatraliza os momentos mais dolorosos, centra-se no décor e a cama desaparece, o tapete felpudo ganha o chão onde Petra se lança com toda a amargura: bebe, culpabiliza, vitimiza-se, bebe. Na dor tudo vai à frente, a filha, a mãe, Sidonie, um serviço de chá estilhaça-se com raiva.
Por fim, quando parece que tudo acalmou e as coisas vão ser diferentes, Fassbinder acrescenta mais uma nota. Marlene responde a Petra. O gira-discos volta a tocar e “The Great Pretender”, dos The Platers, enche romântica e ironicamente o espaço e a cama centraliza-se no décor.
As Lágrimas Amargas é uma peça apetecível de ser encenada e parece manter uma terrível longevidade. Guardo a memória do espectáculo encenado e representado por Monica Calle (no papel principal), onde as actrizes – Ana Ribeiro, Cristina Carvalhal, Manuela Pedroso, Mónica Garnel e Patrícia Silva – se sentavam nuas entre o público e depois “vestiam” as personagens entregando-se com muito corpo e alma ao jogo do desejo e da possessão no espaço frio, no inverno (se bem me recordo) da Casa Conveniente, coberto de gravilha. A proximidade com o espectáculo era muito física e colocava o espectador dentro da experiência devastadora do drama. Por sua vez, François Ozon fez uma recente homenagem ao seu admirado Fassbinder com o filme Peter von Kant (2022), em que a Peter passa a ser um cineasta no jogo dramático de sedução e poder.
As Lágrimas Amargas continua a ser um excêntrico melodrama com uma vitalidade rara no jogo dual entre lucidez e loucura (muita força e vulnerabilidade, uma queda vertiginosa, mais um banho de dor). E a música do final fica como nota ultra romântica e muito sugestiva. Muito cinema e teatro anda por aqui, uma atmosfera de panela de pressão à Tennessee Williams e, tal como dizia Fassbinder, “há um momento em que os filmes têm de deixar de ser filmes”.
Oh-oh, yes, I’m the great pretender
Pretending that I’m doing well
My need is such I pretend too much
I’m lonely, but no one can tell
Oh-oh, yes, I’m the great pretender
Adrift in a world of my own
I’ve played the game but to my real shame
You’ve left me to grieve all alone
Too real is this feeling of make-believe
Too real when I feel what my heart can’t conceal
Yes, I’m the great pretender
Just laughin’ and gay like a clown
I seem to be what I’m not, you see
I’m wearing my heart like a crown
Pretending that you’re still around
Too real is this feeling of make-believe
Too real when I feel what my heart can’t conceal
Yes, I’m the great pretender
Just laughin’ and gay like a clown
I seem to be what I’m not, you see
I’m wearing my heart like a crown
Pretending that you’re still around (still around)
“The Great Pretender“, The Platers
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant e os vários outros filmes de Rainer Werner Fassbinder estão em exibição, em cópias digitais restauradas, de 6 a 26 de outubro, no cinema Medeia Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre, no Porto.