“Estou frequentemente cansado de morte de representar a natureza humana, sem tomar parte dessa mesma natureza humana.” Esta frase de Thomas Mann, que surge como intertítulo a fechar Warnung vor einer heiligen Nutte (Cuidado com Essa Puta Sagrada, 1971), ajuda a compreender como esta obra de Fassbinder, “auto-biográfica, behind the scenes, making of” — estas são as etiquetas que se colaram ao filme — procura, fundamentalmente, mais do que revelar um como-é-que-tudo-se-passa, problematizar este desdobramento entre criar e viver, entre a apresentação e a re-presentação da brutalidade e da violência, ou a tensão entre um impulso colectivo e a forma individual de navegar esse impulso.
Em Abril de 1970, Fassbinder e a sua “família teatral e cinematográfica” filmavam Whity (1971) no sul de Espanha. A coisa correu muito mal, abusos, violência, tensão sexual, drogas, alcool. Cinco meses depois, Fassbinder estava a desdobrar esse tecido emocional e brutal, que a equipa havia vivido, em Cuidado com Essa Puta Sagrada. Sascha (Fassbinder), um dos produtores do filme, que quando não está a gritar está a emborcar cubalibres, encontra-se num hotel em Espanha, juntamente com uma equipa de cinema, esperando a vinda do santo desiquilibrado realizador, Jeff (Lou Castel), e do material técnico para que comecem as filmagens do filme “Patria o Muerte”. Deste microcosmos de artistas em espera e desespero fazem parte Hanna Schygulla, Margarethe von Trotta, Ulli Lommel, Magdalena Montezuma, Werner Schroeter e o protagonista do filme, o actor que observa tudo a partir de uma certa posição cautelar – pelo menos até certo momento – Eddie Constantine.
O filme evolui, habilmente, da imobilização estilizada corrente no Anti-Teatro de Munique – por exemplo, na cena inicial, um inerte Schroeter conta-nos, sob um fundo celeste, a história de decepções e falsas aparências de Goofy e do anão Wee Willy – até à aceleração de breves cenas de diálogos entre esta “comuna” de artistas que se vão acumulando, por vezes, de forma pouco linear. Cuidado com Essa Puta Sagrada é assim um filme cujo copo vai aos poucos transbordando até partir – imagem recorrente nas incontáveis bebidas que terminam com o copo partido no lobby do hotel –, um ritmo como expressão de um turbilhão emocional, de um caos relacional, um ar que vai ficando denso à medida que as relações entre muitos surgem não correspondidas, à medida que é suposto emergir uma ordem para que essa puta sagrada do cinema possa parir, finalmente, um filme.
Neste microcosmos teatral, excessivo, contam muito as entradas e saídas de campo, como se mimetizassem essa mise-en-scène das relações em potência, interrompidas, interligadas, um avesso da máxima de Rivette: aqui, toda a rodagem é que é documentário do filme.
Este cáustico filme de Fassbinder – foi o próprio que o disse que procurava as frestas nessa união fabulosa entre a arte e a vida, como era difícil concretizar o ideal da vida em comuna e depois o processo da criação artística – faz lembrar as dinâmicas românticas e decadentes que a “puta sagrada” provoca em quem o faz, por exemplo, Le Mépris (O Desprezo, 1963), de Godard, ou dos anos 1980, Der Stand der Dinge (O Estado das Coisas, 1982), de Wim Wenders. Mas, mais do que nos dar a conhecer um certo gosto “documental” pelas costuras da genialidade e da criação, o filme de Fassbinder parece querer mostrar como essas costuras são cicatrizes motivadas pela incerteza e pelas paixões. Paixões essas que, de algum modo, são depois decantadas num todo, dominadas pela câmara, pela montagem, por fiapos de sanidade. E, afinal de contas, Goofy será sempre Goofy, e o anão nunca será a menina da história, da qual se disfarçou.
Neste microcosmos teatral, excessivo, contam muito as entradas e saídas de campo, como se mimetizassem essa mise-en-scène das relações em potência, interrompidas, interligadas, um avesso da máxima de Rivette: aqui, toda a rodagem é que é documentário do filme. Imaginamos um Lubitsch tresloucado e em desespero a seguir todos estes fios de desejo e frustração. Há qualquer coisa de sitcom concentrada, de jogos de dominação e humilhação ao som do mar invisível (que sabemos estar perto) e das músicas de Leonard Cohen. Um filme raiva que sabe que é contraditório, pois ao desconstruir a violência do Estado no filme, é ele mesmo violento no set; que sabe que é a burguesia o alvo de toda aquela “contra-folia”, mas que é feito a partir de dentro dessa condição de bebedores ininterruptos de bar de hotel.
Seria interessante pensar Cuidado com Essa Puta Sagrada – que, não esqueçamos, traz para o título um conselho sobre como não perder de vista o cinema e as suas dinâmicas malgré tout — como filme que nos faz pensar sobre essa coerência, tão na ordem do dia, entre artista e a sua obra. Hoje, certamente, Fassbinder teria de encontrar atalhos mediáticos e procedimentais para atingir os cumes do desespero e da violência fria e tão humana que nos deixou.
Cuidado com Essa Puta Sagrada e os vários outros filmes de Rainer Werner Fassbinder estão em exibição, em cópias digitais restauradas, de 6 a 26 de outubro, no cinema Medeia Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre, no Porto.