Le coeur a ses raisons, que la raison ne connaît point.
— Blaise Pascal
“O coração tem razões que a própria razão desconhece” poderia ser o leitmotiv do mais recente filme de Arnaud Desplechin, Frère et sœur (Irmão e irmã, 2022), apresentado no último Festival de Cannes. Se me autorizo a começar com esta frase-cliché roubada ao filósofo Blaise Pascal é porque o filme em questão me fez, pela primeira vez, refletir sobre o “contra-campo” inexplorado da expressão: por princípio, associamos o coração à faculdade de amar, à ideia de um amor cego, infundado e incondicional, quando, na verdade, o mesmo coração pode ser tão ou mais capaz de ódio. Um ódio simultaneamente anárquico e tirânico, capaz de subjugar e de consumir tudo e todos, até as origens da sua própria existência.
Com Frère et sœur, o realizador de filmes como Un conte de Noël (Um conto de Natal, 2008), Trois souvenirs de ma jeunesse (Três Recordações da Minha Juventude, 2015) e Les Fantômes d’Ismaël (Os Fantasmas de Ismaël, 2017) regressa a terreno conhecido: o drama íntimo e familiar, de inspiração autobiográfica e de introspecção psicanalítica. À semelhança das obras anteriores, o argumento do filme, escrito em colaboração com Julie Peyr, manifesta um gosto assumido pelo romanesco e encontra-se repleto de referências mitológicas e de clins d’œil cinéfilos, sendo particularmente notórias as influências de François Truffaut, Ingmar Bergman e John Cassavetes (sobretudo na construção das personagens e no trabalho com os atores). Desta feita, Desplechin deixou de parte o seu actor fetiche, quase alter-ego, Mathieu Amalric, que desde 1966 é presença recorrente nos seus filmes [recentemente, Amalric interpretou o protagonista de Tromperie (2021), ambiciosa adaptação de um romance de Philip Roth que sonda os mistérios da criação literária através das conversas pré- e pós-coitais de um escritor com a sua amante], trocando-o por Melvil Poupaud e Marion Cotillard, dois atores de peso na paisagem do melodrama francês. Juntos interpretam o irmão e a irmã do título, Louis e Alice, que se detestam visceralmente há mais de duas décadas.
O que move os protagonistas do novo filme de Desplechin é precisamente um desses ódios cujas razões a razão desconhece. Não só o porquê do ódio não é revelado ao espectador, como nos é dado a entender que as próprias personagens já não sabem ao certo de onde veio, nem o que o terá causado. E o filme, parecendo seguir o conselho do personagem de Melvil Poupaud que, a dada altura, afirma que “não seria muito moral” procurar uma resposta a essas questões, contenta-se a expor os sentimentos extremos e corrosivos que alimentam as personagens, em combustão lenta… na esperança de que o ódio se esgote por si só, ou de que um evento explosivo os liberte de uma vez por todas.
A recusa do cineasta em explicar a origem do ódio é eminentemente política: não há nenhuma razão válida para odiar alguém – ou algo – ao ponto de querer destruir a vida deste, ou de estar disposto a sacrificar a sua. O ódio é sempre uma perda de tempo.
Os primeiros minutos de Frère et sœur prendem automaticamente a atenção do espectador. Na verdade, o filme conta com três sequências de abertura, distintas mas de igual intensidade, que parecem apontar na direção de uma narrativa múltipla, assente na contingência de vários destinos aparentemente desencontrados. Primeiro início: na noite do funeral do primeiro e único filho de Louis, cuja morte precoce não é explicada, Alice aparece à porta de casa do irmão, que não hesita em expulsá-la de forma violenta. Segundo início: cinco anos mais tarde, um casal de idosos presta socorro a uma jovem presa num automóvel acidentado, quando, de repente, surge na estrada um camião descontrolado que embate contra ambos. Terceiro início, desta vez com ares de western: nas montanhas do sudoeste da França, onde vive isolado desde a morte do seu filho, e onde passa os dias a trabalhar a terra, a escrever e a beber junto da sua mulher Faunia (Golshifteh Farahani), Louis vê chegar, montado a cavalo, um amigo de longa data que lhe traz a notícia do acidente do qual foram vítimas os seus pais, ambos nos cuidados intensivos, mas com pouca probabilidade de sobreviver.
Chegou o momento de o filho pródigo regressar a casa. Único problema: para os dois irmãos vistos na cena de abertura, a ideia de se reunirem, mesmo em torno do leito de morte dos seus pais, é absolutamente insuportável. Uma vez “atadas as pontas soltas” das primeiras sequências, o espectador sentir-se-á progressivamente submergido por uma avalanche de questões sobre o passado das personagens, a natureza das suas relações e as motivações por detrás das suas ações, questões essas que – spoiler alert – serão deixadas sem resposta.
É certo que Desplechin semeia, através dos diálogos que parecem saídos de uma sessão de psicoterapia [não fosse o melhor amigo de Louis psiquiatra — e o próprio Desplechin um dos argumentistas da adaptação francesa da série In Treatment (Terapia, 2008-2010)], ou de flasbacks que surgem sem pré-aviso nem grande respeito pela cronologia dos eventos, alguns indícios que supostamente deveriam ajudar a elucidar as razões que levaram à ruptura entre os dois irmãos. Deste modo, descobrimos que houve um tempo em que Louis e Alice foram inseparáveis. Em criança, Louis vivera na sombra e em completa adoração da sua irmã que, apesar de mais velha, desde cedo mostrara uma certa fragilidade intempestiva que ninguém na família ousava contrariar. Chegados à idade adulta, Louis tornou-se o principal protector de Alice que, após ter abandonado os estudos, descobriu nos palcos a sua vocação e a sua voz, enquanto o irmão dava os primeiros passos tímidos como poeta e escritor. Até ao dia em que Louis recebeu um prémio literário, e em que Alice lhe confessou com um sorriso: “Je crois que je te hais”. E ele aquiesceu. Um acordo tácito foi selado nesse momento: odiar-se-iam mutuamente, como outrora se haviam amado. Esse ódio faria de Louis um pária, obrigado a ver os restantes membros da sua família às escondidas para não perturbar a irmã, cuja saúde mental se revelaria cada vez mais frágil.
Durante a primeira parte do filme, a câmara de Desplechin sonda alternadamente os dois protagonistas sem que estes jamais se cruzem, particularmente atenta à linguagem corporal de ambos, através de grandes planos que tentam, em vão, desarmá-los e pôr a nu os segredos insondáveis que escondem. Assim, a narrativa desenrola-se num vai-e-vem entre o hospital que cada um só pode visitar no seu turno para evitar dar de caras com o outro, o teatro onde Alice representa todas as noites a peça The Dead (uma adaptação do conto homónimo de James Joyce, por sua vez adaptado ao cinema por John Huston naquele que seria o seu último filme, em 1987), a casa dos pais, vazia, onde Louis se esconde e se esquece, mergulhado nos álbuns de fotos de família e na escrita, de um novo livro, e as ruas sombrias e chuvosas de Roubaix – cidade natal de Desplechin –, onde separadamente procuram algo que apazigúe o seu sofrimento: no caso de Louis, o álcool e o ópio que lhe permitam desligar-se da realidade; no caso de Alice, alguém que a ouça sem julgamento e que lhe dê a ilusão de ser útil — mais precisamente, uma fã que a espera todas as noites à saída do teatro e que se revela ser uma imigrante romena praticamente sem-abrigo.
Por um lado, esta “mise en scène do evitamento”, realçando a atmosfera tensa e quase claustrofóbica que envolve a acção, tem o seu contraponto nas breves sequências de realismo mágico e de revelação epifânica com que Desplechin pontua o filme. Por outro, a ameaça do reencontro que se sabe inevitável é tornada palpável pela direcção de fotografia de Irina Lubtchansky, que faz as personagens navegarem entre sombra e luz, ainda que aponte invariavelmente na direção desta última. A mesma ameaça inscreve-se nos corpos de Louis e de Alice, e transparece até no modo como ocupam o espaço: na medida em que o ódio os bloqueia e impede de avançar, estes movem-se sobretudo na vertical, por exemplo, quando Louis sobrevoa a cidade sob o efeito das drogas, ou nas inúmeras vezes em que Alice parece desmoronar-se, desmaiando ou atirando-se para o chão em desespero.
A minha experiência do desfecho do filme não correspondeu à visão apaziguadora do realizador que, numa tentativa de deixar a “casa arrumada”, multiplica as cenas de epílogo, onde se entrelaçam sentimentalismo e espiritualidade de forma bastante forçada.
Para além de desempenharem um papel importante na vida dos protagonistas, o teatro e a literatura têm uma função simbólica ou meta-narrativa na construção do argumento, contribuindo para expor o artifício subjacente a toda a criação artística, equiparado, na trama do filme, à própria origem e legitimação do ódio. Para justificarem o facto de terem passado grande parte da sua idade adulta num processo de contínua autodestruição, Louis e Alice precisam de manter vivo esse sentimento que os une mais do que os separa, e fazem-no mergulhando nas suas memória afectivas e traumas recalcados, ou habitando os fantasmas que os assombram (fantasma do incesto ou de um homicídio involuntário, por exemplo). Mas, ao mesmo tempo, é precisamente porque Alice e Louis são actriz e autor que os vemos, em momentos distintos do filme, proferir face à câmara breves monólogos desvinculados do presente em que ocorre a acção, mas especialmente clarividentes no que diz respeito à sua condição de personagens-marionetes ou de poeta fingidor que “finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. Nesses momentos, em que se quebra a quarta parede, Louis e Alice parecem tomar consciência que não passam de dois intérpretes de um drama que eles próprios se auto-infligem e que, portanto, só eles podem resolver.
Nas várias entrevistas dadas nas semanas que precederam a estreia de Frère et sœur em Cannes, Desplechin insistiu na ideia de que o verdadeiro tema do filme é o fim do ódio, como chave para uma libertação simultânea daqueles que o vivem ou que são o seu objecto. A recusa do cineasta em explicar a origem do ódio é eminentemente política: não há nenhuma razão válida para odiar alguém – ou algo – ao ponto de querer destruir a vida deste, ou de estar disposto a sacrificar a sua. O ódio é sempre uma perda de tempo. Por outro lado, para o realizador, o fim do ódio não passa pela sua explicação (explicá-lo seria legitimá-lo), mas por um confronto com o real (o “tuchê” na terminologia de Lacan) ou, por outras palavras, uma tomada de consciência da trivialidade e da imprevisibilidade da vida que, essa, não deixa de seguir o seu curso. Chegará o momento em que Alice e Louis tropeçarão um no outro, talvez num corredor do hospital, numa rua deserta sob uma chuva torrencial, ou numa ala de supermercado e… não desviarão o olhar.
Ousar olhar o ódio nos olhos é um primeiro passo, mas não resolve tudo; e tenho que admitir que a minha experiência do desfecho do filme não correspondeu à visão apaziguadora do realizador que, numa tentativa de deixar a “casa arrumada”, multiplica as cenas de epílogo, onde se entrelaçam sentimentalismo e espiritualidade de forma bastante forçada. Assim, a última parte conduz, precipitadamente, as personagens em direção à catarse, que advém primeiramente na forma de um pedido de perdão, proferido a meia-voz no café que Louis e Alice costumavam frequentar e onde marcam um encontro; não é sequer importante qual dos dois o profere, mas sim que ambos parecem, enfim, disponíveis para seguirem com as suas vidas. Frère et sœur deveria terminar aí, nesse face a face luminoso, em que o perdão soa a uma confissão velada, e em que o ódio revela poder ser, afinal, a face devastadora do amor.
★★☆☆☆
Frère et sœur é apresentado em antestreia no âmbito da Festa do Cinema Francês, sendo exibido em Lisboa, dia 4 de novembro, às 19h00, na Sala Manoel de Oliveira no Cinema São Jorge, numa sessão que contará com a presença do realizador.