Ao escrever sobre este filme não posso deixar de convocar duas frases distintas. A primeira, da qual me servi para elaborar o título desta crítica – “De facto, a espeleologia é um dos ramos naturais do cinema; não um género, mas antes uma deriva epistemológica, no qual o mundo é o sujeito e o seu substracto” – é retirada de um comentário feito no Mubi por alguém que admiro imenso enquanto cinéfilo; e a segunda, prende-se com uma consideração de Poe, no qual este afirma que a “grandeza de uma montanha só é perceptível no seu vale”. O que há de comum entre as frases é que ambas convocam a profundidade como categoria do conhecimento. Se nos cingirmos à mera superfície, quer em termos geológicos, quer em termos cinematográficos, nunca poderemos compreender a real dimensão de um objecto. Achar que a grandeza de uma coisa coincide com a totalidade daquilo que é visível é um dos mais trágicos enganos, pois tudo aquilo que exige compreensão, contém algo de oculto, de submerso, porque é nesse território que cresce o sentido.

Podemos dizer de Il Buco (Das Profundezas, 2021) que nos obriga, antes de mais, a pensar sobre o par visível/invisível e no quão presentes estes conceitos estão, quer no humano, quer na terra. Talvez possa parecer um artifício simples, mas o relacionamento que o filme estabelece entre o corpo do moribundo que é auscultado e a exploração da gruta, não é só uma belíssima ideia de cinema, como sintetiza o gesto fundador de todo o pensamento. O conhecimento nasce precisamente desse impulso, o impulso de querer escutar aquilo que está para além da pele, o impulso de querer ver a terra além da sua superfície. Mais do que o visível, foi sempre o invisível que ocupou a mente humana. Foram por isso criados mitos, deuses, criaturas fantásticas, dogmas religiosos, milagres e castigos divinos; tal como a posterior razão moderna se desdobrou em técnicas invasivas, de dissecação, de calculo, porém, conduzidas pelo mesmo intento, a vontade que há em circunscrever, cartografar, conhecer e domar o que está para além do visível.
Sem, no entanto, me querer desviar do intento deste texto, Frammartino é talvez um dos cineastas mais atentos a esta alquimia entre o visível e o invisível. Na sua segunda longa-metragem, Le Quattro Volte (As Quatro Voltas, 2010), é o processo de transformação que rege o seu filme. Seguindo o princípio de Lavoisier de que “nada se perde, tudo se transforma”, o filme acompanha as diversas transmutações das coisas, onde a vida nunca deixa de pulsar e de se renovar sobre cada nova manifestação (humana, animal, vegetal, mineral). E, de modo semelhante, a sua seguinte curta-metragem, Alberi (2013), realizada 3 anos depois, procura observar as finas cambiantes da natureza, ouvir os seus sons e o modo como tudo se abre aos nossos sentidos e neles se transforma. Talvez seja por isso que a produção de Frammartino sempre foi tão espaçada no tempo, levando a que este novo filme diste quase 10 anos dessa referida curta. Escutar o mundo é uma operação delicada que exige a máxima atenção do realizador. Há que estar disponível ao mundo, observar como o invisível dá lugar ao visível, de como por detrás da aparência das coisas outras coisas se dão a ver. E tudo, no cinema de Frammartino, está relacionado, pois a natureza exige o humano e vice-versa, sendo que cada qual investe de sentido o outro.
O filme termina com um duplo fim, o da caverna e do corpo. É neste fim que o corpo e a caverna finalmente se encontram. O corpo humano, que habita a superfície, desce ao interior da terra para se tornar parte dela.
Não podemos afirmar que esta íntima relação seja fruto de uma qualquer concepção do maldito antropocentrismo, pelo contrário, há uma descoberta do humano através da natureza e não o seu inverso. O humano não está fora do ciclo natural, ele participa e é parte dele na sua transformação. Por essa razão, em Il Buco, o corpo do moribundo está tão intimamente relacionado com a caverna pois é necessário aceder ao invisível, para que possamos compreender o que é visível – e há ainda um aspecto curioso, o moribundo, aparece inicialmente no filme como um pastor no alto das montanhas e é lá que observa a fenda, mas sem poder aceder ao seu interior, aquilo que só é possível aos espeleólogos. As imagens de Il Buco são como revelações, momentos de uma raridade imensa, que nos fazem adivinhar uma certa proximidade às imagens primitivas, inaugurais (arriscar-me-ia até a dizer, da sua “essência”, assumindo o risco que este conceito comporta). É essa a excepcionalidade do filme, porque tal como o movimento de exploração dos espeleólogos, também o movimento de câmara do cineasta descobre novos territórios, um mundo que está para além da superfície da terra e de tudo aquilo que se manifesta perante os nossos olhos.
Mas o desvelar da terra, aquilo que ela esconde, é mostrado através de uma imensa delicadeza, tão contrastante com a técnica moderna e a forma invasiva como esta opera (basta pensarmos na extracção de petróleo, por exemplo). Frammartino, compreendeu, na plenitude, o intimido da espeleologia, no qual, a descoberta do interior de uma caverna está limitada pela própria caverna. Aquilo que se revela é aquilo que está lá, não o que o humano produz. Tanto que um dos últimos planos do filme termina com um gesto bastante naïf de um espeleólogo que cruza os braços como se aquele último reduto da caverna significasse o fim da sua busca. E sem qualquer artifício, Frammartino respeita também esse mesmo limite, sem nunca precisar de recorrer a efeitos especiais ou artimanhas de estúdio para dar a ver além do que os olhos podem ver (curiosamente, se vemos para além das paredes da caverna, vemo-lo nos desenhos feitos por um dos espeleólogos e nas suas medições).
O filme termina com um duplo fim, o da caverna e do corpo. É neste fim que o corpo e a caverna finalmente se encontram. O corpo humano, que habita a superfície, desce ao interior da terra para se tornar parte dela, daquele solo então desbravado. E, claro, os últimos planos são consagrados à natureza daquele local, ao lugar que permanece intocado, renovado, porque tal como o pastor, o espeleólogo no seu saber, respeita a natureza. Sem querer arriscar-me, uma segunda vez, mas reconhecendo uma imensa justiça e beleza na fórmula de Hölderlin sobre a necessidade de “habitar poeticamente o mundo”, esta é uma bela lição cinematográfica de como é possível habitarmos o mundo e de o conhecermos sem que dele precisemos de extrair mais do aquilo que ele nos dá. E com isto não quero afirmar ou fetichizar a ruralidade, a ancestralidade ou até mesmo uma forma de fazer imagens. Antes, procuro reconhecer que este é um caminho possível, quer cinematográfico, quer humano, que nos coloca importantes questões em torno do habitar, do relacionar e de como é necessário atentarmos à terra e ao nosso próprio corpo, para estabelecermos uma (re)ligação. E não deixa de ser curioso que seja o cinema, esse invento moderno, a dar-nos essa possibilidade.
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