Suis-moi jusqu’au bout de la nuit
Jusqu’au bout de ma folie
Laisse le temps, oublie demain
Oublie tout, ne pense plus à rien
— Serge Gainsbourg
Mikhaël Hers é um nome recorrente na programação do festival IndieLisboa desde 2008, ano em que recebeu o prémio da melhor curta-metragem com Primrose Hill (2007). Este filme, de uma hora, introduzia os temas e os territórios caros ao jovem realizador francês, então com pouco mais de 30 anos: a passagem à idade adulta, a reconstrução individual após uma perda, a nostalgia do passado e as promessas do futuro, para além da ostentação de uma faceta de melómano assumida, patente nas escolhas musicais que pautam a sua filmografia. Prolongando estas temáticas sob o modo da deambulação coletiva na periferia de Paris, em Memory Lane (2010) e Ce sentiment de l’été (2015), ou enriquecendo-as à luz de eventos recentes, como o trauma pós-atentados de 2015 que paira sobre as personagens de Amanda (2018), chegou finalmente o momento de vermos Les Passagers de la nuit (Os Passageiros da Noite, 2022), filme que fez as delícias da crítica aquando da sua estreia em França, na passada Primavera.
Naquela que é a sua quarta longa-metragem, Mikhaël Hers convida novamente o espectador a percorrer o “passeio da memória”, desta vez rumo à Paris dos anos 80. Para além de constituir uma exímia cápsula do tempo cinematográfica, Les Passagers de la nuit é simultaneamente o retrato intimista de uma mulher, um filme de ritos de passagem e uma saga familiar ao longo de sete anos, mais precisamente de 1981 a 1988. Com efeito, os primeiros minutos do filme situam-nos na noite de 10 de maio de 1981, data da vitória do candidato da esquerda socialista François Mitterrand às eleições presidenciais, e os sete anos do seu primeiro mandato dão o tom e inscrevem-se em pano de fundo da intriga familiar em torno na qual gira o filme. (Nota: ainda que saiba relativamente pouco sobre a história política da França nos anos 80, conheço o suficiente para saber que o clima de generosidade social e de otimismo generalizado face ao futuro que se viveu no início da década foi sol de pouca dura.)
O filme será, à semelhança daquilo a que Mikhaël Hers nos tem vindo a habituar, e à imagem da cicatriz que Elisabeth tem no peito, “sinuoso e frágil”.
Recentemente abandonada pelo marido, Elisabeth (Charlotte Gainsbourg, que dispensa apresentações) procura reconstruir-se. Marcada pelas cicatrizes de um cancro da mama que há muito eliminou qualquer perspectiva de vida amorosa ou profissional, Elisabeth tem dificuldade em imaginar um futuro para si e agarra-se à sua identidade de mãe, apesar de encontrar cada vez mais resistência da parte dos filhos adolescentes, ambos com personalidades mais fortes que a dela: enquanto o insucesso escolar de Mathias (Quito Rayon Richter) é justificado tanto pela sua vocação poética como pela sua “educação sentimental” em curso, Judith (Megan Northam) pertence a uma certa juventude ativista que não se contenta em deixar o futuro nas mãos da classe política. Os problemas financeiros levam Elisabeth a procurar um emprego onde a sua maior e única qualidade – a sua sensibilidade, ironiza – seja uma mais-valia, e acaba por ser contratada para trabalhar no standard telefónico do programa de rádio noturno que lhe faz companhia nas suas noites de insónia. É no decorrer de uma das emissões que encontra Talulah [Noée Abita, atriz revelação vista pela primeira vez em Ava (2017) de Léa Mysius], uma jovem sem-abrigo, a quem Elisabeth propõe dar guarida durante uns tempos.
Ainda que a personagem de Talulah surja já numa fase avançada do filme e se ausente durante uma parte significativa deste, o seu rosto é revelado ao espectador desde as primeiras imagens: uma jovem detém-se diante de um mapa da rede de metro parisiense, cujas estações são assinaladas de forma intermitente por LEDs fluorescentes; o seu olhar ávido percorre as linhas e as luzes que os seus dedos, hesitantes, não ousam tocar, talvez por receio de as danificar, ou de quebrar um qualquer feitiço. Não sabemos ainda o seu nome mas, uma coisa é certa: basta-nos olhar uma vez nos olhos de Noée Abita para nos sentirmos imediatamente enfeitiçados (como se diz em francês, trata-se de um desses rostos que “crèvent l’écran”). A dada altura, Mikhaël Hers sobrepõe a cara da jovem e a cartografia de Paris num magnífico plano que resume e incarna o duplo território que Les Passagers de la nuit vai explorar.
O resto do filme será, à semelhança daquilo a que Mikhaël Hers nos tem vindo a habituar, e à imagem da cicatriz que Elisabeth tem no peito, “sinuoso e frágil”. Acompanhando a trajectória comum deste núcleo de personagens durante sete anos, a estrutura narrativa de Les Passagers de la nuit assume uma dimensão eminentemente elíptica, omitindo os momentos de crise ou de derrota para se concentrar nos instantes efémeros de felicidade no quotidiano familiar, os grandes começos cheios de promessas que ficarão por cumprir, ou os (re)encontros que tropeçam no destino. Se, finalmente, o processo de reconstrução de Elisabeth parece dar-se de forma pacífica (talvez até demasiado), é na personagem insondável de Talulah, e na relação ambígua que se esboça entra esta e Mathias, que se espelham alguns dos sonhos e dos males que marcaram a década de 80.
Não estava preparada para que as imagens e os sons do filme se colassem a mim com tanta persistência, tanto que, um mês após o primeiro visionamento, dei comigo a regressar ao cinema para o rever.
Apesar de estar consciente de que praticamente tudo no cinema de Mikhaël Hers é temperado com uma dose generosa de sentimentalismo que muitos julgarão enjoativo (que tudo aponta na direção de um prazer passageiro e morno servindo o propósito de uma catarse quase automática), faço parte daqueles e daquelas a quem Les Passagers de la nuit arrebatou de forma mais profunda do que gostaria de admitir. Por um lado, trata-se de um cinema “tão frágil e delicado e gasoso que corre o risco de se desfazer assim que lhe pegamos” (nas palavras de Jorge Mourinha, sobre Memory Lane, em 2011), e talvez essa fragilidade explique em parte o seu charme. Por outro lado, mesmo se a capacidade de empatia dos espectadores pelas personagens pode ser afetada pela vulnerabilidade excessiva das mesmas, as interpretações de Charlotte Gainsbourg e Noée Abita são objectivamente arrebatadoras. Ainda assim, não estava preparada para que as imagens e os sons do filme se colassem a mim com tanta persistência, tanto que, um mês após o primeiro visionamento, dei comigo a regressar ao cinema para o rever.
Da primeira vez, deixara-me aconchegar pelo manto de aura nostálgica com que Hers envolve os anos 80 da sua infância: o guarda-roupa vintage (do look punk de Talulah às ombreiras de Elisabeth), a geografia urbana em transformação (com arranha-céus ultra-modernos a competir com a torre Eiffel no lado oeste da rive gauche), os novos sucessos musicais emitidos na rádio (Television, Lloyd Cole and the Commotions, John Cale… mas também um intemporal Joe Dassin), os clin d’œil cinéfilos (nomeadamente à família dos Film du Losange, evocada através dos filmes de Éric Rohmer e de Jacques Rivette), ou ainda as referências a eventos políticos que marcaram a década (a começar pela já mencionada eleição de François Mitterrand). Todos esses elementos expõem o studium do filme, suscitando no espectador um interesse geral em relação ao contexto cultural e sócio-político do objeto fílmico. Se, no meu caso, a identificação do studium constituiu um verdadeiro exercício, na medida em que tive que decifrar muitas das referências à cultura popular parisiense do anos 80, as reacções efusivas dos espectadores, que pude testemunhar das duas vezes em que o vi em sala, confirmaram a eficácia das mesmas.
Assim, terei talvez demorado mais tempo que grande parte do público francês a perceber que o programa de rádio onde se encontram pela primeira vez Elisabeth e Talulah (e cujo nome “Les Passagers de la nuit” dá o título ao filme) é, na verdade, uma referência a um programa semelhante emitido pela rádio France Inter, entre 1977 e 2006, que passava nas primeiras horas da madrugada e era animado pela icónica Macha Béranger (no filme, é Emmanuelle Béart quem interpreta este papel, sob o nome de Vanda Dorval): Allô Macha assentava no diálogo íntimo com os ouvintes, carinhosamente chamados de “sans-sommeil”, que telefonavam para partilhar as suas histórias de vida, para falar dos seus problemas, ou simplesmente para combater o sono ou a solidão. Ao fazer da rádio um local de partilha e de empatia por excelência, Hers presta ainda homenagem aos anos de ouro da Maison de la Radio et de la Musique, filmando nos seus estúdios e nos arredores do inconfundível edifício, que se ergue em face à torre Eiffel e não longe do bairro de Beaugrenelle, onde habitam as personagens do filme.
O segundo visionamento de Les Passagers de la nuit permitiu-me ir mais longe, ou mais fundo, na minha experiência do filme que, quase a contragosto, me deixara com as emoções à flor da pele. Desta vez, deixei que fosse o filme a vir ao meu encontro, na esperança de que algo da ordem de um punctum se manifestasse, me trespassasse: que um detalhe inopinado, fulgurante, inefável, viesse destabilizar o studium e provocar uma “mutação viva do meu interesse”. Note-se que, no prolongamento dos termos que Roland Barthes utiliza para definir a noção de punctum – “picada, pequeno orifício, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados” –, poderíamos adicionar a ideia de grão: um minúsculo grão de areia que vem entravar a engrenagem e afetar o modo como vemos aquilo que se apresenta diante dos nossos olhos.
O paralelismo estabelecido entre a personagem de Talulah e Pascale Ogier reforça a impressão de estarmos “perante uma catástrofe que já aconteceu”.
Foi efectivamente ao tomar consciência da granularidade da fotografia de Les Passagers de la nuit que a minha atenção sobre a intriga narrativa se viu perturbada. Se Hers tira partido do grão e da tonalidade azulada das imagens de arquivo em suporte analógico para forjar uma identidade visual para o seu filme, a presença de grão não se limita ao material documental integrado na montagem, vindo contaminar gradualmente as cenas encenadas e filmadas pelo cineasta com os actores, de tal modo que se torna difícil distinguir entre o footage preexistente e o material ficcional.
Ora Barthes associa igualmente o punctum ao noema da fotografia – “Isto-foi” –, ou seja, a tomada de consciência por parte do espectador de que aquilo que vê na imagem fotográfica existiu realmente e esteve presente, diante da objetiva, num momento preciso do passado. O lugar reservado às imagens de arquivo em Les Passagers de la nuit responde parcialmente a esta questão da imagem fotográfica (aqui documento audiovisual) como “certificado de presença”, mas o modo como o cineasta justapõe documentos de vários tipos e em diversos suportes complexifica-a de forma radical, nomeadamente ao fazer dialogar footage mais ou menos “bruto”, reportagens institucionais, excertos de filmes da época [um plano ao longo das margens do Sena tirado de Navire Night (1976) de Marguerite Duras quase passa despercebido!] e até falso found footage que o próprio fabricou para o efeito. Por exemplo, no início do filme, entre as imagens de arquivo da noite da eleição de François Mitterrand, surge um plano filmado do interior de um carro onde se encontram Elisabeth e Mathias, e outro onde interceptamos o olhar perdido de Tatulah no meio da multidão em festa. Os mais atentos poderão ainda identificar dois planos fugazes do documentário de Claire Denis Jacques Rivette, le veilleur (1990), inseridos na montagem de uma cena filmada no metro de Paris, de forma a sugerir que as personagens se teriam cruzado por acaso com o cineasta.
Por vezes, o trio de jovens – Mathias, Judith e Talulah – refugia-se num cinema de bairro. Numa dessas ocasiões, chegam atrasados à sessão de Birdy (1984), de Alan Parker, e acabam a assistir a Nuits de la Pleine Lune (Noites de lua cheia, 1984), de Éric Rohmer. À saída do cinema, vemo-los parodiar as personagens do filme de Rohmer, e percebemos mais tarde que Talulah não ficou indiferente à interpretação de Pascale Ogier, como se visse nesse ícone “melancólico” dos anos 80 a prova de que a sua própria fragilidade (física e psicológica) poderia transformar-se numa força, se ao menos se conseguisse salvar dos seus fantasmas… Uma nova investida do punctum deixa-se adivinhar quando Mathias revela a Talulah que Pascale Ogier morreu pouco tempo depois da estreia de Nuits de la Pleine Lune, aos 25 anos, de um problema cardíaco (mas o espectador cinéfilo sabe que a sua morte poderá ter sido causada por uma overdose…).
A partir desse momento, o paralelismo estabelecido entre a personagem de Talulah e Pascale Ogier reforça a impressão de estarmos “perante uma catástrofe que já aconteceu” (cito Barthes, novamente). Por outro lado, é-me impossível não pensar numa outra figura errante do cinema dos anos 80: a Mona (Sandrine Bonnaire, com apenas 18 anos) de Sans toit ni loi (Sem eira nem beira, 1985) de Agnès Varda. O filme de Varda começa com a descoberta do cadáver enregelado de uma jovem sem-abrigo na beira de uma estrada rural, no sul de França. Em Les Passagers de la nuit, vemos Talulah partir de madrugada, de mochila às coisas, rumo ao desconhecido. Ela é a derradeira “passageira” de uma noite interminável que os anos 80 apenas iluminaram provisoriamente.
★★★★☆
Les Passagers de la nuit é apresentado em antestreia no âmbito da Festa do Cinema Francês, sendo exibido um pouco por todo o país antes de vir a estrear em Dezembro: em Coimbra, no dia 28 de outubro, às 21h00, no Teatro Académico Gil Vicente; em Lisboa, dia 30 de outubro, às 18h00, na Sala Manoel de Oliveira no Cinema São Jorge; no Porto, no dia 11 de Novembro, às 21h30, no Cinema Trindade; em Oeiras, no dia 20 de Novembro, às 19h00, no Cinema NOS Oeiras Parque e em várias outras cidades em data a anunciar.