Chegamos a Mutter Küsters’ Fahrt zum Himmel (Mamã Küsters Vai Para o Céu, 1975) em ambiente de postal ilustrado, como que sendo desafiados logo desde os primeiros segundos a ponderar o que haverá de artificial nestas paisagens bonitinhas, que males existirão por detrás destas fachadas perfeitas da cidade de Frankfurt. Numa época em que ainda eram enviados bilhetes postais durante uma viagem, quanto haveria de falso naquelas missivas inscritas no verso do postal?
Depois dessa breve jornada pictórica, passamos para o centro do lar Küsters, a cozinha. Emma Küsters (a mamã Küsters) monta tomadas eléctricas, de forma compassada e precisa, passa-as para o filho, que finaliza a montagem. Tudo isto acontece sobre a mesa da cozinha, uma mesa endeusada (ou conspurcada, se preferirem) pelos desígnios da Wirtschaftswunder. Mas vemo-la logo depois ao fogão, mexendo a comida na panela, ao lado da nora Helene (Irm Hermann). Num primeiro momento, a câmara recusa-se a reunir esta família num só enquadramento, cada um deles é apresentado associado a tarefas isoladas, mostradas em grande plano: o filho Ernst (Armin Meier) que aperta os parafusos, Emma que abre a lata de salsichas, Helene que prepara a salada de pepino. Se os vemos reunidos num mesmo enquadramento, será apenas para que sejam rapidamente enjaulados pela moldura da porta da cozinha, comprimindo-os no ritual de preparar uma mesa para jantar que tem tanto de cenário quanto de altar.
É na mesma mesa em que se produz, verdadeira linha de montagem caseira, que a comida se prepara e se serve, de modo que o trabalho que serve para pôr comida em cima da mesa convive promiscuamente com a própria comida colocada na mesa.
Percebemos que aquela tarefa de montagem ajuda a trazer mais uns tostões para casa, uma tarefa caseira e longe de outros olhares, uma produtividade feminina que não fira sensibilidades ou imagens projectadas para o exterior. É, afinal, o mesmo tipo de actividade feminina de Lana Turner em Imitation of Life (Imitação da Vida, 1959), quando esta preenchia manualmente envelopes, uma ocupação repetitiva e esvaziada de sentido próprio. Nesta mesma mesa de cozinha, ocorrem os preparativos da refeição, a mesa onde se alinham as latas de conserva e outros bens de consumo, numa confusão de alimentos, reais e metafóricos. É na mesma mesa em que se produz, verdadeira linha de montagem caseira, que a comida se prepara e se serve, de modo que o trabalho que serve para pôr comida em cima da mesa convive promiscuamente com a própria comida colocada na mesa. A Ernst, na sua postura sempre apática e algo ridícula, resta apenas o lamento de não ter concretizado o seu sonho de tornar-se talhante, o seu olhar a divagar por uma revista de viagens, enquanto a mulher defende o vegetarianismo, referindo a enorme quantidade de substâncias nocivas à saúde que se escondem nas salsichas que Emma prepara. Emma diz apenas que o seu marido tem fome, trabalha para ganhar o dinheiro necessário para pagar a comida, e assim tem o direito de comer o que quer. É um modo de vista bem simples do bom trabalhador alemão – trabalhar com dignidade, chegar a casa, comer as salsichas que a mulher preparou para ele.
O que Helene critica é, mais do que a conduta do sogro, um certo modelo de vida alemão que será, ele próprio, nocivo à saúde. E o pobre Ernst ali fica, na frustração de não conseguir tomar parte do sonho capitalista, enquanto as duas mulheres mostram como são capazes de pensar e discutir. Pensam a vida dos “seus” homens, os homens que se mostram frouxos – o filho que vegeta pela casa, sem rumo aparente e o pai que nunca fala sobre si ou sobre nada, um ser misterioso ou apenas desinteressante.
Na verdade, o papá Küsters não chegará a comer as salsichas. A notícia vem pela rádio e pela porta de entrada – numa altura em que se fala de despedimento colectivo na fábrica em que ele trabalha, ele acaba por assassinar o seu superior hierárquico, para de seguida se suicidar. Tudo isto ocorre fora de campo, nunca havendo espaço para qualquer tentação de voyeurismo da nossa parte. As verdadeiras motivações do Sr. Küsters permanecem, assim, desconhecidas. Emma tem apenas a dizer do marido que ele nunca se queixava de nada, em casa ou no trabalho, que levava uma vida isenta de conflitos e discussões.
O lar Küsters será rapidamente invadido por jornalistas que se alimentam da desgraça, que comem tudo aquilo que possa alimentar a sua história, comportando-se como verdadeiros abutres [essa era também a imagem que nos davam Volker Schlöndorff e Margarethe von Trotta, de forma porventura ainda mais acutilante e pessimista, em Die verlorene Ehre der Katharina Blum (A Honra Perdida de Katharina Blum, 1975)]. Emma aceita tudo isto de forma lacónica, porque, afinal, este é o trabalho deles (o alimento deles). Os jornalistas precisam deste trabalho sujo, como precisam de alimento. O disparar do flash soa como uma ferida à intimidade do lar que se repete, mas bem sabemos que essa intimidade, em bom rigor, não existe. Não se trata apenas do facto de o pai Küsters ser um desconhecido, alguém que nunca revelou os seus pensamentos ou inquietações a ninguém, mas também da gélida relação existente entre os membros desta família, como fica claro quando Ernst e Helene abandonam Emma para irem gozar férias, só porque o dinheiro do depósito não podia ser recuperado.
Mas bem sabemos que Fassbinder raramente foi realizador que não temperasse o seu veneno com igual dose de humor. A chegada da filha Corinna (Ingrid Caven) a Frankfurt é uma reaparição de Madeleine de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), no seu tailleur cinzento de Edith Head. E para que não restem dúvidas da blague, vemos também Corinna no cemitério, segurando as flores, em novo decalque da personagem de Hitchcock.
Niemeyer (Gottfried John), o jornalista que parasita em torno da mãe Küsters e que se ofereceu para acompanhá-la na viagem até ao aeroporto, leva Emma e Corinna a um restaurante japonês. É um ambiente estranho a Emma, que serve apenas para a ostracizar, apesar do esforço que ela sempre demonstra para “encaixar” e da assinalável capacidade de adaptação que ela revela. A relação que se estreita é, no entanto, a relação de Corinna e de Niemeyer, mostrando-se a filha Küsters sempre pronta a oferecer-se para a objectiva, o seu olhar permanente procurando a máquina fotográfica. Não há “sentimento” sem o devido registo.
Mas Niemeyer não é o único abutre que volteia em torno de Emma. No fundo, todos são predadores de Emma, alimentando-se dela para as suas finalidades. Também o casal Tillmann procura retirar dividendos do escândalo. E conforme afirma Karl (Karlheinz Böhm) à sua mulher Marianne (Margit Carstensen), o método por eles utilizado pode ser o mesmo utilizado pelos repórteres da imprensa sensacionalista, mas o que conta são os resultados. Emma procura algo de muito simples, algo que o casal Tillmamm parece ser capaz de lhe oferecer: alguém com quem conversar. Aquilo que Karl e Marianne servem a Emma é uma explicação simplista, ingénua, até mesmo hipócrita daquilo que é o seu credo. Ali estão eles, confortavelmente instalados na sua rica casa, rodeados de valiosos pertences, bens herdados de familiares abastados, servindo o chá em bule de prata. Tudo isso reforça a artificialidade do discurso, um discurso doutrinário de cartilha, oco, talvez porque achem que Emma não merece mais do que isso (ainda que mais tarde possamos ver, na cena do comício político, que Emma é dotada de uma especial eloquência, estando talvez mais talhada para a luta política do que nós – ou ela – pudéssemos imaginar).
Emma quer apenas ser amada, ser alvo de atenções e cuidados, ter alguém que lhe ofereça tempo e disponibilidade.
Emma sente-se apenas tocada pelo facto de estas pessoas, instruídas e bem-falantes, disporem do tempo necessário para conversar com ela, mostrarem-se disponíveis para ouvi-la. E é igualmente um processo de descoberta para ela, de desfazer de estereótipos, ela que sempre achara que os comunistas eram todos muito pobrezinhos. Corinna contrapõe-lhe a sua clarividência narcotizada, algo turva, mas não menos lúcida, dizendo que há comunistas e comunistas. Há comunistas pobres e comunistas ricos, também na RDA, onde os dirigentes do partido vivem em villas e comem fruta exótica, enquanto para os restantes cidadãos até o pão é racionado. Karl e Marianne não são mais do que Salonkommunisten – esquerda caviar que fala e fala, mas que não tem contacto directo com um único trabalhador.
Emma aceita meramente que todos têm os seus propósitos, todos querem obter algo para si próprios, e que reconhecer este facto torna tudo muito simples. Emma tem uma missão, quer salvar a reputação de um homem que provavelmente não conheceu intimamente. Conforme diz Corinna, quem conheceu verdadeiramente o pai? E perguntamos nós: quem quer verdadeiramente conhecer Emma Küsters? Emma não é, afinal, uma ingénua que não pretenda também algo para si, seja isso limpar a reputação do marido ou, simplesmente, ter alguém que converse consigo. Remetendo para uma outra obra de Fassbinder, Ich will doch nur, dass ihr mich liebt (Quero Apenas Que Vocês Me Amem, 1976), Emma quer apenas ser amada, ser alvo de atenções e cuidados, ter alguém que lhe ofereça tempo e disponibilidade.
E Fassbinder revela uma maturidade assombrosa na sua abordagem do discurso político, ao contrário de outros ilustres realizadores que, à mesma época, mais não faziam do que debitar discurso doutrinário. A linguagem de Fassbinder é uma linguagem lúcida e desencantada que pertence ao século XXI. Já em Acht Stunden sind kein Tag (Eight Hours Don’t Make a Day, 1972-73), Fassbinder tinha ensaiado uma resposta ao discurso político oco, propalando uma possibilidade verdadeira de construção de uma comunidade com laços solidários fortes, em que os trabalhadores são dotados de uma capacidade de acção, aptos a tomar as rédeas do seu próprio destino. Em Mutter Küsters’ Fahrt zum Himmel não há solidariedade nem família, nas relações familiares de Emma existe apenas frieza e distância, isto apesar de Emma fazer questão de que a chamem de “mamã Küsters”. A figura da “mãe” tem aqui um gosto amargo, sendo difícil ignorar a relação de Fassbinder com a sua própria mãe (ela que faz aqui mais uma breve aparição, como em tantos outros filmes realizados pelo filho), uma relação intensa, entre amor e crueldade, que Irm Herrmann afirmava sentir como influência marcante na sua própria relação com o realizador.
Entretanto, a instrumentalização de Emma Küsters e do escândalo em que o seu marido esteve envolvido segue o seu curso. Sentindo-se desamparada e desiludida com o comportamento do casal Tilmann, Emma confia num grupo de anarquistas que lhe prometem mais actos e menos palavras, numa estratégia de acção que remete para o grupo Baader-Meinhof. Mas a invasão da sede do jornal que havia manchado a reputação da família Küsters com os seus relatos sensacionalistas apenas torna evidente que Emma foi mais uma vez instrumentalizada. A tentativa de recuperação do bom nome do Sr. Küsters não é mais do que um pretexto, por parte do grupo anarquista, para a invasão do jornal e a exigência de libertação dos companheiros de acção política que se encontram presos. Sentimos que este MacGuffin tem uma sequência lógica, que encontraremos em Die Hard (Die Hard – Assalto ao Arranha-Céus, 1988), quando o grupo de Hans Gruber usa a exigência de libertação de companheiros de armas como máscara do seu verdadeiro propósito – assaltar um cofre. Dinheiro, nada mais.
Fassbinder filmou dois finais alternativos para Mutter Küsters’ Fahrt zum Himmel, duas viagens ao céu distintas. O primeiro é um final trágico, um final que conhecemos, mas que não vemos, no qual Emma acaba por morrer. Trata-se de uma viagem ao céu como mártir, em que se sente uma carga religiosa no modo como o sangue é derramado, uma pietà em que o olhar de Corinna se vira para a câmara fotográfica uma derradeira vez. No segundo final, mais optimista mas talvez ainda mais desiludido ou triste, Emma é simplesmente abandonada pelo grupo de anarquistas. Sentada, sozinha, no chão da sala de recepção, a sua tomada de posição torna-se simplesmente insignificante. A única atenção que recebe é do contínuo viúvo que por ali aparece para fechar a porta, oferecendo-lhe uma viagem ao céu pelo estômago, a partilha do prato típico da gastronomia alemã Himmel und Erde. Também este “céu” não é isento de sangue, mas trata-se tão-só de um chouriço de sangue (o sangue que ela não chega a derramar neste “final feliz”).
Mamã Küsters Vai Para o Céu e os vários outros filmes de Rainer Werner Fassbinder estão em exibição, em cópias digitais restauradas, de 6 a 26 de outubro, no cinema Medeia Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre, no Porto.