O amor é o melhor, o mais insidioso e o mais eficaz instrumento de repressão social.
— R. W. Fassbinder
O desafio para escrever sobre um dos filmes de Rainer Werner Fassbinder atualmente em reposição nas salas portuguesas surgiu, com uma pontaria tão certeira quanto irresistível, na véspera da minha primeira visita a Berlim, no verão passado. Apesar de a minha mãe me ter avisado de antemão que “A Berlim de Asas do Desejo já não existe“, ainda tinha alguma esperança de vir a reconhecer na sinfonia da grande cidade alguns dos leitmotiv e dos cenários que compunham o meu imaginário cinéfilo de Berlim. Procurei, em vão, os anjos velando sobre as ruínas e, desorientada com a constante metamorfose do tecido urbano, acabei, numa das tardes, por me ir refugiar no museu da Deutsche Kinemathek. Fui recebida pelo olhar e o sorriso insondáveis de Hanna Schygulla, à espreita num labirinto de espelhos e de projeções cinematográficas; sombras de vampiros e de mulheres-robot guiaram-me através das salas, do Expressionismo do cinema de Weimar nos anos 1920, às novas sensibilidades do Neuer Deutscher Film nas décadas de 60 e 70; numa das últimas salas, entre tesouros de memorabilia cinéfila, tronava uma cadeira de realizador com as iniciais R. W. F.; e à saída, Brigitta Mira e Marlene Dietrich despediram-se de mim com um “Wir sehen uns / We’ll be seeing you”.
No imediato, o rosto com que mais vontade fiquei de rever foi o de Hanna Schygulla. De regresso a Paris, não me foi difícil encontrar uma sala de cinema cuja programação estival incluísse um ciclo de filmes de Fassbinder – evento provavelmente motivado pela estreia recente de Peter von Kant (2022), adaptação de François Ozon da peça de teatro Die bitteren Tränen der Petra von Kant (As lágrimas amargas de Petra von Kant, 1972). Neste filme, Hanna Schygulla interpreta o papel da jovem aspirante a modelo por quem a protagonista epónima (Margit Carstensen) se apaixona perdidamente; cinquenta anos mais tarde, aquela que foi a primeira atriz fetiche de Fassbinder faz uma breve aparição no falso remake de Ozon, no qual desempenha o papel da mãe do protagonista (desta feita, um realizador ao invés de uma estilista de moda).
Fassbinder e Schygulla colaboraram em mais de vinte filmes, desde a primeira longa-metragem do cineasta, Liebe ist kälter als der Tod (O Amor É Mais Frio que a Morte, 1969), até Lili Marleen (1981), um ano antes a morte de Fassbinder, aos 37 anos. Mas a relação entre o realizador e a atriz nem sempre foi pacífica, tendo mesmo sido interrompida no seguimento de conflitos durante a produção de Effi Briest (1974), que levaram Fassbinder a banir Schygulla do seu círculo criativo, pois, nas suas próprias palavras, a simples visão da cara da atriz tornara-se para ele insuportável. Esta anedota algo amarga ganha todo um outro sentido quando recordamos que o filme que permitiu o reatar da relação foi Die Ehe der Maria Braun (O Casamento de Maria Braun, 1979), no qual a câmara de Fassbinder sonda como nunca antes os mistérios do rosto de Hanna Schygulla.
A história de Maria Braun, em particular, não é outra senão a história da própria Alemanha ao sair da guerra: disposta a tudo para se reerguer das ruínas.
O Casamento de Maria Braun trata-se do primeiro opus da “trilogia BRD” que Fassbinder consagrou à República Federal da Alemanha (em alemão, Bundesrepublik Deutschland), focando-se no período do suposto “milagre económico” que permitiu a reconstrução do país após a derrota na Segunda Guerra Mundial. Desta trilogia fazem igualmente parte Die Sehnsuch der Veronika Voss (O Desespero de Veronika Voss) e Lola, ambos realizados em 1981. Ainda que as narrativas dos três filmes não comuniquem entre si, o seu contexto histórico surge numa continuidade cronológica, sendo que a ação do primeiro, O Casamento de Maria Braun, começa em 1943 ainda durante a guerra, dando de seguida um salto para o imediato pós-guerra e estendendo-se até meados de 1954; já a intriga de O Desespero de Veronika Voss concentra-se em algumas semanas no ano seguinte, enquanto Lola se passa entre 1957 e 1958.
De um ponto de vista temático e até estilístico, esta trilogia revisita o género do melodrama hollywoodiano dos anos 1930-1950 na sua vertente do women’s pictures, sendo notória a influência de cineastas como Joseph von Sternberg ou Douglas Sirk. Ao longo da filmografia de Fassbinder encontramos inúmeras (anti-)heroínas singulares e complexas, cujas profundas cicatrizes do passado, por muito que disfarçadas sob camadas de maquilhagem e roupas luxuosas, espelham as idiossincrasias e as contradições da nova Alemanha Ocidental, sobre a qual nunca deixa de pairar o fantasma do período nazi.
A história de Maria Braun, em particular, não é outra senão a história da própria Alemanha ao sair da guerra: disposta a tudo para se reerguer das ruínas, seja prostituir-se para os americanos (o primeiro amante de Maria é um GI negro), ou entregar-se aos franceses (o seguinte é um magnata francês). De certa forma, ela faz-me pensar nesse anjo sobre o qual escreveu Walter Benjamin, em 1940, a propósito do Angelus Novus de Paul Klee; mas trata-se de um”anjo da história” virado do avesso: de costas para o passado onde se acumulam os escombros, encarando as tempestades do futuro com uma confiança cega no progresso, à imagem do maravilhoso plano em que Maria avança imperturbável por entre a multidão num bar, na direção do primeiro homem que, tornando-se seu amante, a tirará da miséria.
Inicialmente, Maria oferece um retrato (neo)realista da frieza e do desapego necessários para sobreviver nas circunstâncias mais duras: não sabemos o que ela terá vivido durante a guerra, mas o que suportou fez dela uma mulher tão paradoxalmente romântica e esperançosa, quanto cruel e cínica. Acredita ela poder vir a reencontrar o marido Hermann (Klaus Löwitsch), soldado com quem casara durante um bombardeamento, na véspera de ele partir para a frente russa, e tido por morto desde o fim do conflito? Acredita realmente que o marido compreenderá as inúmeras traições na sua ausência, e reconhecerá nelas um sacrifício indispensável em nome do futuro do casal? Desde o início do filme, confundem-se jogos de poder e jogos de sedução, refletindo a convicção de Fassbinder quanto à dificuldade de se viver um amor verdadeiramente genuíno e altruísta na sociedade capitalista e materialista para a qual caminha a Alemanha Federal.
Um dia, Hermann regressa e descobre Maria na cama com outro homem; ela prova a sua lealdade assassinando o soldado afro-americano de quem esperava um filho; mas é o marido quem se assume culpado e acaba na prisão, não lhe deixando outra alternativa senão a de procurar uma nova forma de sustento numa sociedade em transformação. Maria torna-se então a amante manipuladora e insubstituível colaboradora de um industrial franco-alemão, Oswald (Ivan Desny); apesar da vida de luxo que este lhe propicia, o seu objetivo mantém-se inabalável: tudo o que faz é em nome desse sonho de uma aprazível vida de casados, sonho do qual a guerra a privou e que espera concretizar quando Hermann sair da prisão. Porém, uma vez liberto, este desaparece rumo ao Canadá, sem outra explicação para além da promessa de que voltará apenas quando tiver acumulado o suficiente para poder oferecer a Maria uma vida confortável. Afinal, é no plano material, e não dos afetos ou meramente sexual, que ele sente a sua masculinidade ameaçada, vendo na ascensão social e económica de Maria um espelho do seu fracasso moral e impotência física enquanto provedor da família.
Algo no interior de Maria Braun começa a desmoronar-se a partir desse momento. Laivos de crueldade gratuita emergem onde outrora um oportunismo transparente regia as suas relações, assentes em trocas de favores à semelhança de transações no mercado negro, no imediato pós-guerra. Sozinha na mansão que comprou com o dinheiro acumulado ao longo dos anos, Maria faz pensar menos numa Emma Bovary desencantada com a vida conjugal do que numa Jeanne Dielman à beira da ruptura. Mais tarde ou mais cedo, um grão de areia infiltrar-se-á na engrenagem do quotidiano amargo marcado pela espera do marido, de rosa em rosa, de cigarro em cigarro.
O primeiro indício palpável dessa “crise do esquema sensório-motor”, como diria Deleuze, é simbolizado pelo plano em que Maria, num gesto automático e inconsequente, coloca num vaso de flores o seu porta-moedas, ao invés da rosa vermelha que Hermann envia todos os meses. Mas, na verdade, a ameaça de um colapso da ordem estabelecida deixa-se adivinhar ao longo do filme, nomeadamente através da banda sonora, que tira partido da acumulação de sons e da disjunção entre o visual e o sonoro para criar uma sensação de caos iminente. Em vários momentos, os diálogos entre as personagens são quase inaudíveis, abafados pelo rebentar das bombas na cerimónia do casamento, embalados pelo chilrear dos pássaros durante um passeio na natureza, desprezados sob o barulho das máquinas de escrever num confronto entre amantes alienados, ou interrompidos pelas emissões de rádio que se fazem ouvir em pano de fundo (em duas ocasiões, é possível reconhecer excertos de discursos do chanceler Konrad Adenauer, primeiro garantindo que a Alemanha não se vai rearmar, mais tarde reivindicando o direito do país ao rearmamento).
Oswald morre, Hermann regressa. Nesse dia, é emitida na rádio a final do Mundial de Futebol de 1954, da qual, pela primeira vez desde o fim da guerra, a Alemanha sairá vitoriosa. Mais de dez anos após o casamento “abençoado” pelas bombas dos Aliados, os Braun podem enfim começar uma vida a dois. Mas saberão ainda o que os une? A resposta a esta questão será, no mínimo, explosiva. Afinal, foi com Douglas Sirk que Fassbinder aprendeu que há um tempo para amar e um tempo para morrer.
O Casamento de Maria Braun e os vários outros filmes de Rainer Werner Fassbinder estão em exibição, em cópias digitais restauradas, de 6 a 26 de outubro, no cinema Medeia Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre, no Porto.