The Magnificent Ambersons (O Quarto Mandamento, 1942), de Orson Welles, é um filme sobre a transição entre dois mundos. Um dominado por uma aristocracia decadente, onde se perpetuam antigas formas de vida, o outro por uma burguesia em ascensão, cujo surgimento traz consigo ventos de mudança. No velho mundo, as carruagens são puxadas por cavalos e o tempo alonga-se. No novo, os carros movem-se sozinhos e, como diz o narrador, quanto mais depressa somos transportados, menos tempo parece sobrar. A proporcionalidade inversa dos termos percorre todo o filme. O que se observa é o modo como a máquina, símbolo e motor do processo de industrialização retratado no filme, é simultaneamente objecto de fascínio e causador de destruição.

Numa das primeiras crónicas desta rubrica, sobre Staroye i novoye (A Linha Geral / O Velho e o Novo, 1929), de Sergei Eisenstein e Grigori Aleksandrov, escrevi acerca de um processo semelhante de transição entre mundos: de um sistema feudal para uma sociedade socialista em construção. Ali, a máquina separadora de leite, também ela associada a uma dimensão de mistério, porque o seu funcionamento escapava ao domínio do que era conhecido pelos seus observadores, inaugurava um tipo diferente de relação entre humano e animal, marcando o início da exploração industrial dos produtos deste último.
No caso do automóvel, aquilo que este desestabiliza é a dimensão espácio-temporal. À semelhança do que aconteceu com o comboio e do que aconteceria mais tarde com o avião, o automóvel transformou a posição do humano relativamente ao espaço e ao tempo, conduzindo igualmente a uma alteração no modo como as pessoas se posicionam perante os objectos, as suas funções e poder, e perante as outras pessoas que com estes objectos estabeleçam qualquer espécie de ligação. Se em Staroye i novoye, uma máquina desnatadora era, a bem dizer, um meio de produção, detido naquele contexto por uma cooperativa de trabalhadores rurais, em The Magnificent Ambersons, a máquina central no filme sugere diferentes tipos de relações de propriedade, e é em função dela que se descrevem as dinâmicas entre as personagens.
Assim, se em A Linha Geral, a passagem para um mundo industrializado era acolhida pelos protagonistas, por significar o hipotético melhoramento das suas condições de vida, na obra de Welles, o progresso tecnológico surge associado a uma elite, que irá, no fundo, tomar o lugar da anterior, ascendendo socialmente, mas melhorando muito pouco o tecido social que a rodeia. E, se o faz, é menos por causa da sua própria ascensão, do que através das consequências indirectas da tecnologia que permitiu o seu enriquecimento. Faço esta distinção para sublinhar de que forma a máquina, objecto tecnológico e instrumento de trabalho, representa coisas diferentes nos dois contextos.
George resiste fortemente à mudança e ao progresso tecnológico por estes representarem o fim do contexto que garante o poderio financeiro e a relevância social da sua família e da sua classe: o automóvel.
Parece-me importante fazê-lo antes de observar com mais detalhe a relação ambivalente que The Magnificent Ambersons estabelece com uma ideia de mudança. Esta ambivalência deve-se ao facto de Welles parecer mais interessado nos processos em jogo durante o período de transição retratado, e nas tensões que lhe são próprias, do que em tomar o partido de um único lado. Mais do que um apanágio ou uma crítica aos avanços tecnológicos que alteram radicalmente o dia a dia da cidade do filme e o ritmo de vida dos seus habitantes, temos uma observação da oscilação entre esses dois pólos.
Por um lado, o passado ilustre dos Amberson é comentado, na abertura do filme, num tom entre o saudosista e o elegíaco. Por outro, a idealização desse mundo em desaparecimento que aí se entrevê não é desprovida de sentido crítico. Ao mesmo tempo, a personagem que mais arreigadamente defende a antiga ordem, o herdeiro da família, George Minafer Amberson (Tim Holt), alma antiga que desconfia da possibilidade de carros se moverem sem que cavalos os puxem, imune aos feitiços lançados pelos engenhos de Eugene Morgan (Joseph Cotten), é de tal modo exasperante que dificilmente convencerá algum espectador da sua causa.
Já Morgan, inventor de novos modelos de automóveis, personagem sobre quem mais facilmente recairão simpatias, é em rigor não apenas uma ameaça ao velho mundo aristocrático, mas represente das violentas alterações sociais e ecológicas trazidas pelo desenvolvimento capitalista, que nem mesmo a sua bonomia nos deverá fazer esquecer. Descreve-se assim uma tensão entre lamentar estéril, mas não injustificado do fim do velho mundo e uma atracção ingénua pelo novo.
George resiste fortemente à mudança e ao progresso tecnológico por estes representarem o fim do contexto que garante o poderio financeiro e a relevância social da sua família e da sua classe: o automóvel, tornando mais fáceis e rápidas as deslocações ao longo de grandes distâncias, permitirá o desenvolvimento dos subúrbios e a consequente desvalorização imobiliária na cidade e do património dos Amberson, conduzindo igualmente à reestruturação das relações de propriedade e de poder.
Defender de modo intransigente a manutenção da situação actual implica, no caso de George, manter-se arreigado a uma casa em decadência, cheia de sombras, minada pela morte: “the magnificence of the Ambersons was as conspicuous as a brass band at a funeral”. O jovem aristocrata habita o lado do mundo que receia sair dos espaços que conhece, que prefere a indolência ao trabalho, contrariamente ao aventureiro e laborioso Morgan, cuja filha, Lucy (Anne Baxter), diz a George no baile em que o conhece, “We’ve lived all over”. O lado de George acha improvável a possibilidade de haver carros que se movem sem cavalos, numa construção linguística que descreve negativamente o fenómeno — horseless carriage. A descrição oposta, automobile, é o predicado do movimento autónomo, de uma espécie de vontade ou de autodeterminação da máquina, encarnada obliquamente por Eugene.

Este abraçou, desde a juventude, a mudança como único modo possível de vida e lembra frequentemente a impermanência das coisas, o que parece justificar a sua paciente benevolência para com George, cuja teimosia compromete a felicidade daqueles que lhe são mais próximos: a de Lucy, que ama, mas que afasta com a sua crueldade, a da mãe, Isabel (Dolores Costello), cuja vontade não respeita, a de Eugene, o inimigo cuja entrada em sua casa recusa de diferentes maneiras. Eugene acredita que a arrogância do rapaz será acalmada pela idade, pelo confronto com a vida e com as suas dificuldades: “At 21 or 22, so many things appear solid and permanent and terrible, which 40 sees in nothing but disappearing miasma. 40 can’t tell 20 about this. 20 can find out only by getting to be 40.”
O paternalismo inerente à afirmação de Eugene, que recorre no extraordinário coro dos habitantes de Minneapolis, sedentos de ver George ter aquilo a que chamam os seus commeupance, interessa-me não pelo seu moralismo, quanto pelo modo como lembra a necessidade de distância para poder avaliar qualquer fenómeno. Nesse sentido, a aceleração possibilitada pelos motores de Eugene é inútil quando se trata de aferir a direcção que o veículo vai tomar. Como o próprio inventor lembra sobre a sua invenção — e é esse o único ponto em que a razões de Eugene e as de George se tocam, o ponto em que a estagnação e mobilidade das coisas pode ser finalmente vista em perspectiva (o futuro) —, as suas consequências são imprevisíveis. Só daí por uns anos, admite Eugene, será possível saber se os automóveis deviam ou não ter sido inventados, admitindo que umas décadas adiante talvez se conclua que todos os aparentes passos em frente possibilitados pelos avanços tecnológicos constituíram afinal recuos civilizacionais.
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. The Magnificent Ambersons (O Quarto Mandamento, 1942) é parte dessa lista.