É um tema recorrente quando a discussão se centra no cinema português e em particular na falta de adesão do público aos filmes nacionais, na distância entre um cinema de autor cada vez mais premiado internacionalmente e celebrado pela crítica, mas que, apesar de algumas excepções, não encontra correspondência em termos de bilheteira, e, do outro lado, uma ideia de um cinema português mais popular, mais comercial e mainstream, que muito raramente produz obras culturalmente relevantes e que não encontra correspondência na crítica, mesmo que consiga bater recordes de bilheteira. Estes últimos tratam-se quase sempre de filmes esquecíveis, por vezes ligados a fenómenos culturais populares passageiros (ligados à música, à televisão), que mais do que atrair novos públicos para o cinema português, acabam, pela mediocridade das obras, por afastar esse público, convencido da falta de qualidade pela escassa amostra a que têm acesso – se olharmos para uma lista dos filmes portugueses com maior público, encontramos filmes como o remake O Pátio das Cantigas (2015), 7 Pecados Rurais (2013), Filme da Treta (2006) e Morangos com Açúcar (2012); olhando só para os filmes estreados em 2021, Bem Bom (2021), o biopic sobre as Doce, teve cerca de sete vezes mais público do que A Metamorfose dos Pássaros (2020), que por sua vez foi menos visto no cinema do que Irregular (2021), realizado por Diogo Morgado.
O mais recente filme de uma das vozes mais destacada desta corrente que propõe um cinema mais popular, António-Pedro Vasconcelos, é um exemplo desastroso de como têm falhado essas tentativas de um cinema comercial e de qualidade, e de como estas acabam por ter um efeito pernicioso sobre a ideia geral da qualidade do cinema português: Km 224 (2022) é um esboço de filme onde as personagens são caricaturas presas a situações caricatas, num drama-comédia que não é um nem outro (e vamos ignorar as implicações da ideia de responsabilização da mulher por uma separação), e que acaba a meio por ter esgotado as ideias – se a única vez que alguém vai ao cinema ver um filme português acaba por ver algo como Km 224, é natural que tão cedo não queira repetir a experiência.
É neste contexto que as recentes obras de Tiago Guedes, antes com A Herdade (2019), e agora com Restos do Vento (2022), surgem como uma proposta interessante para o dilema da falta de público, dois filmes que precisamente por não serem dominados por essa ideia de apelarem ao público, por não menosprezarem a sua audiência, conseguem encontrar um meio-termo para uma linguagem cinemática convencional mas sofisticada, e alicerçadas acima de tudo em argumentos sólidos e interpretações eficazes (de José Fidalgo a Albano Jerónimo vai uma distância maior do que a Pan American Highway). Se A Herdade era acima de tudo marcado por uma técnica irrepreensível (imagem, som, narrativa), e um tratamento clássico mas também próximo da televisão, Restos do Vento (2022) surge como uma proposta interessante a espaços, por causa de algumas escolhas mais arriscadas e menos óbvias.
Porém, o filme nunca recupera o fulgor e acima de tudo a assertividade inicial, perdendo-se numa indecisão entre o olhar acusatório e a empatia para com as acções das personagens.
O momento onde isso é mais visível em Restos do Vento é na sua sequência inicial, um acutilante olhar acusatório sobre as estruturas de poder que a tradição e a manutenção de hábitos estabelecidos acarretam, como formas de perpetuação de ideais perversos e antiquados, como a autoridade patriarcal e a marginalização de quem ensaia fugir à norma. Guedes filma uma espécie de praxe de iniciação, um ritual pagão semelhante a muitos outros, numa aldeia do interior, num dia em que o “espírito” do vento anda à solta nessa comunidade e jovens disfarçados procuram por raparigas que se atrevem a estar na rua para as castigarem – é a humilhação como forma de integração e perpetuação da ordem, muitas vezes através da violência, que na verdade são de exclusão de quem não aceita as regras instituídas.
O filme acompanha um grupo desses jovens mascarados que, como forma de preparação, são primeiramente obrigados a beber álcool pelos homens mais velhos, agredidos, e até obrigados a baixarem as calças e inspecionados, para depois serem incentivados a “divertirem-se” segundo a tradição. Quando encontram uma jovem rapariga na rua, perseguem-na até esta se se refugiar em casa, mas é a própria mãe da rapariga que abre a porta de casa porque esta deve seguir os ritos da tradição (diz até algo como “brinquem, mas com cuidado”); quando os jovens encurralam a rapariga no seu quarto, a cena rapidamente parte para violência sexual, até que um dos mascarados impede que as coisas vão mais longe, sendo depois prontamente castigado e espancado pelos outros, mais uma vez com o incentivo dos mais velhos, por ter quebrado as regras do costume.
São poucos minutos, porém estamos completamente à mercê do olhar intranquilo da câmara, com movimentos bruscos mas certeiros, em que não há um plano superficial que não esteja ao serviço de construir um gradual sensação de desconforto perante o desenrolar da acção, como espelho da inquietação do momento (e do espectador). Particularmente eficaz é a opção da falta da indicação de uma personagem protagonista com quem nos devemos identificar, pelo menos até ao plano final desta sequência, uma imagem-reverso do primeiro plano, na qual ecoam durante alguns segundos os danos do que acabamos de testemunhar.
Quando regressamos à história passaram já muitos anos desde o momento anterior, e o rapaz que foi agredido, Laureano (interpretado por Albano Jerónimo), é agora um homem solitário que vive rodeado dos seus cães na quinta herdada do pai, que percorre a aldeia a mendigar por cigarros, e que é visto pelos outros habitantes como um pobre coitado que tentam evitar. Apenas uma mulher se preocupa com o seu bem estar, Judite, a rapariga que foi “salva” por ele durante o ritual, e que é agora casada com outro participante da sequência inicial, que por sua vez é agora o polícia da aldeia; outro dos rapazes, Samuel (ao qual Nuno Lopes entrega a habitual intensidade), é agora dono de um negócio local.
O filme é bastante correcto a criar um retrato da comunidade e dos efeitos da passagem do tempo, com um olhar transversal sobre as várias gerações – algo que Guedes tinha já feito com A Herdade – e sobre a forma como hábitos e modos de vida se perpetuam, com o peso do passado sobre o presente como algo obscuro que paira no ar: agora é a vez dos filhos, em particular a filha de Judite e o filho de Samuel, navegarem as consequências da recuperação do tal ritual pagão, entretanto abandonado mas que ameaça voltar.
Restos do Vento muda ainda de direcção perante o mistério da morte de uma das personagens, e da resolução do seu assassinato, aproximando-se de um thriller policial de investigação que, de forma eficaz, revela as dinâmicas desta pequena comunidade (de como as diferentes personagens são afectadas e de como se refugiam em modos de auto-preservação, manchadas por hábitos antigos). Porém, nunca se recupera o fulgor e acima de tudo a assertividade inicial, perdendo-se numa indecisão entre o olhar acusatório e a empatia para com as acções das personagens. É mesmo o ponto menos interessante do filme, o tratamento por vezes dado a Laureano, como um simplório inocente e inofensivo, incapaz de perceber o mundo, vítima das suas circunstâncias, sem agência. O facto desta personagem ser tão central ao filme e ao mesmo tempo, pouco desenvolvida ou unidimensional é um problema, uma simplificação que contrasta com a complexidade dada à abordagem visual e ao desenvolvimento do tal sentimento de incapacidade de fugir ao peso do passado.
Por isso, acaba por ser surpreendente o rumo do acto final, cedendo ao pessimismo num mergulho sombrio, mas mesmo aqui não é claro se há uma condenação do que acontece, ou se é apenas a constatação e aceitação de uma inevitabilidade, de uma forma de sobrevivência. De qualquer modo, como proposta para um cinema mais comercial mas de qualidade é mais do que interessante, e levará certamente o público que estiver disposto a arriscar neste filme português a procurar propostas semelhantes no futuro.
★★☆☆☆