A disrupção lançada por um ruído de elevada tonalidade pode sugerir o erro: uma interferência da harmonia esperada. Mas aqui partimos desse lugar do inconcebível: a criação de uma cama do (suposto) defeito onde nos permitimos estender, observando os movimentos projectados.
Sur la dune de la solitude (1964) de Timite Bassori
Acompanha-nos, inicialmente, enquanto seguimos os passos mecânicos de veículos desconhecidos que compõem um plano de vida na escuridão de uma estrada que os guia a lugar incerto. Esse é o colectivo de que partimos para uma chegada ao particular: somos transportados, enquanto um só, ao santuário de encontro. O espaço de cruzamento entre o humano e o natural, entre o terreno e o sobrenatural: o lugar onde a solidão pode trazer consigo a possibilidade de novas rotas.
O ruído não dissipa: em ondas de diferentes frequências, vai, no entanto, cruzar-se, por vezes, com sereias que, em (im)perfeita (des)coordenação, deslizam num gesto que escapa a si próprio mas que sempre se reconstrói. Este é o chamamento que induz uma divagação metódica: a locomoção que parte de um homem que, em si, procura um todo no vazio da composição arenosa.
Cânticos de despedida dão [um (in)certo] embalo ao choque de quem perdeu alguém. De quem ficou.
Breves montanhas de obstáculos (i)movíveis integram esse caminho – que muites reconhecemos – que parte da incerteza e se destina à união. O corpo não entra na busca pelo avanço constante, e permite-se ao relaxamento nas camadas da superfície. Irrompe-se o mergulho. Como que numa invocação pelo inesperado, uma aparição: aquela (outra metade). Uma unidade de plenitude.
Uma mulher do reino do improvável. Da distância à aproximação, à consequente distância, à inevitável aproximação. Criam-se trajectórias de expansão do (ir)resistível. Na vulnerabilidade desenha-se a partilha da mitologia, do espaço do (re)conhecimento do colectivo, com contornos resultantes de especificidades possivelmente divergentes em certos pontos de contacto. Nesse mar (fora) do comum, lança-se o mote para a remoção de todas as camadas irrelevantes para os corpos – e espíritos – que pretendem navegar.
O ruído mantém-se. Mas o convite das ondas é irresistível: o mito aguarda pela entrada de quem, no seu jeito de delírio (in)voluntário, (pensa ter) encontra(do) algo mais no plano do concreto. Após a magia do contacto (com o) próximo no seu estado mais absoluto – a erupção do desejo pela fusão dessa profundidade de lábios que se tentam – regressamos a terras movediças. Onde a unidade se transforma na solidão mais uma vez. Se na noite tivemos a presença, com a luz como força dominante temos uma partida. Ficamos com um homem que vê o santuário a desvanecer, ganhando novas formas, e uma fuga que impõe o regresso ao novo dia (esse “ao que vem depois”).
O ruído – esse amparo do hábito – já não está connosco. Rompe-se a estranheza para com a harmonia e lembra-se o (des)conforto. Nesse plano de reestruturação, deparamo-nos com histórias de morte e damos mais passos motorizados para um novo espaço: o lugar de abrupta constatação de que o mito se permitiu elevar ao plano da realidade de uma noite. Do colectivo ao particular, de uma vida a outra que não jaz nas camadas do terreno (em novos universos do possível). Cânticos de despedida dão [um (in)certo] embalo ao choque de quem perdeu alguém. De quem ficou. Celebrando – e homenageando – sempre o tempo por cá passado, o espaço criado entre aqueles com quem o contacto (também) criou existência.
O silêncio agora acompanha quem corre pela compreensão. Um golpe de dureza na planície. Os obstáculos movediços parecem somente dunas de um caminho já passado na luz – mas não esquecido. É essa, na verdade, a matéria da aproximação: a superfície da fluidez das mais pequenas composições rochosas – nessa dureza, nessa infinitude – que voam com o abraço do vento. A realidade da noite é a ficção do dia. Mas será mentira?
O ruído sumiu. Surge o cântico. As dunas movem-se. Resta a memória.