Recordo-me bem do momento em que me apercebi que ler a poesia nas pessoas ou, melhor, começar a conhecê-las partia sempre do mesmo ponto. O corpo. Como este reagia e se comportava no espaço. A sua entrada, permanência, e saída. Mais do que som, mais do que língua, era o corpo e a forma que este adoptava que liquidava a expressão mais imediata, a verdadeira. De Claire Denis a Béla Tarr, passando por Apichatpong Weerasethakul e claro, Tsai Ming-Liang, o cinema do corpo pega no gesto e como este irrompe e marca o espaço, manchando-o dentro de uma ideia de tempo ainda por coagular, para então fazer dele evento de comunicação. VỊ (Sabor, 2021), que chegou miraculosamente ao circuito comercial português depois de abrir muitos olhos na 71.ª Berlinale (acertadamente dentro da secção Encounters, onde arrecadou o Prémio Especial do Júri), é um bom exemplo de um destes eventos. Especialmente porque é multifacetado. Se por um lado, transforma o corpo numa condição meteorológica onde a sua interioridade se vê exteriorizada, por outro vai cavando até conseguir relatar a natureza da materialidade imóvel das coisas que, de tão invisível, formiga com a fúria das sementes que se lembram de ter crescido.
Trocando isto por miúdos, cruzei-me com a palavra ‘descadeirado’ num filme francês no fim-de-semana e nenhuma outra expressão atinge a magnitude daquilo que Bao Le nos oferece nesta que é a sua primeira longa-metragem (sim, é difícil de acreditar). Tão oceânica quanto telúrica, o jovem realizador apresenta-nos uma premissa aparentemente magra que sustenta a história do atleta nigeriano Bassley (Olegunleko Ezekiel Gbenga), imigrado em Saigão, no Vietname, um jogador de futebol que perde o seu lugar na equipa quando parte uma perna, nada lhe restando a não ser trabalhar num salão de beleza e viver com quatro mulheres de meia-idade aparentemente confinadas (ou será escondidas?) num abrigo industrial de pedra e betão que adopta o formato de um bunker abandonado. Numa sucessão de quadros fixos (por vezes também vivants), maioritariamente silenciosos, opacos e tão espectrais que mereciam pertencer às paredes de um museu de arte contemporânea, VỊ tem o paladar que dá a forma e significado ao ser-se humano, mesmo e especialmente quando olhado através da lente de um estetoscópio; é documentada uma imensidade de movimentos ritualistas e comunais entre corpos que, na sua mais profunda nudez, lavam, cortam, medem, costuram, massajam, cozinham, comem, fazem sexo e dormem. Nos momentos de repouso, abrem-se à partilha das suas histórias que abarcam tanta solidão, e os demais sonhos e desejos cegantes que os mantém (e a nós) inteiros.
Esta é a viagem do que permanece quieto, tão quieto que adquire velocidade a uma determinada altura. Com isto quero dizer, a imagem deste cinema é gesto, e o gesto um abraço para com as almas que vagueiam por superfícies herméticas.
Envolta num azul sombrio que nos engole, a luz da escuridão de Bao Le quer teatralizar a vida que vagueia presa na imobilidade, mas o que consegue mesmo fazer é tocar na noção de tempo presente, como este se estende ou não pela eternidade, o que é a fantasmagoria da vida e como se cruza com a morte sem para ela olhar. Tudo neste filme-ambição é, antes de mais, primordial e biológico. Não se deve procurar-lhe um contexto. Claro que, na obliquidade do seu objecto e óbvia estranheza poderá residir uma ideia de dispositivo artificial.
Dá-se ar a um balão azul, composto de tecido, numa sala quase tão grande quanto ele (a sala respira através dele). Um caracol é retirado de cima de um pénis. Ou Bassley abraçado a um cadáver de um peixe espadarte. Talvez imagens demasiado plásticas para o seu próprio bem. Mergulhar no filme dá-lhe, no entanto, as dimensões necessárias, como quem opta por descer escadas abaixo num navio para fazer parte das profundezas do oceano. Mas há que querer mergulhar primeiro. Às paredes húmidas, por onde sons ecoam sem viajar, Bao Le combina aquilo que é subterrâneo e por isso terrivelmente vulnerável (a roçar o amedrontador) com o que é tão reconfortante que atinge quase um nível embrionário das suas capacidades. Por entre os labirínticos canais fluviais das favelas, este é o submundo onde um porco que será, para todos os efeitos e segundo o que nos é mostrado ao longo do filme, eventualmente morto e comido, primeiro lavado e acarinhado. Vive não só entre, mas com os humanos. De uma forma muito simples, o realizador encontra uma espécie de utopia no que é obrigatoriamente degradado e pardacento.
Estando o transe de slow cinema instalado, nos intervalos de inspirações e expirações várias, a claustrofobia daqueles quartos escuros e corredores esquálidos vai exemplificando como um ser se liberta de uma caixa enquanto dentro dela se encontra. Afinal ali não há portas como numa casa. Não há adornos. O corpo da estrutura ocupada permanece nua, tal e qual os corpos dos seres, ora flácidos ora esculturais, que nela respiram. Também nada se estende nela ou fica mais elástico. No entanto, muito lá parece perdurar. Mais uma vez, voltamos ao início. O corpo e como este irrompe espaço dentro, marcando tudo o que, perante a luz natural do sol, não se conseguiria ter em consideração.
Comparar a pontuação que Pedro Costa tem construído com este novo entendimento de Bao Le é de uma facilidade absurda, mas tem pano para mangas. Enquanto ambos homens estão interessados nas arestas que delimitam (ou não), mas confrontam sempre as pessoas, os seus corpos e as casas que os abrigam pobremente, a promessa da sensualidade que é garantida em VỊ abre um outro portal, que vai para lá das trevas e da fantologia [ontologia do fantasma] do colonialismo de Costa. Tudo o que vive nas sombras daquele bunker é matéria pura, preparada para ser transformada em coisa. Se há fantasmas são os da melancolia do Eu. A viagem que vemos Bassley fazer é a viagem do que permanece quieto, tão quieto que adquire velocidade a uma determinada altura. Com isto quero dizer, a imagem deste cinema é gesto, e o gesto um abraço para com as almas (nunca perdidas, antes encontradas) que vagueiam por superfícies herméticas.
Por isto mesmo, nunca me ocorreu pensar no filme enquanto um exercício sobre a pobreza ou a miserabilidade de um país. Fazê-lo fechava de imediato todas as suas outras possibilidades. E ainda que nos seja dado um ponto de vista voyeurista – não há propriamente moscas nas paredes, mas o rigor dos enquadramentos é, por vezes aquele das câmaras de vigilância que registam os eventos longe da percepção dos que por perto se encontram –, as acções performáticas, especialmente as mais sinistras, provocam o olhar que não desiste, e que por conseguinte, traz consigo os instrumentos da imaginação que nos leva a querer que vemos muito mais do que aquilo que ali se encontra. Enquanto a noção de tempo permanece estagnado e à espera, ainda por reconhecer – impossível ter uma ideia da sua medida – o processo de leitura vai da dimensão da personagem deslocada para a constituição do que faz daquela pintura algo vivo.
Recupero o que Manoel de Oliveira disse à revista Cineaste em 2008, “(…)Simulo internamente. Alguém disse que o presente é eterno, mas o presente é imóvel. É exactamente como as imagens em película, cada uma é estática e nós apenas vemos movimento na sua sucessão.” O movimento encontra-se na passagem e acumulação dos vários quadros. A absorção destes é apenas o outro trabalho comunal de que Bao Le nos fala e o outro lado da utopia que VỊ ensaia.
A conclusão onde ele chega – e que belo é aquele último plano – só ilustra ainda mais a ternura dos muitos fotogramas, de onde sua uma constelação de desejo em comunicar, partilhar, estar próximo das coisas vivas. Que espanto de estreia (obrigada à distribuidora Legendmain Filmes pelo tão importante contributo). Bao Le pede-nos que continuemos a perpetuar o abraço-trabalho. O seu VỊ realiza o processo da hipnose estrelada que nos faz ver aquilo de que o cinema é realmente feito.
★★★★☆