Madness. It runs through the mythic life of woman like a stream running down through a rain forest, seeking the level of the sea. Women go mad. (…) Much more than suicide, madness is the symbolic illness of life.” Vivian Gornick, no ensaio Woman as Outsider, dentro de Woman in Sexist Society - Studies in Power and Powerlessness (1972)
Começar um ou qualquer ensaio com uma citação de Vivian Gornick pode ser premonitório de um manifesto. Não será o que pretendo evocar. Apenas escrever sobre alguns dos seus argumentos, estes que à minha frente se anunciaram quando encontrei dois filmes, ambos estreados no ano de 1957 (estranhamente) e feitos do mesmo tecido; estudos sobre um transtorno mental com diferentes abordagens, que acabam a duplicar o esforço e traçar o lugar da mulher na sociedade ocidental no final dos anos 1950 e, consequentemente, o caminho percorrido desde aí.
Sob o efeito da força inflamatória que é a série documental de Ethan Hawke, The Last Movie Stars (2022), uma crua hagiografia sobre o lendário duo de Hollywood, Joanne Woodward e Paul Newman, voltei as minhas atenções para alguns dos filmes conduzidos por Woodward sem o parceiro e descobri The Three Faces of Eve (As Três Faces de Eva, 1957), um curioso filme realizado pelo conhecido argumentista e produtor Nunnally Johnson que, nas entrelinhas, vem a inspeccionar o acto de se ser mulher (uma e qualquer), associando o comportamento inadequado a uma condição. Ao relatar um estudo médico, o papel da mulher é individualizado no processo, e o filme sorri. Na sua origem está um trauma de infância. A loucura afinal não era fabricação feminina, mas uma resposta à violência provocada. À sua volta, homens analisam-na para que seja rapidamente corrigida e para que possam depois fazer dela narração. No plateau, Woodward também fala sobre si . Mas o filme não quer saber da sua personagem.
No íntimo da filmografia de Joanne Woodward repousa um poço infindável de tesouros, ora desconhecidos de todo, como é o caso da maior parte dos majestosos telefilmes que energizou, ora ofuscados por tudo o que veio depois. Comecei pelo fim. Quando cheguei a A Kiss Before Dying (Amor, Prelúdio de Morte, 1956), aqui deveria ser possível ver uma actriz acabada de chegar. Mas independentemente da fibra do papel ou do peso estrutural do filme, o talento de Woodward já conduzia naquela altura uma carreira. E, no entanto, são poucos aqueles que reconhecem ou dão a atenção merecida à sua electrizante filmografia – Zoe Kazan refere nomeadamente, a uma determinada altura na série, que não viu nenhum destes filmes. Com Woodward, tudo se voltava para a agilidade do corpo. Performances controladas no seu descontrolo, as mulheres de Woodward explodem em temperamento enquanto fazem delas mesmas iscos. Mas não querem histórias de amor. Querem-se a si mesmas. Juntando uma multitude de sotaques característicos do interior sulista americano aos músculos que não vacilam, uma actriz vivia em Joanne, e é incerto se dela alguma vez saía. Não eram todas as mulheres actrizes nos anos 1950?
Sem grandes surpresas ou aberturas gramaticais para uma qualquer subversão (…) há em The Three Faces of Eve uma relutância em realizar o derradeiro gesto humano: partir à procura do que conta. É por isso justo ver nele uma jaula televisiva. E há que ter em consideração que, ao contrário da televisão, o cinema é inconsumível porque parte sempre do que não é possível ver de outra forma.
Não demorou muito tempo. Em 1958, foi galardoada pela Academia com um Oscar de Melhor Actriz por The Three Faces of Eve, até ali apenas a sua terceira longa-metragem. Sobre este sabia-se que seria um filme sobre a fragmentação de uma mulher em três distintas personalidades, que do mesmo corpo vivem e que dele vão irrompendo. Noutras palavras, um filme que queria falar do transtorno dissociativo de identidade, controverso entre psiquiatras ao longo do mundo. Estávamos no final dos anos 1950. James Dean tinha perdido a vida num acidente de carro. A indústria cinematográfica tentava, com unhas e dentes, reestabelecer o seu domínio após a crescente popularidade da televisão. Elia Kazan e Nicholas Ray estavam na ponta da língua de qualquer espectador que, uns anos depois, procuraria no cinema uma visão radical do mundo. A única possível. O filme de Johnson é tudo isto ao mesmo tempo. Um meteoro de uma performance; mexe com os cordelinhos mais sociabilizados da televisão; encontra o realismo cinemático de Kazan, a acção expressiva dos seus actores, e é profundamente transformativo e repulsivo nos seus termos: aborda o conceito da “loucura feminina” como saída da opressão, mas fá-lo sempre sem nunca accionar o olhar de quem dela sofre.
Mas antes que alguém soubesse o que o filme era ou o que poderia ser, The Three Faces of Eve funcionaria como objecto-anúncio na sua exigência de uma ideia grandiosa de performance. Perfeito era para apresentar Woodward ao mundo que até então ainda não a tinha visto. Era um filme de e para uma actriz. E um que se oferecia ao espectador: vestia-se com uma janela CinemaScope e dizia ao que vinha nos primeiros minutos. Parecia ser uma Hollywood que tentava contrariar uma fórmula a ela associada até então. Não haveria premissa, não era biográfico ou documental. Podemos-lhe chamar de exposé da realidade. Ou sua tentativa. Na mesma altura, outro filme (o preferido dos espectadores, desconsiderado pela indústria) fazia tudo isto através da ficção. Lizzie (Desejos Ocultos, 1957), filme de Hugo Haas, actua como uma espécie de filme-irmão melhorado. Estruturalmente refinado, trajado de film noir e também ele formulado para a performance de uma forte actriz, Eleanor Parker, tencionava ir mais longe para destapar o véu dos crimes (neste caso, sexuais) infligidos contra jovens raparigas. O primeiro ficava-se pela abordagem e o segundo completava-a.
“I don’t want to do this”, diz Joanne ao seu agente, depois de ler o argumento na viagem de comboio de Nova Iorque para Chicago. Este, por sua vez, returque que ela teria que o fazer and that’s that. A presença da narração, e adicional prefácio, do jornalista e comentador Alistair Cooke numa sala de cinema divulga o que iremos ver, e muita ênfase é feita sobre a sua veracidade. “Esta é uma história verdadeira (…) muito do diálogo é retirado do registo clínico.” Havia uma mulher no estado da Georgia nos anos 1950 que apareceu num consultório com queixas de enxaquecas, desmaios e perdas de memória. Transcrições das suas muitas sessões com os psiquiatras que diagnosticaram o seu transtorno vieram a constituir um livro homónimo, um sucesso de vendas. A mulher em questão existia. O seu nome era Chris Costner Sizemore. Mas Hollywood não o revelou logo. O nervosismo de Joanne justificava-se.
Posto isto, numa torrente desajeitada de episódios pintados por um preto-e-branco desidratado de tão orquestrado, Eve White, uma dona de casa, esposa e mãe oprimida – “sem cor”, diz-nos o livro – aparece no escritório de um psicólogo depois do abusivo marido notar diferenças no seu comportamento. Maioritariamente alternando campo com contracampo durante a acção-chave, fades in e fades out entre ela, o olhar nada versado de uma câmara, que coloca sempre a seu centro os personagens, tem dificuldade em alcançar um saber. Não está confortável, o que leva a querer que não tem qualquer desejo em reflectir sobre a complexidade da mente humana. Mas talvez a razão principal seja uma de dificuldade respiratória na sua estrutura. Não sabe que é ao ser invisível que olha de perto. Acompanha todos os movimentos de Woodward ao milímetro, quase como que impedindo-a de deambular pelo espaço em mãos. Ou seja, segue a performance de Joanne em vez de seguir Eve.
E se a estratégia cinemática é por demais simplista – diria até, gorda de um dramatismo inócuo –, enquanto objecto observacional psiquiátrico, como ainda é conhecido, revela a sua idade. Se voltarmos ao início, em Eve reside uma máscara dissidente e indomável na persona de Eve Black, e mais tarde uma outra, equilibrada e sociabilizada a que todos passam a denominar de Jane. E todas lhe aparecem após uma enxaqueca fulminante. Quando aquela dor de cabeça se anuncia, Woodward coloca as mãos na cara e um sorriso matreiro por entre olhos sabedores provoca a metamorfose abrupta. O filme faz deste processo cambalhota e nele vai caminhando, cada vez com mais confiança até a nascente de eventos gradualmente empurrar a confusa dona de casa (Eve White) e a sua antagonista (Eve Black) para a extinção. Sem grandes surpresas ou aberturas gramaticais para uma qualquer subversão (tendo em conta a temática em questão, bem que esta poderia ter sido impressa), conclui-se que há em The Three Faces of Eve uma relutância em realizar o derradeiro gesto humano: partir à procura do que conta. É por isso justo ver nele uma jaula televisiva. E há que ter em consideração que, ao contrário da televisão, o cinema é inconsumível porque parte sempre do que não é possível ver de outra forma.
A performance destemida de Woodward relembra tantas décadas depois, como um postal do passado, que a “loucura” não é a doença; a doença é e continua a ser os outros.
Seria, no entanto, possível espremer uma qualquer resposta antes de este atingir o seu último sopro. Mas tudo se altera quando o vemos a cair num apregoar prematuro de uma “cura” para o distúrbio em questão, conseguida a olho nu através da hipnose. Num momento catártico, Jane informa que matou as outras duas personalidades. O plano dos dois psiquiatras tinha vencido. Numa momento crucial, talvez o mais importante de todos, estes são vistos a discutir quem deveriam deixar apoderar-se da pobre mulher: “A verdade é, nem Eve Black… nem a Sra. White são uma solução satisfatória. Nenhum delas é qualificada para desempenhar o papel de esposa, mãe… ou até a de um ser humano responsável. Uma vitória para qualquer uma delas seria desastrosa…” Eve era apenas uma cobaia para um estudo maior. E no final, acaba substituída por uma versão melhorada de si mesma, de mulher aperfeiçoada, que segue feliz após o seu divórcio e a reconstituição da sua família num carro em direcção ao metafórico pôr-do-sol Hollywoodiano. No fundo, o que o filme nos conta é que é perfeitamente possível trazer ao de cima a carcaça de uma mulher recalcada, incapaz de lutar. E de que, em vez da transformação ocorrer – Eve White continuar a ser Eve White, e viver por e apesar do que lhe aconteceu, esta acaba dissolvida.
No outro lado do espectro, Lizzie, partindo do livro ficcional de Shirley Jackson, The Bird’s Nest, conta-nos exactamente a mesma história, mas quer provocar a mudança e, para o fazer, coloca a paciente a reportar o abuso no qual a mulher cresce, e as várias consequências que daí derivam (nomeadamente a incapacidade de se criar à sua própria imagem e eventualmente florescer). As várias personalidades surgem como doppelgängers, umas em frente às outras, sugerindo corpos diferentes. Enquanto The Three Faces of Eve acaba preocupado com o conceito repelente da mulher que deveria ter sido e pode ser outra vez, fazendo referência à possível moldagem desta dentro da infra-estrutura psiquiátrica, Lizzie procura dar voz à inquietação, viver o pesadelo do encontro dostoievskiano do Eu. Talvez seja rebuscado, mas não levará esta equação ao despoletar da caixa de Pandora que sugere que as mulheres não merecem uma existência plena se não forem padronizadas em caixas? Se não vestirem a versão delas mesmas que é a mais bem ajustada?
Segundo o The New York Times, Chris Costner Sizemore “enfrentou uma identidade fragmentada até meados dos anos 1970 (…), até as suas personalidades – não três mas mais do que 20, revelou-se – serem unificadas.” Hollywood é uma figura do real. E aqui nem sabe abordar a natureza cerâmica da doença mental nem empoderar a mulher que dela padece. No livro, tudo se resume à frase introdutória: “No início, ela não parecia uma paciente incomum ou até particularmente interessante.” A mulher é também e especialmente as faces que dela explodem, naturais ao seu desenvolvimento e encarregues de a proteger, esta que está condenada a repetir a sua história ao longo do tempo em sociedades sufocantes. As palavras do marido de Eve, proclamadas no início do filme continuam a ressoar na conclusão deste: “You know what you need? You need a darn good whippin’ that’s what you need. Knock some of that nuttiness out of you.” A performance destemida de Woodward relembra tantas décadas depois, como um postal do passado, que a “loucura” não é a doença; a doença é e continua a ser os outros.