Quando James Benning diz a Scott MacDonald (Artforum, 2007) que “tenho que conhecer um lugar antes de o filmar”, o verbo conhecer perde o seu significado. Torna-se ampliado, é superior e atinge a outra margem do saber que trespassa todas as superfícies. Para Benning, não é só a política do país ou a cultura e os afazeres das suas pessoas; é a paisagem industrial e urbana, as árvores que a rodeiam, os pássaros, e o céu. É o encontro com a Natureza que comanda as coisas. Os movimentos e os cheiros, os ritmos e o que neles pede comunhão. Em Benning é encontrado o cinema que habita um lugar harmonioso sem fisicalidade própria; é secreto, é de cada um, e nele podemos viver sem tempo, sozinhos mas juntos, elevados do chão e incapacitados pela fala, porque maravilhados pela vida que nos é mostrada primeiro e da qual passamos a fazer parte depois. Com uma travessia que se iniciou no festival de Berlim em Fevereiro, em The United States of America (2021), Benning volta à América que tão bem conhece, onde expõe uma pergunta e uma resposta. A primeira é urgente, a segunda impossível. Nenhum outro festival, e especialmente não o DocLisboa com o seu mar de olhares e suas muitas contradições nesta 20ª edição, poderia desejar um abrir de portas mais iluminado.
Um dos comandantes do assim tido slow cinema, denominação que tenta colocar numa caixa aquilo que canaliza a sua energia numa noção oposta, na libertação, Benning tem provocado no espectador o que Paul Schrader articula num retrato documental encaminhado por Alex Ross Perry (Paul Schrader: Man in a Room, 2020), certo de que o seu First Reformed (No Coração da Escuridão, 2017) nutre das características em questão (o filme é grave, mas sanguíneo no seu contar narrativo). “Parte da experiência do slow cinema é dares-te à experiência”, diz, antes de igualar tal empenho ao acto de comparecer a um evento religioso e permanecer ali até ao fim. Mas este faz ênfase ao uso da sala. A sala impede que o corpo exausto, que pede a saída, saía antes do fim. No entanto, para atingir o aborrecimento enquanto experiência estética não tem necessariamente de existir o elemento da sala. O aborrecimento pode ser testado e provocado em movimento também. Afinal, jogar com a repetição e a duração são a plasticina que molda os nossos dias. A presença não tem que ser ritualista, e o esquema não tem que ser aquele da sala que abraça e do filme que distancia, ainda que ajude a testar a paciência do espectador que sofre de ansiedade a mais e apatia de estímulos para conseguir ver de outra forma fortalecidas as suas capacidades perceptivas. Como quem precisa de livros grandes para ler, a experiência de estar embebido pelo ecrã, consciente mas estendido, fora do seu próprio corpo, ajuda a unir as várias arestas soltas na compreensão das nossas histórias, e mais do que isso consolida a ideia da vida enquanto aquilo que se encontra alojado nas pequenas coisas. É um motor para a esperança, no meio de tantas limitações.
O mais recente filme de James Benning parecia ser um refazer do que não nos tinha sido possível ver naquela curta-metragem em 1975. Uma continuação, por assim dizer, e um ampliar da visão.
O que Benning faz então é articular a procura por elas através do estudo da paisagem, colocando-nos de frente para com ela. Mais do que nas obras de Chantal Akerman, Jonas Mekas, Tsai Ming-Liang ou Lav Diaz, em Benning reside uma quietude que é bela de tão amável. A que ternamente associo aos trovadores de outrora. Nele, ouço um “olha aqui”, “repara nisto e não te esqueças”. A viver longe da civilização, nas montanhas da Sierra Nevada da Califórnia, não tem que aprender a respirar de forma torta. Nas montanhas tudo é só e puramente o borbulhar originário da vida. Pandemia colocada para trás, estreia o seu filme em Berlim e explica como este é uma resposta à curta-metragem com o mesmo nome que tinha realizado com Bette Gordon há quase 50 anos. Parte de uma trilogia de curtas de Benning e Gordon (e que a Criterion mostrou na sua plataforma de streaming no verão de 2020), The United States of America (1975) é o resultado de umas quantas viagens pela América do Norte do casal então recém licenciado pela Universidade de Wisconsin, antes de ambos se tornarem ícones definitivos do movimento estruturalista da década de 1970 e antes dos EUA retirarem as suas tropas do Vietname.
É sempre magnífico voltar a ele. De câmara de 16mm montada no lugar traseiro do carro, os vários percursos foram filmados e um trajecto editorial foi traçado – começam em Nova Iorque e encaminham-se até às praias californianas, em Los Angeles. Ao longo de 27 minutos, o casal vai de encontro à paisagem, sempre ao lado um do outro sem nunca convergir. A mesma verticalidade em que o filme será visto entre espectadores. Dentro do carro (e até este se ver inundado pelo mar), os dois vão trocando de lugares, conduzindo à vez. A nuca de Bette come uma banana ou coloca os pés em cima do tablier, enquanto segmentos da rádio (colados às imagens) tanto detalham o conflito no Vietname como evidenciam músicas de Rare Earth ou Minnie Riperton. Para além do que temos exactamente à nossa frente – o volante, o espelho retrovisor, o vidro da frente – está a paisagem. Num minuto estamos perante o que parece ser uma cidade urbana e nocturna, iluminada por néons, como de repente o carro está mergulhado na terracota do deserto.
Uma história é-nos contada. É uma mentira, mas não a que esperávamos. Tudo é possível mascarar. Até as paisagens.
Segundo entrevistas, foi o sucesso do reviver deste terceiro e último exercício formalista entre os dois realizadores que impulsionou Benning a fazer The United States of America (2021). Como quem viaja para a frente para poder rever o passado – a memória está sempre tão viciada –, à primeira vista o filme aparenta ser um voltar a 13 Lakes (2004), ou melhor ainda, à imersiva obra-prima que é Ten Skies (2004), no seu usar e abusar da duração para afinar o que é percepcionado. No ecrã, apenas luz e movimento. Cavalos. Nuvens, outra vez. A beleza cénica do que não compreendemos, do que parece que nos cobre, mas é apenas matéria que evapora. Claro que Ten Skies rapidamente se provou uma força sobre um esventrar ambiental. No livro de Erika Balsom sobre o filme (Fireflies Press, 2021), esta explora, a determinada altura, o caminho de reconhecimento e desilusão de Benning que parte à procura do que não teria sido invadido pelo ser humano, e quando lá chega, vê o seu interesse a mudar e a querer concentrar-se mais na questão da tenebrosa destruição provocada pelo humano do que na beleza pela qual esperava estar sob o efeito. Balsom completa, “Benning fixa o seu olhar nas transformações que ocorrem ao seu país, mapeando aqueles lugares mais convulsivos cujo esplendor choca com a celebração de acordos e capitalização.”
Embora de forma algo oblíqua, porque não directa, o seu mais recente filme parecia ser um refazer do que não nos tinha sido possível ver naquela curta-metragem em 1975. Uma continuação, por assim dizer, e um ampliar da visão. O elemento do carro desaparece e o que temos ali são as paisagens, cruas, que Bette e James contemplavam quando saíam do carro, em cada paragem. Combatendo essas repentinas transformações geográficas, e sempre sem uma identificação precisa das suas localizações, Benning escrutina agora, durante 95 minutos de matemática sensorial em 52 planos estáticos de dois minutos cada (um plano para cada estado, incluindo o distrito da Columbia e Puerto Rico), essa América que tinha percorrido antes. Mais uma vez, a rigorosa e libertadora experiência. Até as vinhetas que dela fazem parte estão organizados de forma alfabética – do Alabama ao Wyoming – num esforço de compor um registo tanto cumulativo como literário, da representação de um país dissimilar entre si e notável pelas suas dimensões grandiosas. E por mais que caminhássemos, a premissa parecia ser simplesmente esta: experimentar a vastidão das imagens filmadas e associá-las à América do nosso imaginário – os poços de petróleo em Oklahoma, os edifícios de betão em Nova Iorque, um campo de algodão no Mississipi são alguns dos exemplos mais claros.
Mas, como já acontecia na curta-metragem, a faixa de áudio conta uma história. Em 1975 era uma e a mesma. Em 2021, acrescenta e modifica. Por entre os vários comentários que olham à continuidade da segregação, racial, mas não só pelo país, Minnie Riperton regressa por cima das nuvens de Cleveland, Ohio (“Lovin’ you, I see your soul come shinin’ through”). Mas é Woody Guthrie com o seu “This Land is Your Land” que funciona como possível prenúncio para algo inesperado. No pronunciar daquelas palavras estava o passado e o presente do que naqueles lugares se continua a lutar e um anunciar de uma América montada. Noutras palavras, onde antes havia só as imagens a enevoar a narrativa com a verdade (ora por permanência ora por sucessão repetitiva), havia agora também ficção. Resvalaríamos na ilusão da simplicidade da mensagem – é esta a nossa América que Benning nos mostra, a mentira do nosso real… – até os créditos finais darem finalmente de si, e a acidez da ocorrência contornar o choque para o sorriso do reconhecimento. Nada se move lateralmente entre si em The United States of America (2021). E não há evolução para fora, só estagnação para dentro. A imagem cinemática deve ser questionada, e todo o filme é, na sua essência, concretizado na ginástica do seu desfeche. Um misto de alegria e frustração espalha-se por todos os envolvidos e sugere o único lugar onde vivemos. Uma história é-nos contada. É uma mentira, mas não a que esperávamos. Sem querer provocar a denúncia, direi apenas que a construção do significado da América que Benning oferece é apenas e simplesmente sua, a do artista que continua à procura. A diferença é que este já não procura o real da realidade. Tudo é possível mascarar. Até as paisagens.
O que Benning faz à América da sua vida e à nossa faz também à sua carreira, que está felizmente em permanente moldagem e redescoberta.
Como os instrumentos de trabalho só são oferecidos no seu rescaldo, passar pela experiência é definir uma ideia conceptual de algo que depois se revela um truque de magia. As vinhetas de Benning são como o lagos que tinha filmado no início do novo século. Transparentes, mas também poluídos. E sempre reflexivos. Mas nós não os vemos até nos falarem deles. Nós não vemos. Esticando o conceito ao infinito, o que Benning faz à América da sua vida e à nossa faz também à sua carreira, que está felizmente em permanente moldagem e redescoberta. Dentro do filme, elementos da sua carreira são abordados e retratados, o passado volta, revê-se e posiciona-se de lado, a ver a acção desenrolar. É um completar, para todos os efeitos. E depois, através do aborrecimento provocado, o filme abre-se completamente a nós e nós nadamos e trabalhamos por ele fora, numa tentativa árdua de, mais uma vez, unir arestas e circundar os possíveis danos. Até que, de repente, há um acender de luz demasiado potente para olhos habituados ao escuro. E tudo se perde. O que é a América afinal? E como poderá alguma vez caber num só filme? Temos de esquecer e começar do início. Lá vamos, outra vez. Mas agora já não é possível deixar de saber. “Repara nisto e não te esqueças”. Agora não me esqueço.
The United States of America é uma viagem pela América nascida, crescida, criada e re-criada segundo as regras daquela “land” que há muito não faz parte do sinal empoleirado nas montanhas de Santa Monica. Imperdível!
The United States of America passa hoje, dia 6 de Outubro, e dia 8 de Outubro, sábado, no âmbito do festival Doclisboa, no Pequeno Auditório da Culturgest às 21h30 e 14h15, respectivamente.