A 15 de Julho de 2012, o À pala de Walsh iniciava a actividade com um primeiro texto, escrito a oito mãos, pelos quatro fundadores do site. Entretanto passou uma década. Ao longo desses anos muitos foram os que escreveram connosco e publicámos mais de 2700 artigos, críticas, ensaios, textos coletivos, entrevistas, vídeos, conversas, ensaios visuais, crónicas e outras brincadeiras cinéfilas.
Depois de em Julho de 2022 termos apresentado o ciclo “10 anos à Pala” na Cinemateca Portuguesa, com 5 sessões seguidas de uma conversa sobre os filmes, apresentamos agora perto do final do ano uma outra iniciativa: o dossier “10 anos, 10 filmes”. Este dossier parte de um convite a um conjunto de realizadores portugueses cuja obra prezamos para nos ajudar a reflectir sobre o que foi esse cinema que por nós passou nos últimos 10 anos, através da escolha de um filme – que os tivesse surpreendido de alguma forma – e estreado durante esse período, acompanhado de uma pequena reflexão sobre essa escolha.
Hoje apresentamos a escolha de Catarina Mourão, realizadora de A Dama de Chandor (1999), Pelas sombras (2010), A toca do lobo (2015) e Ana e Maurizio (2020), entre outros.
A luz é quase branca, a terra é seca. Um grupo de crianças entram para o banco de trás de um carro que percorre uma estrada de terra batida. Percebemos que é o ultimo dia de aulas. Um adulto guia mas nunca o vemos. Um cão persegue o carro. Clara, uma miúda de dez anos olha-o preocupada. Acompanhamos o cão e já não estamos no plano subjetivo da miúda mas sim num registo mais onírico do filme, o cão que se mistura com a poeira do carro, à medida que foge da comunidade. No início somos levados a crer que Clara é a protagonista do filme, mas na verdade ela, que tudo observa, somos nós, dentro do filme e este cão que afinal é cadela, simboliza toda a ambivalência dos personagens que estão num momento de transição relativamente à família e à comunidade. “Should I stay or should I go now? If I go there will be trouble, if I stay it will be double”.
O filme acompanha o pequeno drama de Clara que quer reencontrar a cadela Frida, que entretanto foi adoptada por outra família e se passa a chamar Cindy. A cadela é forçada a voltar à comunidade mas nunca a sente como a sua casa e no fim é Clara quem a liberta. Este gesto fecha o filme, conferindo-lhe a circularidade que afinal é também a circularidade da vida, do crescimento e da emancipação. Na auto-ficção da realizadora estamos nos anos 1990, no início da democracia Chilena. Dominga Sotomayor explica-nos, em entrevistas, que se inspirou na sua infância para este filme, no tempo em que os pais foram viver com amigos em comunidade fora da cidade, um lugar sem eletricidade e água canalizada, onde adultos e crianças fazem a vida em comum. Mas se o cenário do filme é este pedaço de terra e o contexto, esta comunidade, o olhar da realizadora desvia-se para uma dimensão muito mais intimista, em que os pequenos dramas são vividos individualmente ou a dois, com uma sensibilidade e proximidade imensa.
À medida que avançamos no filme, vamos saltando de grupo etário, ora estamos com Lucas e Sofia que terão 14, 15, ou 16 anos, ora com os adultos que têm problemas logísticos relacionados com a falta de água. Lucas está apaixonado por Sofia e Sofia sente-se deslocada. Nela sentimos um mal estar, uma vontade de ter experiências, e uma nostalgia de uma mãe ausente. Sofia, sim, é a protagonista do filme, mesmo que a câmara mude de ponto de vista à medida que o filme nos transporta de uma forma muito orgânica para outros personagens e os seus pequenos conflitos e desafios. Os diálogos são tudo menos explicativos e muito mais ambientais. Vamos construindo o puzzle daquilo que são as vulnerabilidades e desejos de cada personagem: o pai que foi deixado pela mulher, que ficou com a responsabilidade dos filhos mas que se encontra bloqueado emocionalmente e parece não conectar com eles; Sofia que tem saudades da mãe, identifica-se com ela, e sente que esta comunidade já não tem muito para lhe dar, Lucas, filho de outro casal, amigo de infância de Sofia que a viu crescer e no entanto tem por ela um amor mais do que fraternal. Sofia é uma personagem entalada entre mundos e a sua fisicalidade, um bocado andrógena, parece a metáfora perfeita para essa encruzilhada entre a vontade de ser adulta e independente, ter a sua iniciação sexual, e a vulnerabilidade de quem vive na expectativa que a mãe chegue para a festa de fim de ano.
Trata-se de um coming of age film com todas os desafios e rituais iniciáticos que caracterizam esta passagem da infância à adolescência, mas aqui ao contrário de outros filmes não há um verdadeiro conflito geracional: quando os filhos desafiam os pais, estes não reagem. Há uma certa apatia de quem vive num mundo à parte apesar de se tratar de uma comunidade. A ambiguidade do tempo histórico do filme é também chave para nos envolvermos mais com ele. Afinal é também a nossa infância e adolescência que aqui se encena. Essa a beleza de Tarde para morrer jovem, título que envolve um certo paradoxo.
Quando vi este filme em 2018, relacionei-o de imediato com o filme de Alice Rohrwacher, Le meraviglie (O país das maravilhas, 2014), também ele inspirado na infância da realizadora, filha de pais “hippies” apicultores que nos anos de 1990 foram viver para a Umbria Italiana. Ambos os filmes têm uma abordagem quase documental na forma muito orgânica e espontânea, como as cenas e os diálogos que se sucedem. Mas enquanto o filme de Rohrwacher evolui para uma fábula e a personagem central é proactiva e tem objectivos claramente definidos (participar no “concurso das maravilhas rurais” ) aqui, no filme de Sotomayor, não há redenção no final, o máximo que o pai consegue fazer pela filha é proteger o seu corpo despido com a sua camisa. Há uma poesia do não dito que ecoa com mais força. Talvez por isso tenha ficado mais comigo.
Catarina Mourão