A 15 de Julho de 2012, o À pala de Walsh iniciava a actividade com um primeiro texto, escrito a oito mãos, pelos quatro fundadores do site. Entretanto passou uma década. Ao longo desses anos muitos foram os que escreveram connosco e publicámos mais de 2700 artigos, críticas, ensaios, textos coletivos, entrevistas, vídeos, conversas, ensaios visuais, crónicas e outras brincadeiras cinéfilas.
Depois de em Julho de 2022 termos apresentado o ciclo “10 anos à Pala” na Cinemateca Portuguesa, com 5 sessões seguidas de uma conversa sobre os filmes, apresentamos agora perto do final do ano uma outra iniciativa: o dossier “10 anos, 10 filmes”. Este dossier parte de um convite a um conjunto de realizadores portugueses cuja obra prezamos para nos ajudar a reflectir sobre o que foi esse cinema que por nós passou nos últimos 10 anos, através da escolha de um filme – que os tivesse surpreendido de alguma forma – e estreado durante esse período, acompanhado de uma pequena reflexão sobre essa escolha.
Hoje apresentamos a escolha de Susana de Sousa Dias, realizadora de Natureza Morta (2005), 48 (2010), Luz Obscura (2017), Fordlandia Malaise (2019) e Viagem ao Sol (2021), entre outros.
Quando se cria um filme, cria-se um pequeno mundo.
Este mundo pode funcionar segundo um sistema que assenta em modelos centenários e com regras tão enraizadas que as pessoas pensam que essa é a única forma de o mundo existir, ou, pelo contrário, é um mundo com um sistema tão próprio e singular, que nos permite ver e imaginar diferentemente, abrindo as nossas sensações e conhecimento.
O mundo de Yarokamena é circular, como o são os mundos do nosso universo e as suas representações. Uma das primeiras fotografias da Terra vista do espaço, a célebre Blue Marble, celebrada como uma imagem unificadora da humanidade, revela-nos afinal uma visão idealizada, mas também fortemente ideológica: a fotografia apenas mostra uma metade do planeta que, ainda por cima, teve de ser invertida para corresponder à visão imperialista do mundo ocidental: norte em cima, sul em baixo. O círculo circunscreve e dentro dele parece apenas caber uma visão.
Assim como o viram os navegadores que “descobriram” as terras além-mar, vemos de longe, através de um óculo, o mundo de Yarokamena. Mas sentimos no corpo a poderosa vibração do som. Pois esta é, afinal, uma circularidade paradoxal. Reverberando a forma das parabólicas, tanto mimetiza a visão distanciada e colonial, como nos obriga a focalizar o exacto ponto cego que esse poder tentou apagar. Tanto nos esconde parte do enquadramento, como nos aguça a escuta de Yarokamena, homem e mito, ideia e potência, cuja história de resistência e rebelião se actualiza nas palavras e no corpo de Gerardo Sueche que, envolto no manto que protege os sobreviventes de uma tragédia, é iluminado pela luz vermelha de combate.
Neste filme, a simplicidade dos meios de realização e produção é inversamente proporcional ao efeito que se produz. É a liberdade de atravessar rios de leitos profundos e caudalosos, de poder ir numa direcção ou noutra, de encontrar uma história apagada das narrativas oficiais mas refugiada na oralidade, de estar livre dos constrangimentos habitualmente existentes numa certa forma de fazer cinema. De poder estar intensamente imerso num espaço-tempo onde múltiplas camadas coexistem e saber acolhê-las.
Esta é também a potência do círculo se o virmos do outro lado. Da escuridão surge a luz, da luz a escuridão. Não há princípio nem fim. Tudo se gera em simultâneo. No filme, forma e conteúdo estão de tal forma interligados que não é possível separar uma do outro. E é precisamente desta interligação que surge o novo.
Para mim, esta é a potência do cinema.
Susana de Sousa Dias