I. Did I interrupt you, your thoughts?
Fumar ou não fumar. Eis a questão. Para Gastón Solnicki, é por aí que levantamos voo num filme-soneto que se apresenta através da perda da nossa cosmologia no mundo, de repente irreconhecível após a perda de uma espécie de faro, um arrastar de visões, sons e cheiros, e se abre à possibilidade da sua procura. Depois de Introduzione all’oscuro (2019), retrato da cidade de Viena inspirado na vida do crítico e programador de cinema Hans Hurch, que por cá passou via IndieLisboa, voltamos à capital Austríaca, mas desta vez para tirar uma licença do puritanismo dos nossos tempos e passar os olhos por cima das cores, texturas e sensações que desapareceram por influência directa (mas não só) da Nova Lei do Tabaco imposta a partir de Novembro de 2019, que declarava a proibição de fumar em todos os espaços fechados, com particular ênfase para locais de restauração, depois de um período alargado da criação de zonas para fumadores e não-fumadores dentro destes.
Encantada pela sedução de um regresso a um tempo no espaço agora irrecuperável e de um futuro ainda por definir, a câmara de Rui Poças, abre-se, tal cápsula viva, a um processo de interrupção intelectualizada de acções enquanto estas decorrem (ou será que, por causa disso, param?). Primeiro uma sequência-postal da cidade, a crepuscular passagem do comboio, o sol a pôr-se ao fundo. E depois uma montra de uma loja de peles tocada pelas luzes artificiais mais quentes e suaves. Dois casacos expostos como se estivessem em cima dos ombros de alguém. Uma ideia antiga do que a abundância é. Quase sensual porque é o resultado da morte, e por isso mesmo, complementa a entrada na cidade, a chegada ao território das coisas mais ricas e prósperas, artificialmente banhadas em ouro. E efervescentes no seu quase vampirismo. E depois a expressão vaga na cara de pessoas que o filme fita e engole como parte de uma experiência tanto antropológica como criativa. Esta que já é a terceira longa-metragem do realizador Argentino faz do gesto realidade ao mostrar o que estas estão a fazer enquanto o fazem e enche-se de soluços narrativos, criados a partir do mesmo tecido dos intervalos passivo-agressivos que ocorrem entre pessoas: dos sorrisos que falam sozinhos durante momentos exigentes à presença de uma voz que nos narra o que estes têm realmente em mente.
Penso em A Little Love Package (2022) enquanto o desenho dessa difusão, entre o que ficou por ser dito e o seu esquecimento, nunca para ser apanhado da mesma forma outra vez. Pelo meio, atinge a plenitude na relação com a cidade, suas instituições, pessoas e o seu quotidiano vienense, filtrando o que é “barulho” daquilo que não é.
Amniótico em estrutura e sentimento, se existe uma forma para descrever a assim merecidamente chamada de pequena embalagem de amor é a sua abordagem à transformação. Um corpo sem membros per se – espelho do modus operandi de Solnicki que trabalha sem argumento e empurra os seus actores que, de uma forma ou de outra, entram naquele reino a interpretarem-se a si mesmos e a trabalharem em línguas que nem sempre são as suas línguas-mãe, em direcção a um conceito de filme feito aos poucos e que aparece perante nós no estado mais cru possível, – A Little Love Package (2022) mantém a tradição documentarista da câmara que enquadra os actores e faz uso da sua dificuldade em se interligar para pautar o tipo de conexão que só poderia ser composta por conflitos e desfechos sem extremidades. No novo mundo que se avizinha, há decisões difíceis a tomar, tensões dentro do espectro da família nuclear e, no mesmo plano narrativo, são também documentados os resquícios da primeira explosão radioactiva que aconteceu na natureza em Gabon há 2 biliões de anos. Sim, este é um filme de Solnicki. Não há como negar.
Agora, mais concretamente. Em Viena, Angeliki (Angeliki Papoulia) quer comprar uma casa e pede ajuda à sua amiga Carmen (Carmen Chaplin), uma designer de interiores, mas para Angeliki nada parece ser o indicado e Carmen começa a ficar impaciente. Como a própria sinopse do filme nos conta, “uma tenta mostrar à outra algo que esta não consegue compreender.” Quando Angeliki finalmente arranja um lugar onde vê um reflexo daquele velho mundo, antes da miséria neo-liberalista o penetrar sem retorno, já para não falar da pandemia que vinha a caminho num comboio a todo o vapor e sob o efeito da qual Solnicki cozinhou esta história, Carmen viaja com a filha para Málaga, a sua bucólica terra natal (cabras e colinas verdejantes incluídas), com a intenção de passar algum tempo com o pai idoso e doente (Michael Chaplin), talvez até mudar-se para lá. A filha rejeita logo a ideia estando habituada à imensidade, ao desapego da metrópole. As irmãs de Carmen condenam a sua saída anos antes para Viena e não conseguem aceitar que esta tenha regressado agora para ficar, sem ter antes dado prioridade à família. No meio disto tudo, e depois de Carmen abandonar mais uma vez Málaga e regressar a Viena, Angeliki descodifica a essência do espaço de convívio, um encontro do Eu num outro tipo de família, e faz zoom em direcção à sua preponderante urgência. Onde se encontra a nossa casa quando o seu interior é alterado para sempre?
(…) o que o tabaco e a presença do seu cheiro e manifestação nos cafés e bares representava: o mundo não era só um acumular de desastres ou ideais que evacuam a própria noção de liberdade boémia. Tudo borbulhava. Era líquido e engrossava como açúcar em caramelo…aqueles tinham sido os good times.
Tendo tudo isto em questão, e nunca perdendo o fio à meada, o filme adopta a ideia fílmica de um soneto. Quatro estrofes, o último terceto a fechar o arco que devora, de forma literal, a tragédia por cima de tudo o resto que ficou por explicar. Às imagens tão quentes na sua infusão são-lhe atribuídas o carácter áspero da falta de engrenagem própria do acto de capturar um real pensado. Se fosse declamado, haveria paragens para interacções várias pelo meio. Para além disso, no meio das suas muitas contradições (há sempre dois lados), que não são negadas porque não são vistas enquanto tal, a mais evidente recai sobre como o filme replica na perfeição o silêncio do passear por um lugar, sempre feito aos S’s porque o temos e reconhecemos como nosso, nos seus momentos mais sonoros. Há acordes de música clássica propriamente dita a percorrer o filme, os sons da cidade que abafam os diálogos – as ambulâncias especialmente -, mas há também aquele colar tão familiar da sola dos sapatos ao chão de madeira de instituições como o Museu de História Natural de Viena, certamente calcado demasiadas vezes mas não as suficientes para as tábuas não estremecerem com o passar de alguém por elas.
Na verdade, na presente era da monitorização do espaço privado e militarização (e privatização) do espaço urbano público, já pouco nos resta a não ser a alegria no desamparo das ruas enquanto por elas caminhamos, e Solnicki sabe bem disso. Mas este não se fica por aí. Ele quer chegar à alienação da cidade de si mesma, que surge de forma tão súbita e sem anúncio que, um pouco como retomar caminho quando alguém nos interrompe um pensamento, enevoa o nosso conhecimento do que é a mudança e o modernismo que a ele está associado. “Interrompi-te, os teus pensamentos?”, pergunta o dono do Kaffeehaus a Angeliki quando esta não parece reagir à sua presença quando este lhe traz um café. Nesta pergunta é encontrado o movimento que salta do ecrã para o espectador. Penso em A Little Love Package (2022) enquanto o desenho dessa difusão, o que ficou por ser dito e o seu esquecimento, nunca para ser apanhado da mesma forma outra vez. Pelo meio, atinge a plenitude na relação com a cidade, suas instituições, pessoas e o quotidiano vienense, filtrando o que é “barulho” daquilo que não é.
II. I’m going to choose a good person and it will be alright.
Olhar uma segunda vez para o filme – merece e beneficia de inúmeros olhares – é pensar nas personagens secundárias que vão aparecendo, a maioria das quais nunca chegamos a conhecer. Todas juntas representam não só as pessoas de Viena, como Solnicki arranja forma de as filmar só a elas. Mais ninguém. Estas e as outras de que falava em cima são as únicas pessoas que habitam aquele espaço, onde duas épocas muito diferentes se sobrepõem e é tão difícil distinguir uma da outra, saber o fim de uma época e o início oficial da seguinte. Não é possível delinear nada assim. Tudo se esvai eventualmente. Mas sem agendamento. Vestidas de preto ou cores igualmente escuras, em sinal de luto, as personagens elevam o filme em forma e conteúdo porque encantam o seu lado mais excêntrico, sempre do imaginário visual. Há algo de ritualista nelas, seguem-se umas às outras nos seus caminhos narrativos pelo filme fora…é tudo tão singular como quando Greta Garbo fala pela primeira vez e o que sai dela é grave, ligeiramente rouco, gutural. Quando um jovem massagista diz à rapariga que se encontra à sua frente no café – é sempre o mesmo, como uma base naval – que tudo vai correr bem no futuro porque ele irá escolher uma pessoa bondosa, a sua certeza é tanta que não parece haver razão para estarmos aqui a pensar nisto. Um outro senhor recorda a sua amada mãe. Nunca foi tão importante agarramo-nos à ideia de comunidade enquanto suporte para o desenvolvimento e evolução que ainda aí vem. Porque somos todos diferentes. A mudança não deve destruir o que dali surgir, deve empoderar o que já ali está e arranjar forma de o melhorar. A maior parte das vezes, será necessário partir para re-construir. Mas nem sempre.
Afinal foi dentro da cultura Kaffeehaus que foram escritos os símbolos para a criação. Foi debaixo do fumo dos cigarros e do fumegar das canecas de café ou dos ovos acabados de ferver, e do silêncio audível das pessoas que estão perto umas das outras, cada uma a respirar para dentro, que as grandes discussões sobre arte ocorreram, que as mais ilustres obras literárias foram escritas, que o mundo foi repensado uma e outra vez. Nesta orquestra sensorial que aquece qualquer um que por perto se chegue (a memória associativa eterniza o sentimento), o filme torna-se intoxicante, a textura alcoólica do passado misturada com a água tónica do presente. Caras acabam sujas, e cabelos longos demoram horas a ser penteados. E depois há confissões e segredos que só às nossas pessoas podemos contar. Preparada para perder aquela casa de todos, Angeliki compra uma, a filha de Carmen faz dos pés sementes e cobre-os de terra até já não os ver mais em Málaga, e o rapaz, aquele jovem massagista, procura uma casa numa outra pessoa, como a maior parte das pessoas pelo mundo fora. Quando todos se juntam no final para se despedirem do calor humano que ali encontravam, é exemplificado o que o tabaco e a presença do seu cheiro e manifestação nos cafés e bares realmente representavam: o mundo não era até ali só um acumular de desastres ou compartimentações. Tudo borbulhava. Era líquido e engrossava como açúcar e água fervida em caramelo…aqueles tinham sido os good times. E agora? O que poderemos esperar?
A Little Love Package (2022) aponta para a amargura da mudança quando esta distancia as pessoas, e esquenta na forma como nos diz que nos novos métodos poderá talvez haver entendimentos de preservação de rituais. É uma cebola esta relação com a identidade dos lugares e como estes perdem a sua vida biológica, que é o mesmo que dizer a relação com a nossa identidade e a nossa biologia dentro deles. Há tantas camadas imobiliárias nos episódios das nossas vidas. O que nos une também nos separa. E não passam de paredes. Não podemos deixar que nos escape das mãos que o que nos separa consegue sempre unir-nos.
A Little Love Package integra a Competição Internacional do festival Porto/Post/Doc e será exibido nos próximos dias 17 de Novembro, pelas 21h45, e dia 19 de Novembro, pelas 17h, ambas sessões no Cinema Trindade.