Já se sabe, se num melodrama uma personagem veste a roupa de um morto, acabará como ele. E se num filme de terror o mesmo acontece, essa personagem acabará por encarnar o alma do dito. Por sua vez, no caso do cinema português, quem espera por sapatos de defunto morre descalço – ainda que sejam mais aqueles que seguem as pisadas dos antepassados, do que os que trilham novos caminhos. Em Alma Viva (2022), Salomé, a personagem interpretada por Lua Michel (a filha da realizadora Cristèle Alves Meira), veste a camisa da sua avó logo após a inesperada morte desta. O modo como o filme gere o que se segue denúncia que está mais próximo do género de terror, que do melodrama (tudo se trata, afinal, de uma história de bruxedos e possessões). No que respeita ao dizer inaugural de João César Monteiro e ao contexto do cinema português, fica bem claro que Alves Meira não morre descalça, isto porque esta sua primeira longa-metragem enverga, sem pejo, as socas da longa e complexa relação que o cinema que por cá se faz mantém com a região de Trás-os-Montes (sendo que, a bem dizer, a realizadora troca as socas por uns crocs, decorados com um certo gosto pelo misticismo folclórico que tem mais de Emir Kusturica do que António Reis).
Para quem foi acompanhando o trabalho de Alves Meira ao longo dos últimos anos, na curta-metragem, fica claro que toda essa produção serviu como ensaio para esta estreia no formato longo – algo que não surpreende, já que a própria realizadora explicou que as primeiras linhas do que viria a ser o argumento deste filme começaram a ser escritas ainda na escola, quando frequentava a La Fémis. Sol Branco (2014) continha já muito do que viria a ser Alma Viva, a saber: a protagonista infantil, a imigração francesa durante os meses de Verão, o fantasma da avó, as festas populares com petardos e música pimba ou o desejo pubescente pelo vizinho com a mota. Depois, Campo de Víboras (2016) aproxima-se em estilo (libertando-se da câmara tosca, quase documental do primeiro filme, e iniciando uma colaboração com o diretor de fotografia Rui Poças, com quem viria a filmar a longa) e no tom (a questão das superstições transmontanas cruzadas com as tradições dos caretos), explorando as possibilidades que a introdução de uma atriz profissional (Ana Padrão, já no papel que assumiria em Alma Viva) num contexto de não-atores permitia. Invisível Herói (2019), por sua vez, afasta-se do contexto rural, descobrindo em Lisboa uma personagem extraordinária, Duarte Pina, um homem cego que procura um amigo desaparecido – ator e personagem que ressurgem nesta primeira longa como tio da protagonista. Por fim, o ano passado, em contexto de pandemia, Alves Meira realiza Tchau Tchau (2021), filme de vídeo-chamadas e ecrãs de computador e telemóvel, mais uma vez sobre a morte de um avô, que serviu, essencialmente, para testar as capacidades interpretativas da sua filha no papel que viria a assumir em Alma Viva.
O que mais interessa em Alma Viva é o modo como o filme parece ter consciência desse “conflito interior” e o literaliza numa montagem de choques e oposições, que trabalha o corte de forma abrupta e desarmante.
À semelhança de muitos outros realizadores, o formato curto serviu à realizadora como espaço de experimentação formal e narrativa, sempre com vista à longa, e como forma de descoberta de personagens, investigação das possibilidades de direção de atores, desenvolvimento de situações e soluções visuais que lhe poderiam servir mais tarde. O que daí resulta, como é típico nestes casos (penso, por exemplo, nos primeiros filmes de dois cineastas brasileiros, Kleber Mendonça e Anita Rocha da Silveira) é uma estreia na longa-metragem hiper-cautelosa, onde a frescura meio desconjuntada das curtas se perde, para dar lugar a um polimento de exercício bem estudado. O melhor filme que Cristèle Alves Meira realizou até agora é, sem dúvida, Invisível Herói: um objeto quase inclassificável, sempre disposto a surpreender-se (e a surpreender-nos), saltitando imprevisivelmente entre estilos, géneros e encontros, numa espécie de homenagem à disponibilidade – sempre aberta – do ator/protagonista para conhecer os outros e descobrir o mundo. Alma Viva é tanto melhor quanto mais espaço dá às personagens que partilham com Duarte Pina essa mesma postura: penso, naturalmente, na personagem da avó (Ester Catalão) ou da vizinha-bruxa (Sónia Martins, que já aparecia em Campo de Víboras). Posto doutro modo, há uma sensação de cansaço e ruminância nestes casos em que para chegar à longa, um realizador tem de percorrer, durante anos, o mesmo trilho, deixando pelo caminho (isto é, nas curtas) a energia e o entusiasmo das descobertas.
Mas regressando às vestes e aos calçados, o que torna Alma Viva uma episódio curioso na longa sucessão (muitas vezes ensombrada – e assombrada – por António Reis) de aproximações a Trás-os-Montes, que caracteriza as últimas cinco décadas de cinema português, é o seu olhar exógeno. Só uma realizadora luso-francesa, com a experiência da emigração, poderia relacionar-se com as gentes e os lugares do Vimioso deste modo. Não se trata exatamente de um ponto de vista exótico (porque esse vem – muitas vezes – de cineastas lisboetas), antes um olhar próximo da fábula. Daí que a perspetiva de cinema de género, em específico a do “terror rural”, faça todo o sentido: o olhar de Alves Meira sobre Trás-os-Montes é um olhar carregado pelo próprio cinema, um cinema de género de matriz anglo-saxónica. Só que, se a abordagem narrativa (e até certo ponto formal) é essa, a concretude do sítios e das pessoas contraria (ou pelo menos tensiona) o ímpeto romanesco. Do choque entre essas duas forças, constrói-se um filme que encontra nesse desacerto as suas maiores forças e as maiores suas fraquezas – mas aquilo que mais interessa em Alma Viva é o modo como o filme parece ter consciência desse “conflito interior” e o literaliza numa montagem de choques e oposições, que trabalha o corte de forma abrupta e desarmante – BAM!
São muito felizes algumas das soluções terroríficas ou encantatórias, em particular o quinteto que acompanha a ação e dramatiza, diegeticamente, a banda-sonora do filme, ou a representação da violência, também ela muitas vezes feita ao nível do som (a faca que estripa o peixe, o som do corpo que cai pelas escadas, as galinhas em pânico, etc.). Menos feliz é o modo como se força uma leitura feminista sobre a situação (a linha de diálogo em que se diz algo como “todas as mulheres independentes serão, mais dia, menos dia, consideradas bruxas” parece ter sido um acrescento de pós-produção) e como isso se alia, paradoxalmente, com o gosto pelo grotesco que se sobrepõe à natureza das personagens e que as instrumentaliza estética e politicamente. Penso, naturalmente, na sequência em que a filha (Ana Padrão) dá banho de pano à mãe (Ester Catalão). A mulher velha e obesa de mamas expostas, sofrida, interrompida por uma criança que passa, um cego que canta, uma filha abusiva e um cão que se coça. É o caos. É divertido. Gritam e choram (feios, porcos e maus). E só faltam os dentes de ouro nas bocas dos protagonistas para que a reconstituição kusturiquiana nos faça crer que estamos, afinal, na Sérvia e não em Trás-os-Montes. Mas também é triste e degradante. E é-o porque se trata de um gesto verdadeiramente gratuito. A avó não precisa de um banho de pano. Ela não está em situação de dependência, aliás, a sequência seguinte (da canção do Esfrega Esfrega) demonstra-o bem. É, simplesmente, um efeito; um efeito inconsequente. Nesse momento Cristèle Alves Meira força o pé dentro de um sapato que não é o seu. E o filme terá outros momentos semelhantes, porventura menos vistosos; mas esse ficou-me, com mágoa. É uma sequência que demonstra o desconforto de quem calça uns sapatos demasiado apertados – e é tão bom correr descalço, como o fazia a Branca de Neve selvagem e fugidia que protagonizava Sol Branco.
★★☆☆☆