Le langage est une peau : je frotte mon langage contre l’autre. C’est comme si j’avais des mots en guise de doigts, ou des doigts au bout de mes mots. Mon langage tremble de désir.
— Roland Barthes, Fragments d’un discours amoureux
O fim inevitável de uma relação é anunciado desde logo pelo título: Chronique d’une liaison passagère (Diário de um romance passageiro, 2022). O mais recente filme de Emmanuel Mouret é uma comédia romântica agridoce sobre uma aventura adúltera em episódios, datados como as entradas de um diário de adolescente; um filme “parêntese” – na medida em que, como nos explica um dos protagonistas, quando abrimos um parêntese sabemos que mais tarde ou mais cedo teremos de o fechar; em suma, Chronique d’une liaison passagère é um filme feito da acumulação de “últimas vezes”: não de “últimas vezes” manchadas por disputas, birras e acusações mesquinhas, ou desperdiçadas no sofrimento por antecipação de uma separação que se sabe inelutável; mas, ao contrário, um filme de “últimas vezes” que deixam saudades antes mesmo de terminarem e que se saboreiam como se fossem as primeiras, com a consciência de que, afinal de contas, até a mais promissora primeira vez é sempre, paradoxalmente, uma “última primeira vez”.

É nesses termos que Charlotte (Sandrine Kiberlain) e Simon (Vincent Macaigne) definem as regras do jogo que pautarão a sua “ligação passageira”, desde o primeiro encontro a dois num café, que culminará numa primeira noite juntos (« Ça va vite! », exclamará várias vezes Simon, desconcertado pelas iniciativas impetuosas de Charlotte), bem como em todos os “últimos encontros” que se sucedem ao longo das semanas e meses seguintes: entre apartamentos e quartos de hotel, jardins e galerias parisienses (nomeadamente o Musée d’Art Moderne onde se encontra exposta La Fée Électricité de Raoul Dufy, obra que figura em pano de fundo do sublime cartaz oficial do filme), ou ainda refrescantes escapadas na natureza.
Mouret adapta a forma ao conteúdo, e não há gesto cinematográfico mais honesto do que esse.
Cada um tem as suas razões para não querer nada “mais sério”: Simon é casado e diz amar a sua mulher e família; Charlotte, mãe celibatária, “já deu o que tinha a dar” em termos de paixões avassaladoras e de relações tóxicas. Aquilo que Simon, tão desajeitado quanto sensível, procura fora do casamento, e que só uma mulher independente e plena como Charlotte lhe pode oferecer, é o sentido da aventura, o prazer do momento presente, quiçá a realização de algumas fantasias sexuais (que serão mantidas fora de campo, preservando a privacidade dos amantes). Fora de campo ficarão também as respectivas vidas familiar, profissional ou social, pois a Emmanuel Mouret interessa menos sondar o impacto do adultério nas estruturas da sociedade burguesa, do que imaginar a possibilidade de uma outra “moral sentimental” através da fidelidade paradoxalmente libertadora que se tece entre os dois amantes. Presentes em todas as cenas, Charlotte e Simon são, no fundo, tratados como uma só personagem, tão fiéis um ao outro quanto a si próprios (e talvez isso explique o desejo comum, que desde cedo verbalizam, em trazer uma terceira pessoa para a relação…).
Fora o romanesco e o melodrama, fora as crises de ciúmes, a chantagem emocional, os sentimentos de culpa ou os ultimatos da amante exigindo o divórcio: enquanto durar, tudo na relação entre Charlotte e Simon deverá ser leve, descomplicado, elegante. E será.
O mesmo se pode dizer da realização de Emmanuel Mouret, ligeira e subtil; alguns dirão banal, insossa ou “cliché”, ou até inexistente. Depois de dois filmes “mosaico” onde se cruzam os destinos de várias personagens – L’Art d’Aimer (A Arte de Amar, 2011) e Les choses qu’on dit, les choses qu’on fait (As Coisas Que Dizemos, As Coisas Que Fazemos, 2020) – e de um sumptuoso romance de época (Mademoiselle de Joncquières, 2018), Mouret joga a cartada do minimalismo e regressa às comédias românticas em tête-à-tête com que lançara a sua carreira de cineasta (e de ator dos seus próprios filmes), no início dos anos 2000. Um risco que só um realizador plenamente confiante da singularidade do seu estilo aceitaria correr: se Chronique d’une liaison passagère é um filme ousado, é-o precisamente na medida em que a aparente simplicidade narrativa e invisibilidade da mise en scène se coadunam perfeitamente com a pretensa ligeireza da relação amorosa que o filme se propõe retratar; por outras palavras, Mouret adapta a forma ao conteúdo, e não há gesto cinematográfico mais honesto do que esse.

Ainda assim, a afirmação discreta de um estilo mouretiano faz-se sentir ao longo do filme. Por um lado, é através de diálogos rohmerianos sem pretensões que as personagens se despem e se seduzem, desta feita com Vincent Macaigne em exímio alter-ego do cineasta, entre a imaturidade comovente de um Antoine Doinel/Jean-Pierre Léaud e o existencialismo neurótico de um Woody Allen, e Sandrine Kiberlain em heroína cukoriana à frente do seu tempo, veiculando um certo olhar crítico sobre as relações monogâmicas e heteronormativas que dominam na nossa sociedade (sem que jamais esse discurso se torne demasiado presente). Por outro lado, a musicalidade da montagem dá o tom e o ritmo ao filme, encadeando os sucessivos encontros dos amantes como um ritornelo, com La Javanaise como leitmotiv, lembrando-nos que o amor pode durar “o tempo de uma canção” (« nous nous aimions le temps d’un chanson », canta Juliette Gréco).
Mas é sobretudo através do trabalho da câmara e da composição dos planos que a realização de Chronique d’une liaison passagère se destaca: pela forma como esta ocupa o espaço, sempre móvel e pronta a lançar-se numa corrida, mas parca em deambulações gratuitas ou em incursões invasoras da intimidade das personagens, tornando-se progressivamente cúmplice das suas hesitações e precipitações, seja quando os acompanha em longos planos-sequência por trilhos e veredas, quando os emoldura na ombreira de uma porta e desenha as suas silhuetas em contra-luz, ou ainda, naquele que é o movimento-assinatura do filme, quando inadvertidamente se aproxima do rosto de um deles e cristaliza, num travelling frontal capaz de suspender o tempo, o instante de tomada de consciência da verdadeira natureza dos seus sentimentos.
Chronique d’une liaison passagère poderia igualmente chamar-se “Fragments d’un discours amoureux”, não só pela estrutura episódica do filme, mas sobretudo pelo lugar que a palavra ocupa na relação entre Charlotte e Simon – que dizem gostar tanto de conversar quanto de fazer amor. A ausência de cenas de sexo não reduz em nada o erotismo do filme pois, parafraseando Barthes, os dois amantes não cessam de roçar a sua linguagem contra a pele do outro (« Le langage est une peau : je frotte mon langage contre l’autre »), sem contudo nunca chegarem a proferir a derradeira “palavra mágica” (« Je t’aime est dans mon coeur, mais je l’emprisonne derrière mes lèvres »).

Não revelarei aqui o evento na origem da ruptura – que já sabíamos anunciada – entre Simon e Charlotte, senão emitindo a hipótese de uma “insustentável leveza” das relações amorosas – que os tais travellings frontais já deixavam adivinhar no olhar suspenso das personagens. Em contrapartida, prefiro evocar a “última vez” em que se encontram, por acaso, na fila da bilheteira de um cinema de bairro; acabarão por assistir juntos a Scener ur ett äktenskap (Cenas da vida conjugal, 1974), e os breves planos do filme de Bergman em que os rostos (e os gritos) de Liv Ullmann e Erland Josephson preenchem o ecrã oferecem-se como um derradeiro contracampo da refrescante relação outrora inventada pelos dois amantes, orgulhosamente imune aos dramas da vida (extra-)conjugal. À saída do cinema, um “último” passeio pelo jardim, uma “última” despedida e um “último” fragmento de discurso amoroso que se eternizam, senão entre Simon e Charlotte, pelo menos na memória do/da espectador(a).
★★★★☆