Uma das frases mais catchy deste regresso de Cronenberg ao cinema (e ao seu erotizado mundo bio-tecnológico), oito anos depois de Maps to the Stars (O Mapa das Estrelas, 2014) é esta: “a cirurgia é o novo sexo”. Difícil não pensar nos deboches de acidente e metal, na adaptação do romance de J.G. Ballard em Crash (1996), ou nas entradas ou feridas no corpo de eXistenZ (1999) como novas modalidades de conexão sexual. Mas a esta questão da ferida como espaço sexualizado e à plasticidade reprodutiva do corpo-máquina há ainda outra dimensão que neste Crimes of the Future (Crimes do Futuro, 2022) fica bem à vista. Basta pensar na forma como Cronenberg, a dada altura do seu filme, encena um beijo antigo (analógico?) entre o seu protagonista, Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Timlin (Kristin Stewart), que deseja ser a sua assistente nas suas performáticas operações cirúrgicas. Ela coloca-lhe, lentamente, os dedos no interior na boca, como se quisesse saber o que lá se encontra, de seguida introduz um dedo na sua própria boca e só depois unem os lábios e as línguas. Logo de seguida, o beijo interrompe, ele pigarreia e diz-lhe “Desculpa, não sou muito bom no velho sexo.”
Já no final dos anos 70, Cronenberg nos falava dos anacronismos do sexo convencional ao terminar Rabid (Raiva, 1977) lançando a actriz porno Marilyn Chambers no camião do lixo. Corpos descartados, contaminados, perfurados, rebentados, fundidos numa metamorfose da política das tripas e de uma ideia de sexualidade. Nestes crimes do futuro, mais de cinquenta anos depois desses outros crimes [Crimes of the Future (Crimes do Futuro, 1970), que, entretanto, como todos, devieram passado], a boca é um lugar que é preciso mapear, os beijos são fusões estranhas, desconfortáveis, num mundo pós-dor (e provavelmente pós-prazer). E o que dizer sobre esta sexual penetração cirúrgica? Ainda se poderá falar no bom velho fetichismo que procura ir cada vez mais dentro, mais fundo? Será apenas a redundância, tornada evidente no pós-humanismo, de um corpo demasiado estreito para o prazer intensificado? Trata-se, antes, de discurso sobre a abolição das fronteiras entre corpos e da exposição de si para efeitos produtivos? Ou será até, quem sabe, uma hipersexualização do bom velho corpo, como resposta ao superhomem de borracha e photoshop?
Um futuro teatralizado, onde o sensual é filtrado pela metafísica que projeta uma outra forma de existência.
Numa outra cena de Crimes of the Future (Crimes do Futuro, 2022), numa performance de remoção de mais um órgão anómalo vemos numa velha TV a frase “Corpo é Realidade”. Este momento “They Live” ajuda-nos a compreender a posição de Cronenberg, um corpo-cineasta carregado de etiquetas, da sci-fi existencial ao body horror. Vemos um mundo onde comer, dormir, foder já não são dados a priori. Mas, ao mesmo tempo, sem ser nostálgicos, sentimos qualquer coisa de analógico. As próteses de borracha, a ausência de computadores (um futuro ao lado do futuro), a escuridão pictórica de muitos dos planos num filme, afinal, rodado num barracão. Um futuro teatralizado, onde o sensual é filtrado pela metafísica que projeta uma outra forma de existência. Mas, retomo, o corpo é a realidade. Esse é o traço de Cronenberg. O que pode (rá), então, um corpo?
No livro de entrevistas Cronenberg on Cronenberg, o realizador canadiano refere, a propósito do filme de 1970, que sempre o fascinou a ideia de organização, como a organização de células num corpo que constribuem para um todo diferente de cada um dos seus componentes. Nesse sentido, Cronenberg é, à sua maneira, como Lang ou Wiseman, um cineasta do pensamento da organização, do um e do todo. A tragédia e/ou salvação do corpo é precisamente essa capacidade de mutação. E, como já se ouvia no filme de 1970, Cronenberg falava de corpos como galáxias, orgãos como sistemas solares e de cancros criativos. Então, talvez tudo apenas se tenha sistematizado, burocratizado nos últimos cinquenta anos. Nessa plasticidade de uma produção ininterrupta de corpos, a personagem de Mortensen expõe os seus cancros criativos. O corpo expressa-se pela arte da performance, não sem colocar em equação os limites comerciais e produtivos do sistema estético (que procura como mercado o novo, o original, o arrojado; mas será tão novo assim?) Agora, o sistema quer controlar, mapear, tatuar, o extra dessa aceleração degenerativa darwiniana que ouvíamos como espectro sonoro na banda sonora do filme de 70.
Crimes of the Future encena agora esse corpo a tentar sobreviver, expressando-se pela arte. Mas também um corpo que não expõe apenas, que procura incorporar. Que coloca dentro de si o problema e ensaia, nesse embate, a solução. É o subplot da personagem de Wipper que conseguiu passar ao seu filho a capacidade de consumir (o maldito!) plástico. Quer num caso quer no outro, o corpo é o ponto de partida – da transformação estética e política – que brinca com a noção de “beleza interior”, o qual adquire um significado mais próximo da literalidade.
Neste Crimes of the Future, que possivelmente será o último ou um dos seus últimos filmes, o conceito de mundo é mais poderoso do que o drama. Talvez seja justo dizer que a criação desses mundos anula a importância do drama. Há qualquer coisa de dissolução do corpo, do toque, da alegria, neste fascínio terminal. Podemos dizer, talvez, que Cronenberg nos ajuda a contar uma história de dissolução e redundância, uma existência-cérebro com lágrimas sem dor. É o que comprova esse imprint final, que me fez lembrar quase uma Pietá pixelizada com Mortensen a aceitar a sua condição mutável, e, finalmente, sintética.
★★★☆☆