O desempenho de Cronenberg é verdadeiramente científico. Os filmes são experiências, conduzidas num sentido puro, com poucos ou nenhuns cuidados com as consequências. O ponto é seguir a experiência ou hipótese até ao fim, sem restrições sociais ou considerações políticas.
Martyn Steenbeck
David Cronenberg cresceu numa casa preenchida de livros e de música, em Toronto. O pai, que fora jornalista para depois escrever contos, colecionava livros obsessivamente. A mãe era pianista, muitas vezes de acompanhamento de espectáculos de dança. Uma infância feliz, então, tumultuada pela doença e morte precoce do pai, resultado de uma forma de degeneração do corpo, que incapaz de produzir cálcio conduzia a frequentes quebras de costelas, algo que lhe preservou na agonia física a dimensão mental. No final do secundário, apesar do gosto pela literatura, inscreveu-se em ciências na Universidade de Toronto (1963): “Fascinava-o a forma como as pessoas escavavam para descobrir como é que as coisas funcionavam, e o modo como codificavam e organizavam o conhecimento”. Mas a experiência revelou-se frustrante, pois descobriu que o estudo da ciência era desapaixonado e, incapaz de se ligar a colegas e professores, abandonou ao fim de um ano as ciências e transitou para as letras, onde se integrou facilmente e aprendeu inglês, história e filosofia.

O sistema de distribuição cinema canadiano era muito frágil e os filmes não eram vistos, exceptuando em alguns circuitos alternativos de exibição. Cronenberg que era um bom espectador de cinema, mas não se considerava um cinéfilo, passou a frequentar a Cinecity Film, uma comunidade que assistia com regularidade a produções underground de New York e Los Angeles, assim como a abordagens avant-garde dos seus contemporâneos. Como não havia escolas de cinema em Toronto, Cronenberg decidiu experimentar e aprendeu a fazer; é neste âmbito que surgem Transfer (1966) e From the Drain (1967), os seus dois primeiros filmes, em formato curto e rodados em pelicula 35 mm, em que o cineasta assegurou para lá da realização e o guião, a montagem e a direcção de fotografia.
Rodada em exterior, junto a um bosque coberto de neve, Transfer assinala o reencontro entre um psicanalista e o seu paciente. O médico fugira da civilização, mas fora encontrado pelo seu doente, que o venera e lhe diz que a sua vida sem ele é desprovida de significado. Próximo de um conto do absurdo, o filme deixa uma pista interessante para o trabalho futuro do cineasta cientista quando o psiquiatra questiona o seu paciente sobre as preocupações dele com a inexorável passagem do tempo. Se para o doente o envelhecimento e a morte são um pesadelo e o tempo é um rio que ferve enquanto engrossa, o terapeuta dir-lhe-á que tem de buscar no seu inconsciente um tempo mais vasto, como uma piscina de águas negras e paradas. No mesmo tom surrealista e de paranoia, From the Drain encontra dois homens numa casa de banho, sentados numa banheira, vestidos. Aquele lugar serve de terapia para veteranos de uma guerra desconhecida. Os homens permutam de argumentos e de posições, enquanto discutem qual deles é o terapeuta e qual é o doente. O ralo do título do filme é de onde chega a ameaça, sob a forma de ramos de uma planta, que das profundezas da mente ameaça calar aqueles sobreviventes, que se constituem como material para uma experiência científica.
Cronenberg revelará ao longo da sua obra uma grande “empatia por médicos e cientistas”, que elegerá muitas vezes como os seus protagonistas e extensões da “sua persona”. Os “melhores cientistas são tão loucos e criativos como os escritores e os artistas” e mesmo que as suas acções os desacreditem como “dementes”, ele não concorda que “eles estejam a mexer com coisas que não deviam”. Determinado na sua condição de materialista, o cineasta em oposição aos tementes a um Deus, não acredita que “haja alguma coisa que o homem não seja suposto saber”. O nosso quotidiano, “o nosso modo de viver”, constituem o “nosso laboratório”, onde experimentámos a resolução dos nossos problemas, “para afastar a loucura e o caos”. Então, os personagens dos seus filmes “representam pessoas em geral”, que de alguma forma “têm de descobrir o que estão a fazer, o significado do que vale a pena, qual é a sua relação com a sociedade, como usar a sua energia criativa e como lidar com a sua energia destrutiva”.

Cronenberg, ainda estudante, conseguiu financiamento para Stereo (1969), a sua primeira longa, através do Canada Council, mas como não existia a categoria de Cinema (seria criada no ano seguinte), fê-lo como escritor; um projecto que começou, então, como a escrita de um romance. O cineasta mais influenciado pela Literatura de Nabokov e Burroughs do que pela cinefilia, libertou-se destas amarras e transformou o projecto de romance na escrita de outlines, que seriam a base do guião que usaria na rodagem. O filme rodado a preto e branco em pelicula 35 mm, utilizou um dispositivo de som assíncrono, que repetiria em Crimes of the Future (1970), devido ao receio do realizador pelos barulhos produzidos pela câmara Arriflex que usou, o que haveria de introduzir elementos na estética dos dois filmes.
Diz-nos o cineasta que em Stereo e Crimes of the Future, desenvolveu “uma ideia de homem construído, um ambiente controlado” para permitir um “curto-circuito no conceito de evolução, em que a sobrevivência do mais apto já não funciona”.
Stereo estabelece-se num Instituto onde um grupo de jovens adultos voluntários se juntou para testar uma teoria do ausente Dr. Luther Stringfellow, que apontava para o desenvolvimento de capacidades telepáticas que contribuiriam para uma maior exploração e consciência da sexualidade, um tema que haveria de reverberar em grande parte da obra de Cronenberg. Desde a primeira cena que notamos a presença de um homem, que usa uma capa preta, interpretado por Ron Mlodzik, que haveria de protagonizar o filme seguinte e que o cineasta assume como uma influência neste período. Mlodzik, um intelectual do Massey College (Toronto), que tinha “uma sensibilidade, um catolicismo e um sentido de estilo de gay medieval” apreciada por Cronenberg, conferiria aos filmes uma ambivalência, um cientista que podia ser um sacerdote, entre um próximo futuro e a obscuridade da Idade Média: “uma estranha criatura que não é bem terrena, em termos de gestos e sexualidade que projecta, inquietando a audiência”.
No primeiro plano de Stereo observamos a relação e a escala das fachadas de dois edifícios do Instituto e a figura de Ron Mlodzik. Os edifícios de quatro andares da Universidade de Toronto (Scarborough College), em betão à vista e com uma métrica repetitiva de vãos envidraçados e aberturas ao nível do rés-do-chão que permitiam o atravessamento pelo automóvel, apontam claramente para uma estética modernista, no que Le Corbusier designava por edifícios-máquina (induzindo uma utilização e uma gestão que dispensava a intervenção humana), em algo que o filme usará para pontuar conexões da realização com o espaço. Os compartimentos interiores são também claramente modernistas: amplos, com escadas em betão e aberturas que permitem a entrada de luz natural para lugares de circulação e com luz controlada e branca em divisões interiores. Os planos gerais são dominantes, com forte presença da geometria dos espaços, da relação por norma ortogonal, paralela e simétrica entre tectos, paredes e pavimentos, na definição de locais assépticos e controlados, algo inerente à experiência que envolveria aqueles sujeitos. Estes longos planos, estáticos ou em sequência, em que os personagens vagueiam pelos extensos corredores “como se estivessem a sonhar”, conforme identificou Chris Rodley, relacionam-se com uma arquitectura que Cronenberg designa como uma metáfora de uma “atmosfera sufocante”, vigente na Toronto dos anos 50, que sugeria “ordem e calma” a largos espectros da sociedade, enquanto se “infligiam quotidianos que não tinham muito a ver com estes conceitos”. Em tempos que antecipavam as grandes mudanças que surgiriam nos anos sessenta, muita “energia sexual era reprimida”.

Desprovido da captação de som, uma narração com as teorias de Stringfellow e o seu contraditório, com um jargão científico tangível à paródia, foi adicionada por Cronenberg enquanto montava as imagens. Essas dissertações para lá de pontuarem as imagens, funcionam por blocos e conferem uma ordem narrativa a Stereo: as imagens e a narração estão, então, desfasados em dois canais como o título aponta, sem que se submetam ao carácter redutor de se complementarem. A estética, muito assente na separação das bandas de som e imagem, torna o filme um objecto experimental em concordância com o assunto, numa investigação que ambicionava desligar o pensamento da linguagem. Numa narração que muitas vezes parece a leitura de um relatório médico (em modo monótono, pausado e monocórdico), o silêncio entre essa emissão dos relatórios, confere ao ambiente um tom ainda mais laboratorial, controlado e limpo.
Depois da narração nos informar do isolamento de três meses dos sujeitos antes da interacção e dos possíveis sintomas da dependência associados à telepatia, os corpos de Cronenberg comunicam, em imagens mediadas por ecrãs, com as primeiras entranhas do cineasta, no contacto com dummies de hospital e os seus órgãos tácteis, numa espécie de erotismo de laboratório. Os planos abertos passam a alternar com planos de conjunto, dos rostos dos sujeitos e do mobiliário, onde predominam os tons metálicos e acinzentados, com pontuais e longos close-ups dos rostos, como se a câmara pudesse apreender telepaticamente os sujeitos, os seus pensamentos e desejos. Surge, então, o primeiro esboço de comunidade, neste pequeno conjunto de indivíduos que, apartados do exterior por razões de segurança, são protótipos de uma transformação social: substituir a obsoleta unidade familiar.
O projecto é ambicioso: a experiência telepática é muito mais do que ler a mente do outro; talvez possam apreender padrões verbais na mente dos outros sujeitos, mas também um conjunto de camadas de memórias, aprendizagens, respostas emocionais e impulsos psicofisiológicos, que geram pensamento e linguagem. A experiência de Cronenberg é tratar o humano como uma substância sujeita à experimentação, maleável, transformável. Um processo como parte da evolução humana e social, a perguntar para onde vai o humano. Diz-nos o cineasta que em Stereo e Crimes of the Future, desenvolveu “uma ideia de homem construído, um ambiente controlado” para permitir um “curto-circuito no conceito de evolução, em que a sobrevivência do mais apto já não funciona”. Estes dois filmes também introduzem as instituições associadas à ciência como habitat privilegiado da obra de Cronenberg. O cineasta tende a olhar para estas instituições como elementos benignos, mesmo quando produzem a destruição: “elas são como um organismo, um animal multicelular em que as pessoas são as células”, que “vivem e morrem as suas vidas”, procurando manter-se consistentes “como o fluxo da existência num corpo humano”.
Stereo também lança o primeiro indício de que a experiência de Cronenberg pretende a separação dos universos masculino e feminino, em algo que ficará mais evidente em Crimes of the Future. O narrador fala da interacção telepática entre os sujeitos, nomeadamente a personagem feminina que de forma esquizofrénica e deliberada facultou um falso “eu” para interagir com outro homem. Enquanto isso, vemos num auditório um homem que persegue uma mulher numa brincadeira de contornos eróticos, como um preliminar para o sexo. Mas esta abordagem feminina e esquizofrénica trará problemas para a emissão telepática, de imagens violentas, de decadência, vampirismo, desagregação e necrofilia, que são manifestações do verdadeiro “eu” e que contaminam os parceiros.
A sexualidade passa a definir-se como o eixo da experiência e consequentemente da narrativa, desde que se comprova que a comunicação telepática, para níveis aceitáveis de fluidez e intensidade, só acontece entre sujeitos com uma forte ligação emocional, em que se joga um papel determinante no erotismo e na atracção sexual. As imagens corroboram e esticam a moral através de pares de objectos humanos sob investigação, que fazem sexo debaixo de lâmpadas, sobre uma maca metálica hospitalar.

O narrador questiona a normalidade a que se associa a heterossexualidade na sociedade e a consequente anormalidade atribuída à homossexualidade e à bissexualidade. Isto deve-se à relação entre a heterossexualidade e a reprodução, à regeneração da espécie. Mas este argumento cai por terra, pois a reprodução representa um pequeno e quase acidental aspecto da sexualidade humana. Enquanto isto, num gesto irónico, as imagens de Cronenberg colocam um trio, dois homens e uma mulher, que partilham e comem frutas à mesa, como um preliminar para o sexo, o que rememora no espectador o conceito bíblico de criação. Para a ciência, prossegue o narrador, há uma equivalência entre homo e heterossexualidade, sendo que a verdadeira norma seria uma forma expandida de bissexualidade, a omni-sexualidade.
Na prossecução da experiência e da transformação do humano, propõe-se o uso de afrodisíacos, sob a forma de drogas sintéticas, como um auxiliar para atingir uma dimensão tridimensional da sexualidade. No entanto, reforçando o princípio de uma sexualidade exploratória e válida per si, o objectivo do consumo destes auxiliares afrodisíacos não é aumentar a fertilidade ou a potência sexual, mas sim demolir as ainda espessas paredes das restrições psicológicas e das inibições sociais que remetem a espécie humana para uma pobre dimensão da sexualidade, uma mono-sexualidade. A telepatia participaria, então, desta possibilidade de transformação, com a forma e o movimento como indutores da actividade erótica, em que a imagem redutora de um seio ou de uma coxa é substituída pelo alcance de uma geometria cerebral que permite a circulação de uma ideia em volta de um seio e de uma coxa, que desfaz a unilateralidade do sexo e introduz os sujeitos na possibilidade do omnisexo.

No entanto, o processo de investigação começa a apresentar problemas na antecâmara do desfecho da narrativa. Surgem patologias e alguns sujeitos a negarem a existência dos processos de telepatia (que as máquinas confirmam), com alterações ao programa que incluíram mortes e danos corporais autoinfligidos pelos sujeitos. Como muitas vezes acontece em Cronenberg, as instituições procuram uma transformação orientada pela ciência, que por vezes sai fora do seu controlo, provocando danos e a morte, sem que o cientista o preveja e deseje.
Se esta dimensão sexual extremada parece pretender esticar a moral e as convenções ao provocar a audiência, que apanhara, entretanto, os ventos da contra-cultura e do movimento hippie, o que Cronenberg deseja é estabelecer uma separação entre o masculino e o feminino.
Em Crimes of the Future, repete-se a ideia de um cientista ausente: Antoine Rouge, o mentor da experiência que o filme relata e que se situa no futuro, no fim do milénio. Rouge, um dermatologista, desaparecera aquando da praga que se seguiu à introdução de cosméticos experimentais, que eliminaram a população de mulheres adultas. O próprio cientista teria morrido na sequência de uma mutação do vírus que a sua experiência gerara. Adrian Tripod, interpretado por Ron Mlodzik, é quem assume o legado de Antoine Rouge, ao coordenar The House of Skin, uma residência hospitalar para doentes ricos com graves problemas dermatológicos, causados por produtos cosméticos. A clínica, em declínio, dispõe de apenas um paciente e dois médicos internos que utilizam terapias bizarras e uma estranha intimidade entre os clínicos e o doente, que Tripod admite não controlar. O paciente acaba por morrer, contagiado pela variante da doença de Rouge e Tripod beija-o durante a convulsão final, para aceder à substância negra que se solta da boca. Tripod, que é também o narrador, confessa-nos que estes fluídos são aquando da secreção inócuos e sexualmente atraentes, numa evidente atracção pela doença, que apesar de conduzir à morte, é retratada como algo paradoxalmente benigno, sedutor.

O protagonista, na eminência do fecho da clínica, relata o percurso de um dos seus colegas que decidira retirar-se. O cientista, que fora um convicto hedonista, convertera-se num metafísico, após contrair uma peculiar doença venérea através de um paciente. O seu corpo começou a criar órgãos misteriosos, posteriormente mais complexos, únicos e aparentemente sem função. Assim que eram removidos, o organismo substituía-os por outros. Esses órgãos, colocados após a extracção em frascos eram, segundo o colega de Tripod, os sistemas solares da galáxia em que se transformara o seu corpo. Uma doença, classificada pelo cientista como uma forma de cancro criativo. Esta pequena porção de Crimes of the Future determinou uma leitura de grande parte da obra do cineasta e haveria de se tornar o assunto de um filme com o mesmo título, estreado em 2022, numa tentativa de associar criação científica e arte, com o corpo do protagonista transformado num work in progress, de cancros criativos suscitados pela motivação artística e o seu livre arbítrio, que convertiam o seu corpo, aquando da remoção dos órgãos, numa instalação pública, estabelecida num espaço hibrido, entre a clínica e a galeria de arte.
Tripod prosseguirá o seu trabalho de investigador e terapeuta num grupo Oceânico Podológico. Apoiada nos registos de Antoine Rouse, o cientista procura desenvolver uma técnica em volta da evolução genética dos pés, rememorando outras espécies marinhas e o uso de tentáculos e barbatanas. A terapia procurava, por um lado, ajustar o mundo à ausência das mulheres e tratar crises psicológicas, convidando os pacientes a experimentar formas oceânicas primitivas e mutações, num esforço de regressão darwinista, que voltaremos a encontrar nos filmes seguintes, na redescoberta de instintos primitivos que, entretanto, o mundo fizera adormecer na espécie humana.

O filme introduz a cor e é espacialmente menos compacto que Stereo, também porque deambula por mais lugares e tem uma alternância entre interiores e exteriores, no exercício de libertação das várias preocupações futuras de Cronenberg. No entanto, os edifícios mantêm o vinculo modernista, através de elementos de geometria sólida e estável, como um contributo para o sucesso das experiências de laboratório, mas que na tentativa de confortar pacientes e cientistas, se tornam cenários de submissão. O trabalho com o som tornou-se em Crimes of the Future mais complexo e sofisticado. As camadas sonoras incluem, para lá da narração estruturante, outros sons e barulhos, como o cantar aflito de pássaros, mas com predominância para a presença da água e de sons emitidos por criaturas marinhas, como golfinhos. A concepção do som, segundo Cronenberg, pretendia simular “uma banda sonora para A Viagem do Beagle (1869)” de Charles Darwin, como um “ballet subaquático”.
No último acto, Adrian Tripod é convidado a integrar uma comunidade marginal de pedófilos que se juntam em esferas de fantasias sexuais imaginadas e que ambicionam uma genética com ferramentas da bioquímica, para desenvolver uma nova forma de reprodução, uma transformação que permita uma sexualidade renovada e consequentemente uma nova espécie de homens. Estas sequências desenvolvem-se em corredores e compartimentos obscurecidos e subterrâneos, com uma noite escura e urbana para lá dos envidraçados e com um som ameaçador, como um ranger produzido por máquinas, que apontam para uma estética distópica, apoiada no imaginário da ficção cientifica. Se esta dimensão sexual extremada parece pretender esticar a moral e as convenções ao provocar a audiência, que apanhara, entretanto, os ventos da contra-cultura e do movimento hippie, o que Cronenberg deseja é estabelecer uma separação entre o masculino e o feminino.

Em entrevista, o cineasta confirma que é esse o assunto de Crimes of the Future: “(…) um mundo onde não há mulheres. Os homens precisam de absorver a feminilidade que desaparecera do planeta, que não pode desaparecer só porque já não há mulheres. A feminilidade tem uma participação crescente, porque aquela dualidade e balanço são necessários. Numa versão futura, um homem morrerá e emergirá como mulher e estará completamente consciente da sua antiga vida como homem”. Na vontade de testar essa transformação, de falar de masculinidade e de feminilidade, que “cada um de nós tem porções de ambas”, Cronenberg recorre a Burroughs que diz que “homens e mulheres não são apenas espécies diferentes, são espécies diferentes com diferentes vontades e propósitos”. O cineasta afirma haver uma “pressão social”, para esbater as diferenças entre homens e mulheres, entre rapazes e raparigas, mas a questão não se resolve apenas na sexualidade: “Um homem pode ser bissexual, mas é ainda um homem. O mesmo para a mulher. Têm vontades que embatem umas nas outras, muitas vezes em conflito. Se habitássemos planetas diferentes, veríamos o planeta feminino direcionado para um caminho e o masculino para outro”. Cronenberg, que adaptaria Naked Lunch (O Festim Nu, 1991) em 1991, conta o fascínio de Burroughs quando lhe falou de uma espécie de borboleta, em que o “macho e a fêmea são tão diferentes que os cientistas demoraram 40 anos a discerni-los, pois não conseguiam encontrar o macho da fêmea e vice-versa”. Uma das espécies de borboletas “era enorme e colorida”, a outra “pequenina e negra”. Não combinavam. Mas, entretanto, resultado de uma transformação, descobriram uma versão hermafrodita da borboleta, divida ao meio: “uma parte grande e brilhante, a outra pequena e escura; os cientistas não conseguem perceber como voam, como é que se equilibram”.
O protagonista de Crimes of the Future que resgatara uma criança da comunidade, a quem tinham induzido uma puberdade precoce, encontra sinais da praga de Rouge, que acabará por liquidar a rapariga e o próprio Tripod. A ciência voltava a mostrar-se falível e os homens da ciência erráticos nas suas acções; mas não é possível associar uma corrupção deliberada, de indivíduos e de instituições, no colapso da experiência e nos crimes a que assistimos e que se projectam no futuro.