Manoel de Oliveira afirmou, numa entrevista de 1996, que “a única maneira de filmar um livro tal e qual ele é, é filmá-lo página a página, e o espetador lê-o no ecrã.” Esta afirmação que procurava afirmar por contradição que a “adaptação” cinematográfica é uma miragem – não pode existir “adaptação”, porque se tratam de meios de expressão de naturezas inconciliáveis, poderá haver, sim, apropriações, inspirações, deturpações e outras confusões – acaba por remeter para um conjunto de experiências ocorridas nos anos 1970, por um conjunto de cineastas muito díspar, que exploraram os limites da “adaptação” literária para cinema, literalizando essa impossibilidade ontológica enquanto afirmavam o filme como objeto de arte conceptual. Um desses título é Fortini/Cani (1976) – outros seriam, a título de exemplo e em diferentes declinações, além de Amor de Perdição (1978), Le Camion (1977) ou Hapax Legomena II: Poetic Justice (1972). Um filme onde se retrata, literalmente, um livro – Danièle Huillet e Jean Marie-Straub não adaptam o livro, filmam-no, simplesmente. Ou melhor, filmam o próprio ato da leitura como forma de dar corpo e imagem ao texto.

Mas antes de me debruçar sobre o filme do casal Straub-Huillet, há um outro título, precedente, do artista David Lamelas, que ajuda a situar – nem que seja por contraste – o filme da dupla. Esse filme é Reading Film From Knots by R.D. Laing (1970). Logo no título fica claro que este é um “filme para ler” (reading film) e que o livro em causa se intitula Knots e foi escrito por um tal R. D. Laing. Este acrónimo esconde o nome completo do psicanalista escocês Ronald David Laing, conhecido pela sua abordagem contrária à patologização automática de indivíduos neurodiversos, em especial aqueles diagnosticados com psicose. Integrado (ainda que contra a sua vontade) no movimento da antipsiquiatria, Laing trabalhou as questões mentais como problemas filosóficos e linguísticos, pondo em causa a epistemologia do diagnóstico psiquiátrico como uma contradição dos termos: avalia-se o comportamento, mas trata-se a biologia. Paralelamente, escreveu dois livros de poesia, Sonnets (1979) e, antes desse, o referido Knots (1970).
É a partir daí que o artista argentino fará o primeiro dos seus “reading films”, no mesmo ano em que se edita o livro de Laing, e em antecipação da peça de teatro onde Edward Petherbridge procurará “adaptar” esse texto ao teatro (e que será, depois, filmada em 1975, no filme homónimo de David Munro). Ao contrário dessas outras interpretações do texto de Laing (que é composto por sucessivos jogos de sentido), onde se criavam personagens e situações com vista a ilustrar os labirintos mentais do escritor, Lamelas faz algo muito mais simples e – posso dizê-lo – eficaz. Primeiro, dá-nos, no ecrã, por um tempo que sendo confortável para a leitura é definido pelo realizador, algumas páginas do livro de Laing. Depois, num segundo momento, apresenta uma figura (uma mulher) que lê exatamente as mesmas passagens que haviam corrido na primeira parte.
Esta simples dissociação entre a leitura do espectador, feita em silêncio (o leitor lê em silêncio, mas também o filme apresenta as páginas em silêncio), e a escuta de uma outra leitura, desta feita em voz alta, mas sem o acesso ao texto é suficiente para friccionar e desnaturalizar a associação direta entre palavra escrita e palavra dita. Se esta operação poderia ser feita para qualquer livro (e Lamelas fê-lo, nesse mesmo ano de 1970 realizou Reading of an Extract from Labyrinths by J. L. Borges), a sua força disruptiva só se revela verdadeiramente quando o próprio texto já carrega em si um questionamento dos próprios limites da comunicação escrita (a segunda escolha, de Borges, não é, por isso, acidental).
Reading Film From Knots é apenas mais um dos muitos trabalhos de David Lamelas onde este interroga a própria matéria dos recursos artísticos, pondo em causa os elementos basilares ora da imagem, ora do som, ora da composição, ora do mecanismo expositivo, etc. Até certo ponto é possível afirmar que a obra de Lamelas – de forma geral – trata afinal de apenas dois elementos fundacionais: o tempo e o espaço. Peças do início da sua carreira como a série Limitie de una proyeccioni ou Signaling Three Objects são abordagens muito concretas ao espaço e ao modo como a sua delimitação (uma linha, uma fonteira, um dentro e um fora – A Study of Relationships Between Inner and Outer Space) é, por si, uma afirmação escultórica: “fazer aparecer as coisas presentes”. Obras posteriores exploram, de forma mais declarada, as noções e as representações (literais) do tempo, em particular as suas incursões pelo cinema e pela performance: penso na série Time as Activity ou “actions” como Time (1970). Os Reading Films são objetos intermédios, onde a noção de espaço é totalmente interior (o espaço da leitura) e a do tempo é totalmente exterior (Lamelas impõe um tempo de leitura, um ritmo, uma sequência).
A dupla transposição do texto para o cinema, por via visual (as páginas) e sonora (a leitura), acaba por traduzir, na sua secura mecânica (aparentemente indiferente ao conteúdo), a própria essência dos jogos verbais de Laing. Posto doutro modo, a linearidade formal de Lamelas apenas acentua o intricado linguístico que é o emaranhado de Knots (e o mesmo para Labyrinths – os títulos bem remetem para essa complexidade). Esse acentuar é – claro está – uma leitura, isto é, uma “adaptação”. Aquilo que parecia uma literalidade (um pleonasmo visual) é, a contrario, uma perspetiva bastante subjetiva (para não dizer irónica e provocadora) da obra do psicanalista – para já não falar da própria escolha que antecede o filme e que consiste na seleção das páginas que integram o filme, cerca de dez, de um total de noventa, na edição original).

Regressando a Fortini/Cani (1976), a primeira longa-metragem da dupla Huillet-Straub, é, à imagem e semelhança do trabalho de Lamelas, um filme que coloca no título uma série de informações relevantes para a “leitura” da obra (ainda que o título não figure no próprio filme – que não tem créditos). “Fortini” é o apelido Franco Fortini, um ensaísta e filósofo italiano (nome cimeiro do pensamento na Nova Esquerda italiana dos anos 1970), enquanto “Cani” remete para um dos seus livros, I Cani del Sinai (“Os Cães de Sinai”, editado originalmente em 1967, cuja capa encontramos no primeiro plano do filme para que não restassem dúvidas). A abordagem de Straub-Huillet é semelhante à de Lamelas, mas com as suas nuances: aqui a leitura é feita na íntegra, pelo próprio escritor (o que introduz um outro elemento, da ordem do retrato) e a céu aberto (o que convoca, através da paisagem, uma série de memórias associadas ao lugar), além de que se incluem vários outros elementos no filme, outras figuras e outros documentos acessórios que ajudam a contextualizar e justificar certas referências do texto.
O materialismo do panfleto de Fortini é engolido pelo materialismo do olhar dos realizadores: mais do que a palavra dita interessa-lhes o seu som, mais do que as palavras escritas interessa-lhes a caligrafia, mais do que o homem interessa-lhes a sua presença.
O ensaio de Fortini havia sido publicado três meses depois da Guerra dos Seis Dias, que havia resultado na ocupação, por parte de Israel, de alguns territórios dos países vizinhos: parte da Cisjordânia, o sector oriental de Jerusalém (ocupada até então pela Jordânia) e as Colinas de Golã da Síria. A opção de Straub e Huillet em filmar o próprio autor a ler o seu texto torna-se clara quando se evidencia, no seu rosto e no seu modo de ler, a violência e a objeção pessoal que já estavam patentes no texto. Straub afirmou que o que lhe interessava “era a cólera de um homem já idoso, filho de pai judeu e mãe cristã e que teve a coragem, enquanto intelectual italiano, de escrever um panfleto”. O discurso – a crítica ao capitalismo e à alienação do estado de Israel – e a paisagem – local de alguns confrontos entre os partigiani e as tropas nazi – enchem-se de alusões à resistência ao fascismo, antecipando, por um lado, o sentimento anti-árabe que se generalizou nas décadas seguintes na Europa, e apresentando-se, por outro, como uma meditação sobre os abusos de poder e a amnésia histórica. O modo como Straub-Huillet conseguem alcançar essa dimensão ensaística passa pela forma como recorrem à paisagem enquanto comentário, ao introduzirem os intervalos a negro (apenas preenchidos pela voz do escritor ou mesmo em silêncio) e como alternam – evitando a redundância – texto escrito, texto dito e imagens das colinas verdejantes que o rodeiam.
Depois da abertura, a câmara de Renato Berta (o diretor de fotografia do filme, que viria a ser um dos mais fiéis colaboradores do casal de cineastas, vindo, anos mais tarde, a trabalhar com assiduidade nos últimos filmes de Manoel de Oliveira) perde-se em panorâmicas durante cerca de vinte minutos. Sempre a rodar, lentamente, e sem qualquer comentário em off, constrói-se um momento eminentemente concentracionário (instala-se uma sensação opressiva, onde a paisagem nunca alcança o horizonte; estamos rodeados por montanhas e a câmara parece presa ao chão). Só aos vinte e cinco minutos de filme os realizadores nos dão o rosto de Franco Fortini, lendo o livro que, ao contrário do que tinha acontecido antes, se encontra fora de campo. Só aqui se torna clara a natureza do texto do escritor: Fortini compara a perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra pelos nazis à, ainda atual, perseguição aos povos árabes pelo estado de Israel. Justifica-se, portanto, os planos que Berta nos havia oferecido do monumento às vítimas da Guerra e a paisagem toscana ressurge, à luz do texto, como um elemento de contexto geográfico, sociocultural e ideológico. Fortini é judeu, mas é também italiano e, mais que tudo, é comunista. Essa interseção dá-lhe um ponto de vista intermédio, simultaneamente europeu e como tal marcado pelos horrores do nazismo, culturalmente hebreu e, antes disso, anti-imperialista e materialista. Essa posição permite-lhe uma crítica vinda de dentro que, exatamente por isso, é mais virulenta que qualquer outra.
Esse plano médio, que apresenta a face direita de Fortini a ler, à luz da manhã, prolongar-se-á por vários minutos, ora interrompido com passagens escritas (à mão) do livro – e quando estas surgem na imagem, suspende-se a leitura – ora interrompido por panorâmicas sobre a paisagem (natural e urbana) que nem sempre suspendem a sua voz. Na última parte do filme, o plano de Franco Fortini é ainda médio, mas mais próximo, e apresenta o outro lado do seu rosto, agora totalmente de perfil; a luz é já a do entardecer e à medida que este lê, o tempo passa e a imagem escurece. Esta depuração e austeridade (dois planos, dois lados do rosto) contrasta com um certo barroco do texto, carregado de referência, parêntesis, derivas e interjeições (como este, infelizmente…). Mais do que aquilo que ele diz, importa o tom, a veemência e o acinte. Há até uma certa indiferença campestre ou, antes, o que interessa a Straub-Huillet é a concretude daquele homem, naquele lugar, àquela luz, dizendo aquelas palavras para a câmara. O materialismo do panfleto de Fortini é engolido pelo materialismo do olhar dos realizadores: mais do que a palavra dita interessa-lhes o seu som, mais do que as palavras escritas interessa-lhes a caligrafia, mais do que o homem interessa-lhes a sua presença. E até o movimento de câmara que filma a paisagem, a panorâmica, é o mesmo que, nos últimos dez minutos de filme, nos dá a ler, mimetizando o movimento do olhar, as palavras datilografadas de I Cani del Sinai: filmar o texto como se filma uma montanha.
