Aniversários de anos são uma constante no jornalismo cultural, afetando principalmente as áreas musical e cinematográfica. Entrou 2022 e muitos veículos começaram a publicar textos com os grandes discos ou filmes de 1972, 1982, 1992, 2002, e por aí vai (os mais imaginativos comemoram 25, 35, 45 anos, o que abre brechas para inúmeras listas).
Fui incumbido de fazer um texto sobre o ano de 1972 para uma mostra cinematográfica. Mas meu texto teria de ser mais um panorama geopolítico, explicando com algum didatismo como havia sido aquele ano, no Brasil e no mundo.
O que se segue é o que não coube naquele texto. Uma reflexão cinematográfica-musical que procura estabelecer conexões entre um disco específico de 1972, situado dentro de uma cena que estava em alta, com alguns filmes que representariam uma relação paralela com o disco no sentido de exacerbar certas tendências.
São lembranças recentes, de outubro passado, um período tenso pois ainda não sabíamos se conseguiríamos nos livrar de um pesadelo de quatro anos. Conseguimos. Consigo olhar para o texto com alguma leveza. Talvez seja viagem demais, mas o rock progressivo permite isso tanto quanto o tipo de cinema que me desconcerta.
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Na Inglaterra, o rock progressivo de bandas como Genesis, Yes, Emerson, Lake & Palmer e Pink Floyd estava no auge, com shows mirabolantes em estádios e grandes arenas, mas não é para se desprezar a força do glam rock em discos de David Bowie (Ziggy Stardust and the Spiders of Mars), Roxy Music (1º LP), T-Rex (The Slider) e Gary Glitter (Glitter), ou a fúria proto-punk do Slade, que chegava com o demolidor disco ao vivo Slade Alive!. Os Rolling Stones gravaram na França o álbum duplo Exile on Main Street, tido por muitos como um de seus melhores momentos. No lado mais pesado, Deep Purple (Machine Head), Uriah Heep (Demons and Wizards e Magician’s Birthday) e Black Sabbath (Vol. 4) lançavam discos antológicos, com muita influência do rock progressivo.
O cinema não tem a mesma facilidade da música para influenciar (ou se apropriar de) o espírito de um tempo, mas podemos pensar que filme seria equivalente ao que foi Thick as a Brick para a música em 1972.
Pouco tempo depois da separação dos Beatles e mesmo com a salutar reação dos contrários, podemos dizer então que uma das principais caras culturais de 1972 era justamente a evolução do rock nos dois lados do Atlântico, agora trocando figurinhas com a música erudita e o jazz. Para alguns, era música para boi dormir. Para outros, um deleite de técnica e virtuosismo. Para mim, o que mais pega são algumas das mais belas melodias que podemos encontrar nos melhores discos de rock progressivo.
Em março de 1972, no mesmo mês de lançamento de Slade Alive!, no espectro musical quase oposto, a banda inglesa Jethro Tull lança Thick as a Brick, o disco de uma música só, dividida em duas partes por limitação do LP (o que o CD tratou de corrigir futuramente). Entendido como símbolo de uma era de excessos, de músicas gigantes com solos intermináveis e muitas mudanças em suas estruturas, Thick as a Brick representa bem o que estava no espírito do tempo: extrapolar, testar limites, levar algo ao seu estertor. Até onde poderia ir o rock? Até este LP monumental, diziam Ian Anderson e demais membros do grupo. Contra isso, primordialmente, e depois contra a disco music, iria ressurgir o punk rock em sua demonstração mais impactante, com inúmeras bandas explodindo entre 1976 e 1977. Mas em 1972, apesar do glam e do power pop revisionista de bandas como Raspberries, era o excesso que falava mais alto. Nesse ano, a banda Yes lançaria Close to the Edge, com apenas três faixas (uma delas, a faixa título, ocupando todo um lado), e no ano seguinte a mesma banda lançaria Tales From Topographic Ocean, álbum duplo com apenas quatro faixas, uma de cada lado, elevando a palavra excesso a novos patamares. Ainda em 1972, Pink Floyd lança o filme que documenta o show que fizeram nas ruínas de Pompéia. O DVD desse registo, por sinal, era um dos mais vendidos na primeira década deste século.
O cinema não tem a mesma facilidade da música para influenciar (ou se apropriar de) o espírito de um tempo, mas podemos pensar que filme seria equivalente ao que foi Thick as a Brick para a música em 1972. Para deixar o jogo ainda mais interessante e fechar ainda mais o paralelo no sentido temporal, procuremos um filme que tenha sido lançado também em 1972. Seria o genial longa de Fassbinder, Die bitteren Tränen der Petra von Kant (As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, 1972), cuja teatralidade é contornada por um trabalho exemplar da câmara de Michael Ballhaus? O maneirismo fassbinderiano poderia ser equivalente à excelência do excesso prog do disco do Jethro Tull, afinal, maneirismo e rock progressivo combinam, como notou anos mais tarde Vincent Gallo em seu primeiro longa, Buffalo ’66 (1998), cuja trilha juntava Yes e King Crimson. Mas talvez a equivalência mais justa seja com o barroquismo de Sergio Leone em Giù la testa (Aguenta-te, Canalha!, 1971) (no Brasil: Quando Explode a Vingança), lançado em 1971 na Itália e em 1972 no exterior, ou com Solyaris (Solaris, 1972) , de Andrei Tarkovsky, embora este tenha uma equivalência ainda mais justa com outro aspecto do rock progressivo, representado pelo Hawkwind, que nesse ano lançou Doremi Fasol Latido, álbum que consolidou o estilo space-rock. Ainda tem, no cinema italiano, I racconti di Canterbury (Os Contos de Canterbury, 1972) de Pier Paolo Pasolini, e Roma (1972), de Fellini, dois candidatos de peso a essa equivalência. Mas Pasolini está mais para um proto-punk do que para o progressivo, e Fellini estaria mais próximo do glam rock de um Roxy Music.
A meu ver, quem ganha essa disputa é um filme desse mesmo ano de 1972: Ludwig – Requiem für einen jungfräulichen König (Ludwig, Requiem para um Rei Virgem, 1972), de Hans-Jurgen Syberberg, tanto por representar um novo estilo cinematográfico baseado num maneirismo cheio de projeções visuais, cenários artificiais, atores como estátuas, teatralidade confrontadora, buscando uma ruptura com o naturalismo cinematográfico, quanto por fazer valer a ideia de que rock progressivo, pelo menos até 1972, poderia ser entendido como rock progressista, como defendem alguns historiadores do rock. O Ludwig de Syberberg apresenta um caminho tão novo, reconhecido e celebrado na revista Cinéfilo à época de sua estreia em Portugal, que será o próprio Syberberg a desbravá-lo em longas seguintes, notadamente em Hitler, ein Film aus Deutschland (Hitler – Um Filme da Alemanha, 1977).
Encerro por aqui a viagem, sabendo que outros caminhos poderão levar a lugares tão ou mais interessantes. Como um apaixonado por rock progressivo e filmes maneiristas, sei que esse caminho era o melhor que eu podia ter traçado numa comparação entre música e cinema envolvendo 1972.
Dedico este texto à minha mãe, Maria dos Anjos Alpendre de Oliveira, que aguentava muito das músicas que eu escutava quando jovem ou adolescente, gostava até de algumas delas, e faleceu em 12 de outubro.