Spin (2001), de Hannes Schüpbach
I
A matéria divide-se entre o visível e o invisível, entre a luz e a escuridão. Na pontuada fragmentação binária revelam-se elementos de uma percepção que, a partir do abstracto, se eleva ao concreto.
Pouco será possível contemplar no registo habitual de visualização – esse mergulho na adoração da contemplação continuada – pois os momentos escapam como se do próprio tempo fugissem.
Mas é na zona de partilha dos mais delicados detalhes que nos aproximamos de um quadro completo de intimidade. As cores das pétalas e dos frutos que se destacam no plano do verde exterior dão-nos pistas para uma aproximação do sujeito em retrato: a mãe de quem aqui nos traz. As flores e os frutos estão no jardim, estão também na camisa que veste, e estão também – talvez – em si.
Alternamos, assim, entre aquilo que está (cá) fora, entre aquilo que está (lá) dentro, para ficarmos naquilo que é (des)focado, (in)definível: uma amostra da memória. Espalhados pedaços que, no puzzle dos confins da imortalização do baú que estimamos, irradiam a vivência no jardim que pisámos, em que (vi)vemos em conjunto.
II
Enquanto via este filme, parei, por momentos, para vestir qualquer coisa. Não estava muito frio mas precisava realmente de meter mais uma camada para além daquela que tinha. Vesti o casaco azul do meu avô. Tem aquele jeito de casaco ideal para (as ditas) meias (ainda que plenas)-estações. Sempre que o visto, como uma confiável cobertura para manutenção de temperatura corporal, sinto uma certa (res)significação. Daquilo que se tornou meu, sem ser. Desperta em mim (quando assim o permito) um impulso nostálgico: pela sua firme temporalidade estética, pela estranheza do corte que rompe – por uma simples tonalidade – o habitual registo individual, mas também pela concretização da ausência desse outro que, outrora, aqui (também já) habitou.
A sua forma e o seu tecido impõem uma ordem de saída – não parece adequado o seu uso no interior. Cumpro essa sua premissa.
Mas tenho medo de esquecer porque vi – e, aí sim, lembro-me de ver – esse cruel precipício expandir, dominar. De tomar como seu o espaço que não lhe pertencia.
Enquanto caminhava pelo passeio, parei, por momentos, para escolher uma música. Aquele típico momento em que se determina a linha que acompanhará – ou criará – o nosso próprio filme. Faço-o todos os dias, afastando-me dos (caóticos) ruídos que me perseguem, aproximando-me do (meu prazeroso) silêncio. Decidi, desta vez, seguir uma vontade de guardar novas (em velhas – ou falsas) recordações. Começa a tocar a banda sonora de Jonathan Livingston Seagull (1973). Não tenho qualquer tipo de relação com esse registo audiovisual mas sei – porque me foi dito – que o meu avô tinha essa cassete no carro. Induz-se, assim, um momento repartido entre aquilo que vivo e aquilo que imagino viv(id)o. Tento simular as situações e circunstâncias em que estas bases melódicas estiveram em pano de fundo. Imagino um mundo que não é meu, que não pode ter sido dele, mas que me traz (singelas) lágrimas ao rosto. Guardo esse momento – raro – nestas frases. Antes que me esqueça, antes que desapareça, antes que não seja nosso.
Enquanto lançava um sorriso de surpresa por tal reacção inédita, parei, por momentos. Lembro-me da minha própria traição. Uma mágoa marcada pela – que vejo como – injustificável falta de referências, pelo vazio na base, pela (quase) impossível capacidade de regressar a terrenos já pisados. Abismo em que me lanço à procura de mais, algo além daquilo que me é contado.
Mas lembro-me dele. Lembro-me de estar no carro onde sei – porque me foi dito – que não tocava muita música, mas em que estava a cassete com a banda sonora de Jonathan Livingston Seagull, feita pelo Neil Diamond e Lee Holdridge. Esbocei o primeiro sorriso do dia – poucos minutos antes de meter a música a tocar – quando o meu pai me deu essa resposta à questão: “que músicas é que o avô ouvia?”. Achei curioso – mas não fiquei admirada – que o meu avô escolhesse ouvir uma banda-sonora. Não é, na minha opinião, por acaso: quando vejo as filmagens que fez em Super 8, vejo o seu – agora e sempre nosso – cinema. Nesse veículo da expressão leio gestos de amor. Dos seus registos ficam imagens da minha avó, dos seus filhos e do seu carro. Na verdade, atrevo-me a dizer que terá feito em vida o meu road-movie preferido: aquele que ficou em fita (já digitalizada) e aquele que guardo (até hoje) na memória.
Mas tenho medo de esquecer porque vi – e, aí sim, lembro-me de ver – esse cruel precipício expandir, dominar. De tomar como seu o espaço que não lhe pertencia. De criar uma névoa sobre os olhos de azul que via como de um imenso mar. Em que o presente – fugidio – dita a consciência – fugaz. Na verdade, todes questionamos como será v(iv)er através desse lugar onde o ponto de partida e chegada têm uma distância ínfima entre si, de estar tão à flor do momento em que perdemos a noção de nós e des outres. Em que nos transformamos em algo de foro desconhecido.
Mas escrevo estas linhas (já em casa) para deixar a marca para o futuro – o que receio, mas também o que anseio. Como uma tatuagem impressa nos tecidos que ocupo em mim. Para que, em breves momentos, quando me esquecer deste presente que já foi, fique qualquer coisa.
Páro o loop do filme que não vi. Deixo-me levar, por agora, pela banda-sonora que decido, a partir dele, para mim: começa a tocar a “Seabird”, dos Alessi Brothers. Dispo o casaco. Não fica bem dentro de casa. Visto o pijama. Mas ainda me lembro.
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Pego na flor do seu jardim e trago-a comigo. Do seu fruto (re)nasceu o azul do meu Agostinho.