Everybody loves a baby / That’s why I’m in love with you (…)
And I’d like to be your sister / Brother, dad and mother too
— “Pretty Baby” (1916), música e letra de Tony Jackson.
Mesmo antes de aprender a andar, já Brooke Shields, nascida em 1965, posava diante das câmaras fotográficas para uma campanha publicitária da marca de sabonetes Ivory; meses depois, a sua mãe assinaria contrato com a agência de modelos Ford, lançando Brooke numa carreira de modelo infantil tão precoce quanto lucrativa. O seu percurso é desde cedo marcado por várias polémicas: em 1975, uma série de fotos sugestivas mostrando a jovem, com dez anos apenas, nua numa banheira, estará no centro de uma batalha judicial entre o fotógrafo Gary Gross e a mãe da modelo, que tenta em vão proibir a divulgação das fotos após ter assinado uma autorização parental cedendo os direitos da sua exploração; no início dos anos 80, torna-se a mais jovem modelo a figurar na capa da Vogue e gera novamente polémica com a sua participação numa ousada campanha da marca Calvin Klein. No mesmo ano, Brooke Shields interpreta aquele que continua a ser até hoje o seu mais célebre papel no cinema, o da jovem náufraga que descobre a puberdade e a sexualidade numa ilha deserta, palco idílico do filme romântico The Blue Lagoon (A Lagoa Azul,1980).
Felizmente, The Blue Lagoon não se trata da primeira aparição de Brooke Shields no grande ecrã (filme tantas vezes visto, durante a minha própria adolescência, nos “pequenos ecrãs” de televisão em Portugal, nas sessões de domingo à tarde); e, pelo menos para aqueles que tenham a ocasião de descobrir Pretty Baby (Menina bonita, 1978) do cineasta francês Louis Malle, não será certamente o seu papel mais memorável.
Em 1978, a jovem modelo é escolhida para protagonizar a longa-metragem que vem inaugurar a fase americana daquele que, vinte anos antes, contribuíra para “dar o tom” da Nouvelle Vague, com Ascenseur pour l’échafaud (Fim de semana no ascensor, 1858): desta feita, Louis Malle substitui as melodias langorosas e febris improvisadas por Miles Davis para a banda sonora do seu célebre film noir, pelas marchas sincopadas e alegres do ragtime, precursor da música jazz cujo berço histórico, os bordéis do bairro Storyville (o “red light district” de New Orleans, no início do século XX), serve de palco à intriga da sua primeira produção além-Atlântico. Com Pretty Baby, o cineasta oferece um retrato fiel da vida quotidiana num bordel durante a Primeira Guerra Mundial, através do olhar de Violet (Brooke Shields), a filha de uma das prostitutas, Hattie (Susan Sarandon), que, respeitando a “ordem natural das coisas”, verá a sua virgindade ser leiloada e seguirá os passos da mãe, rumo aos braços de um homem mais velho.
Assim, as cenas que mais perturbam são aquelas em que a fronteira entre o “faz de conta” das brincadeiras infantis e a violência do mundo dos adultos se dissipa (…)
Paralelamente às cenas que mostram a vida das prostitutas no bordel de Madame Nell (Frances Faye), entre os prazeres libertinos das noites passadas a entreter os clientes da alta sociedade, e os afazeres coletivos do dia-a-dia partilhados com a “criadagem” afro-americana, uma intriga secundária em torno de um personagem exterior a esse meio vem colocar no centro da narrativa de Pretty Baby a dimensão ritual do corpo feminino e dos olhares que sobre ele se deitam: um dos clientes habituais da casa é um fotógrafo, aparentemente menos interessado em usufruir dos prazeres carnais do que em capturar em fotografias a essência das mulheres que para ele posam. Esse fotógrafo existiu realmente: trata-se de Ernest J. Bellocq, autor da série de fotos publicada em 1971 sob o título “Storyville Portraits” – uma das fontes de inspiração assumidas de Louis Malle, sendo a outra o livro de Al Rose Storyville, New Orleans (1974), e em particular testemunho de uma mulher nascida num dos bordéis desse bairro.
No filme, a personagem do fotógrafo, interpretada por Keith Carradine, desenvolve um fascínio particular pela dupla Hattie-Violet, sentimento que será retribuído, e mesmo exacerbado, por esta última. Rapidamente se estabelece entre Bellocq e Violet uma estranha ligação, oscilando entre a dinâmica parental e a relação conjugal. Enquanto “fabricante de imagens” com um vínculo ao real (ideia que remete para a “ontologia da imagem fotográfica”, nos termos de André Bazin), poderíamos ver na figura do fotógrafo uma espécie de alter-ego de Louis Malle, nomeadamente tendo em conta a insistência do cineasta sobre o valor documental das suas fontes de inspiração. Mas o filme contém uma outra presença masculina que, mantendo-se nos bastidores da trama narrativa, é capaz de dirigir o nosso olhar sobre os eventos invisíveis a olho nu, da mesma forma que o realizador sonda a interioridade da protagonista com a sua câmara: refiro-me à do ator Antonio Fargas no papel do pianista afro-americano que anima os serões no bordel; este não só incarna a cultura jazz pela qual Louis Malle sempre assumiu a sua paixão, como parece ser o único homem a ver realmente Violet como a criança que ela é.
Embalada pelas cúmplices melodias blues e ragtime improvisadas pelo pianista negro (que evocam esse tempo, não tão longínquo assim, de uma outra prática de comércio dos corpos: a escravatura), a “menina bonita” faz do bordel o seu espaço de recreio, uma espécie de casa de bonecas em tamanho real onde brinca ao “faz de conta”, reproduzindo sem reservas nem preconceitos os comportamentos das prostitutas que a rodeiam, simultaneamente irmãs e mães de substituição (já que a sua própria mãe a abandonará para se casar com um cliente). Neste meio de deboche onde, apesar dos inconvenientes inerentes à profissão, reina uma atmosfera acolhedora, Brooke Shields/Violet não se deixa intimidar por nenhuma das objetivas fotográficas que se cruzam no seu caminho, seja a do pesado e arcaico aparelho de Bellocq, que a obriga a posar imóvel durante vários minutos, ou a da câmara de filmar de Louis Malle que, mais moderna e já capaz de movimento, a acompanha com agilidade nos seus jogos infantis e de sedução… mas também sabe quando deve retrair-se para proteger a sua privacidade (por exemplo, deixando fora de campo a noite da sua “defloração”, vivida e celebrada pela própria como uma cerimónia de primeira comunhão).
(…) é precisamente na medida em que um filme como Pretty Baby nos parece “impensável” no século XXI, que se torna urgente pensar sobre e a partir das imagens do corpo feminino que nele são “oferecidas” ao olhar do espectador contemporâneo.
Fiel aos seus hábitos de “amoralista”, Louis Malle tem o cuidado de não caricaturar as personagens, limitando-se a observar o modo como estas evoluem num meio à margem da sociedade, e que, portanto, não pode ser julgado segundo as normas e os valores em vigor. No entanto, apesar da mise-en-scène não contribuir particularmente para uma hiperssexualização de Violet, esta não nos deixa indiferentes, sobretudo nas cenas em que a criança posa nua, e que o tempo fílmico nos obriga a tomar consciência do modo como o nosso olhar se demora sobre um corpo que não pediu para ser olhado. Estas cenas oferecem ao espectador uma espécie de mise-en-abime da objetificação a que é então sujeita Brooke Shields nos seus trabalhos de moda, com doze anos apenas.
Paradoxalmente, a nudez da protagonista perturba menos que os grandes planos sobre o seu rosto exageradamente maquilhado: através dos olhares que Violet dirige à objetiva de Bellocq/Malle, vemos não a personagem, mas a criança-modelo obrigada desde cedo a despir-se da sua infância para vestir a pele de uma mulher sedutora. Assim, as cenas que mais perturbam são aquelas em que a fronteira entre o “faz de conta” das brincadeiras infantis e a violência do mundo dos adultos se dissipa: quando Violet, sentada debaixo de uma árvore a brincar às mães e às filhas com uma boneca, imita a maneira de falar de Hattie e ralha com a boneca como se fosse ela própria; ou quando quase força um outro rapaz da sua idade a ter sexo com ela, sendo de seguida alvo de represálias que visam mais o facto de se tratar de um negro do que – chamemos as coisas pelos seus nomes – de uma tentativa de violação entre crianças.
No final do filme, Hattie regressa a Storyville com a intenção de recuperar Violet, que entretanto se havia instalado na casa de Bellocq, e de lhe propiciar uma nova vida dentro das normas da sociedade. É então pelas mãos do padrasto que é disparado o mais recente modelo de aparelho fotográfico portátil, cristalizando numa foto de família a tentativa de devolver Violet à idade da inocência.
Os assuntos controversos nunca assustaram Louis Malle, que já nas duas primeiras décadas da sua carreira abordara questões tabu nem sempre bem recebidas pelo público e pela crítica, como o suicídio [Le feu follet (Fogo fátuo, 1963)], o incesto [Le souffle au cœur, (Sopro no coração, 1971)], ou o colaboracionismo francês durante a ocupação alemã (Lucien Lacombe, 1974)]. Sem surpresa, Pretty Baby não será exceção: se já na altura o cineasta é acusado de idealizar a prostituição, de hipersexualizar a infância e de incentivar a pedofilia (tendo mesmo sido obrigado a retirar do filme algumas das cenas de nudez protagonizadas por Brooke Shields), é-nos fácil imaginar que um tal projeto e o seu realizador seriam tacitamente “cancelados” nos dias de hoje. Porém, é precisamente na medida em que um filme como Pretty Baby nos parece “impensável” no século XXI, que se torna urgente pensar sobre e a partir das imagens do corpo feminino que nele são “oferecidas” ao olhar do espectador contemporâneo.
Pretty Baby foi apresentado pela primeira vez na Cinemateca Portuguesa no dia 11 de Novembro. Uma segunda projeção terá lugar no dia 25 de Novembro às 15h30.