Em um texto da coletânea Amor, ódio e reparação, a psicanalista infantil Melanie Klein, reeditando Dostoiévski para estigmas de profundezas objetuais, nos fala da infelicidade das crianças: “(…) Em geral se atribui à experiência da criança um grau de felicidade que se oporia às dificuldades afetivas e aos transtornos psíquicos dos adultos; é justamente, talvez, o contrário: ninguém sofre tanto quanto as crianças as mazelas de sua condição”; analista do mau objeto, talmudista segundo o pai, progênita do ódio da mãe, intérprete de Freud desde a nota de rodapé em sua obra da infância desvalida, dependurada na Mãe monstruosamente litigante por um pedaço introjetado de seio maligno, Klein nos deu as chaves para entender que o Era uma vez da infância eudaimônica, de gratidão e plenitude foi o mais mentiroso dos contos jamais contados para adormecer adultos cheios de má-consciência por obra de uma Origem mal resolvida; o que nos conta o olhar desolado da boneca leitosa Candice Carveth, a garotinha assombrada por uma irmandade e maternidade perversos em The Brood (A Ninhada, 1979) [nota: Filhos do medo no Brasil]? Que a perseguição paranoica, o opróbrio do abandono e a solidão do plano de conjunto do jardim de infância são infinitos, isto já o pressentíamos pelo grau de ansiedade sintomatológica de seu corpo sempre opresso de uma curvatura suspeita; o que não supúnhamos é que os males da vida interior premem com considerável pressão malévola aquele corpo infans, aquela Origem anterior e mesmo irredutível à linguagem, muito mais sofredora que o adulto porque não possui, para opor à sua paticidade pânica, o arsenal de sintagmas significantes para se proteger dos avanços de um mundo funesto em sua tentacular proliferação de sintomas corruptos.
The Brood é um roteiro jamais filmado pela investigadora dos bons e dos maus objetos, um portrait irisado de decomposição expressionista e semi-pornográfica da Mãe abominável (aquela, segundo Klein, que é o lugar do superego arcaico, predatório, antropofágico) que, à semelhança do oceano de Francis Ponge, é “como a medusa, aquela que efetiva uma reverência extática a todas as suas bordas”; mas o encontro marcado com o Monstro somático das Origens, nestes primeiros longas, é de acordo com a regra de ouro, tão estruturante nos Cronenberg do final dos 70 e 80, do raccord diretivo, da acumulação de detalhes terríficos segundo um metro teleológico de crescendo em surdina, da estrutura tripartida de um conto iniciático para o planctum libidinoso do Totalmente Outro mas desde que devidamente regrado pelas convenções de clareza e síntese lapidares de grandes organismos classicistas, saturados de saúde sintrópica para resistir, em seu bojo sintático, às invasões infecciosas das pulsões malditas; esta seja talvez a nota bem-aventurada dissonante que dissocia early Cronenberg de outros autores do exploitation libidinal: a sua ataraxia teoremática libera o corpo do filme para metástases subcutâneas do Mal porque a sua estrutura de base está garantida pelas coordenadas sãs de uma constituição espacial classicista: um cinema do plano sintagmático é corroído pela Energeia voluptuosa, mas resiste bravamente à invasão porque possui sólidos anticorpos infra-estruturais, legados pela ágora clássica.
Em Filhos do medo, o médico Hal Raglan, feito por Oliver Reed, experimenta com os corpos de seus pacientes novas possibilidades de gestão libidinal da Força, porque no filme de Cronenberg ser Mr Hyde ou dr Jeckyl é uma questão de grau, portanto de energia: uma nova Física, pós-newtoniana; a princípio, vocês, substancialistas ferrenhos, poderão opor ao meu dogma de partida a ideia de que se tratam de intervenções figurativas, portanto ainda clássico-substancialistas; mas eis a essência bipolar do cinema de Cronenberg, ao qual devemos estar sempre atentos se quisermos capturar seu quiasma nuclear (e, portanto, em analogia com a origem biológica da expressão, trata-se de um tea for two entre Figura exógena e Força endógena, que a subleva, enleva, induz à progressão ou à regressão atomicistas): a Mãe é o núcleo degenerado, irradiante e perspectivado segundo o centro centrífugo da danação familiar, de que partem os filhos-miasmas, coágulos de sua excentricidade extaticamente demoníaca, entendido aqui como uma gestão inconsciente da causalidade genética.
o gênero de horror é um tool privilegiado para captura do Fantasma, pois é sintomatológico por essência (…)
A Cena soberba da montagem paralela entre o descobrimento do corpo disforme de Nola Carveth e o assassinato pelos filhos do medo do dr Hal Raglan é sintomatológica a este respeito: Nola teleguia afetivamente os objetos parciais de seu ódio, orientando a força destrutiva segundo os diapasões do ressentimento inoculado; à revelação da Figura monstruosa de seu corpo refigurado segundo a lógica do mau objeto seguem-se os itinerários da Força entrópica encarnados nas ações dos filhos do medo; Força e Figura estão reciprocamente implicadas, elas são a face bifronte de Janus de um Mesmo mal que se desdobra figurativa e energeticamente, embora o centro prioritário de tudo seja a Força: ao acréscimo de ódio ou ressentimento de Nola, durante a conversa bad trip com o ex-marido Frank Cravet, segue-se uma intensificação dos ataques das crianças deformadas: o afeto demoníaco é manobrado pelo trajeto da Força negra no corpo teratológico da mulher, que exibe com uma galhardia digna de Grand guignol kleiniano a topografia, o mapeamento da Origem em suas reentrâncias, protuberâncias, excrescências somáticas; diante do olhar espavorido do marido, que aqui emula dentro da Cena o do espectador, Nola nos manifesta, ao se desnudar, que a Figuração do interdito é o lugar do sintoma; a Força é onipresente, como iracundo o seu rastro e ativos os seus desdobramentos nos corpos que manipula, mas é a Figura que se encarrega de revelar- no sentido do révelateur fotográfico- a sintomatologia fantasmática, índex daquilo que a Força deseja aniquilar: os rostos desfigurados dos objetos parciais de Nola consistem na figuração plástica de seus feelings atormentados, como que decalcados fotocopiados de sua alma; neste sentido, o gênero de horror é um tool privilegiado para captura do Fantasma, pois é sintomatológico por essência; todo grande cineasta é um materialista, logo está condenado à fixação sintomatológica da Figura, cuja função consiste em exibir a Força no corpo, plasticamente maleável ao interdito, onde esta agora se encarna, numa operação aqui semi-pornográfica de explicitação dos fantasmas mais recônditos de uma Mãe perversa, que permaneceu fixada, como tantos traumatizados, no instante fetichista de separação do marido, e jamais o perdoará por isso: todo aquele a quem ele amar no lugar dela deverá ser aniquilado, incluindo-se aí a sua filha natural.
Filhos do medo é uma fantasia tanatológica sobre os wishiful thinkings diabólicos de uma mulher que tem no ódio o centro irradiador de sua Vontade, mas não pode sair do lugar porque está doente, então encarrega seus objetos parciais de destruir em nome dela; como Shivers (Os Parasitas da Morte, 1975) [nota: Calafrios no Brasil], Filhos do medo nos fala de obsessão, do corpo fetichizado pela pulsão de morte, da estéril impossibilidade de resistir à compulsão; embora a ideia secreta de contaminação (do Mal somático, de uma doença) ainda seja o mesmo leitmotif, ao contrário de Shivers e de Rabid (Coma Profundo, 1977) este é seu primeiro longa em que a pulsão de morte aparece não mais envolta/embalsamada pelas agruras empáticas da compulsão sexual, com a qual de certa maneira todos podemos ainda nos identificar; em The brood, a pulsão de morte, caligraficamente restituída pela rubrica expressionista do corpo encimado pelo furibundo dedo anelar de Medeia, é este invólucro neutro grisâtre, que plasma e infecta tudo o que toca como um veneno rebarbativo, muito austero e muito ácido, infenso ao olhar sedutor da violação; a repugnância, a aversão, o horror ao toque são os signos em negativo de uma atração medusina pelos abismos da percepção cuja obra-prima mais arrematada e menos orgânica talvez seja Scanners (1981); aqui, kleinianos ou freudianos, ainda habitamos um corpo humano, embora desfigurado por um Thanatos desenfreado, no pico heroinômano (segundo o espírito) de sua possessão; ainda falamos de Pais (a Cena de abertura) e de Mães, assombrados embora pela pulsão de morte; tanto melhor! A jouissance em The brood, embora tenha por objeto o horror figurativo, ainda é possível; ela é, senão a mais efetiva, pelo menos a necessária condição de nosso opróbrio escópico de espectadores fascinados pela possibilidade imaginária da nossa própria aniquilação.