The stain of place hangs on not as a birthright but as a sort of artifice, a bit of cosmetic. Sleepless Nights, Elizabeth Hardwick
Há poucas cidades metropolitanas como Nova Iorque. Aberta à ocupação, nunca será ocupada. É daí que parte o seu tão contagiante enigma. Tal como um vírus, é invisível e perigoso, mas só porque é transmissível. Quem por perto estiver, fisicamente ou não (um bom filme é transferência suficiente), infectado ficará. Nunca cheio, completo ou possível de definir, é um lugar que não é exactamente real. É mais uma história, um acento que enfeita a própria ideia de identidade. Em essência, o espaço que criamos para nós mesmos. Acordar para os saltitantes diálogos de Neil Simon no cinema, segundo a bela tradição da Broadway – em filmes da Elaine May a Herbert Ross, Arthur Hiller, Gene Saks, entre outros – é estar sintonizado para um sentimento que não cessa e que é, em todo o seu esplendor, um coração a bater. Almas citadinas a reverem-se umas nas outras através das palavras, enviadas e recebidas e enviadas outra vez e assim sucessivamente, que pinceladas por acções patetas, ajudam a que estas pessoas se entrelacem.

O relativamente esquecido The Goodbye Girl (Não Há Dois, Sem Três…, 1977), de Herbert Ross, adaptado por Simon da sua homónima peça da Broadway para o grande ecrã, não faz só questão de registar a sonoridade de Nova Iorque e das suas pessoas. Assalta-nos com ela! O espectador encaixa-se cedo numa posição de relaxamento, tal é o feitiço destas comédias, esta em particular também romântica. Logo refastelado e empanturrado naquele mundo cúmplice, confiante in extremis, onde as regras não se aplicam, sente-se logo levado pela rajada de vento que é a conversa hiper-estimulada de abertura entre mãe e filha, saídas do autocarro em direcção ao seu apartamento no Upper East Side de Nova Iorque, que contextualiza não só quem vemos, mas como são estas personagens e também para onde vão. Enquanto isso facilitam-nos o trabalho de tirar a temperatura a uma Manhattan, supostamente a roçar a anarquia em plena década de 1970, aqui tão robusta quanto cintilante. Aprendemos logo que é tanto um lugar onde se pode ser receptor de “balas no meio dos olhos” como também um lugar de contos de fadas onde é possível viver em Upper East Side num apartamento francamente decente e espaçoso, onde há senhorias com sentido de humor, e as crianças são precoces e estão equipadas para até os maiores abalos emocionais, sem dúvida mais do que os adultos em seu redor.
Livre nos seus movimentos, mas constrangido ao espaço circundante, Elliot balanceia-se a uma determinada altura numas escadas de emergência e por elas desce. Esta é a dança do actor. E, de forma directa, é também o filme do actor. Dos actores. E sobre o que significa ser um, no palco e na vida.
Agora, aos 45 anos da sua primeira apresentação em Nova Iorque, o morno e relativamente dilatável The Goodbye Girl não pode ser lido só pelo seu conjunto de ‘one-liners’, piadas incisivas e diálogos ora amorosos ora grotescos, como muitos fizeram quando repensaram o trabalho de Simon aquando do seu desaparecimento em 2018. Há mais aqui. Do plano fish-eye de um encharcado Elliot (Richard Dreyfuss) a aproximar-se do óculo da casa que ele arrendou durante três meses, às compreensivas lamúrias de Paula (Marsha Mason) em plena West 78th Street enquanto tenta colocar esparguete caído no asfalto de volta na embalagem depois de ser assaltada e perder todo o dinheiro que tinha, a realidade do filme e desta Nova Iorque é tão objectiva quanto a de Woody Allen misturada com a fórmula de um filme de estúdio da altura, mas agora sem as pausas de sitcom para gargalhadas de Barefoot in the Park (Descalços no Parque, 1967), como Pauline Kael tinha indicado. A realidade aqui é maioritariamente subjectiva, coisa do teatro, onde os actores voam por palcos ou plateaus acorrentados a fios invisíveis ou estão presos a demarcações no chão. E os olhos brilham e brilham de representação. Livre nos seus movimentos, mas constrangido ao espaço circundante, Elliot balanceia-se a uma determinada altura numas escadas de emergência e por elas desce. Esta é a dança do actor. E, de forma directa, é também o filme do actor. Dos actores. E sobre o que significa ser um, no palco e na vida.

O ponto de onde partimos é o da guerra entre os sexos que se enaltece numa história de amor. Simples, básico, cliché até. Não há nada necessariamente extraordinário nestas duas pessoas e o apelo também é esse! Paula costumava dançar. É mãe solteira, divorciada. Elliot é um actor de Chicago, feliz por ter a oportunidade de vir para Nova Iorque protagonizar a primeira peça fora fora da Broadway, Richard III de William Shakespeare. Paula vive com a astuta filha de dez anos, Lucy (Quinn Cummings), e Tony, um actor que as informa por carta que rejeitou o trabalho na Califórnia, para onde se iriam mudar todos juntos, e decidiu ir para Itália e Espanha fazer um filme de Bernardo Bertolucci. Sim, ele também é actor. E surpresa surpresa, o ex-marido também o era. Paula descobre no dia seguinte que não só foi deixada pelo parceiro como o apartamento onde vive foi subarrendado a um estranho, e alguém o irá ocupar nas próximas horas. Elliot é esse alguém que aparece numa noite torrencial e vê-se no meio de uma história de desacatos, caindo felizmente depois numa felicidade repentina que torna qualquer um mais flácido (não só os bailarinos com mais de 30 anos).
O que o espectador retém, tal como no teatro, são as pequenas idiossincrasias, que autorizam o carinho entre estes dois seres generosos numa meta em direcção ao fruto desejado: a realização pessoal. De uma forma nada particular e não o digo com conotação pejorativa – muito pelo contrário -, os dois são sobreviventes das suas vidas, dos odd jobs que têm para pagar as contas; personagens anónimas que fazem de Nova Iorque o que é. Os seus tombos alegremente benignos não dão azo a uma história que ferve e ferve para aquecer e iluminar o caminho até ao romance. O romance acontece porque sim e só depois se pensa no assunto. A história da travessia de Paula, sozinha a regressar a uma ideia de vida, acaba rapidamente para dar lugar à narrativa dominada por um homem, como imagino que era antes daquela carta ser lida pela sua filha no final daquele primeiro dia. Certezas tenho de que Paula seria escrita com mais complexidade agora, e com isto quero dizer mais contradições, mais fervor. A sua uni-dimensionalidade a este respeito pode ser equiparado ao próprio conceito do oh tão aborrecido e ilusório happily ever after e o que isso significava para uma mulher na altura. Felizmente, The Goodbye Girl faz do seu final um início.

Agora, independentemente das suas muitas fragilidades e artifícios à mistura, que forçam uma vistoria forçada, sem tanto espaço para leitura, continuo agarrada a ele! Em muitos aspectos, é o filme a rever a par com Annie Hall (1977), curiosamente estreado no mesmo ano e nomeado para vários prémios nas mesmas categorias. A neurose e o rosnar de respostas são sintomas de ambos. O que difere é a forma como o argumento do dramaturgo tem, na ponta dos dedos, os estalidos da vida num grande cidade, dessa humanidade ou falta dela. O inofensivo humor de Simon quase que luta contra o estacionamento da comédia, no sentido de dar permissão a exageros no início até nos amolecer. Ou seja, não estaria a ser incongruente se pensasse na agilidade da voz do filme, impermeável a ideias formalistas, como internamente ligada ao nomadismo e à precariedade do actor e da bailarina, e de todos aqueles que exercem, essencialmente, truques de magia. Fazem os outros acreditar naquilo que não é possível, tal como os envolvidos no filme tentam aqui.
O que fica nos ouvidos em The Goodbye Girl é o staccato nova-iorquino daquele que não tem o luxo de exigir pertença e como este funciona enquanto o fecho de correr determinante do rom-com que é sempre adorável e nunca emperra.
Porque afinal este é um filme sobre conhecer alguém enquanto se divide o mesmo espaço! O maior truque de magia de todos. Paula conhece bem actores. São criaturas instáveis, excêntricas, supersticiosas. São ratos da cidade. Fogem, escondem-se, é difícil apanhá-los. É difícil ter uma relação com eles, mas o querer estar com um e não discernir que Elliot é mais do que a sua profissão reflecte-se mais nela do que nele, claro. Por outro lado, não há filme onde seja tão perceptível para o espectador quão divertido deveria estar a ser para ambos Dreyfuss e Mason, forças tremendas aqui, comandarem a electricidade entre dois personagens que passam muito do tempo a gritar um com o outro enquanto navegam pelo apartamento, sobem escadas, descem escadas, vivem as palavras e os seus muitos espelhos – as percepções dos personagens completam-se, como se tudo o que é dito ou pensado a qualquer momento fosse de conhecimento público: por exemplo, Lucy acha que Elliot a faz lembrar um cão que ninguém quer, e o próprio Elliot mais tarde completa esta noção, dizendo que não é o pastor alemão que Paula precisa para a defender. Pode não parecer, mas há muito relevo nas planícies de Neil Simon para ser escrutinado. Herbert Ross tenta fazer da peça de teatro um elevador para o cinema-espectáculo. Porque é matéria tão controlada, especialmente a nível espacial, torna-se sentimentalismo glaseado à la Nora Ephron antes de Nora, um género muito específico de adorabilidade e inteligência que marcou os anos 90 e inícios da década de 2000, entretanto dissipado completamente da paisagem.

Neste momento, nem na sala nem no streaming conseguimos apanhar este saber que é criado neste nada que é mais importante que todo o outro todo. Já para não dizer que a personagem de Lucy é talvez uma das melhores personagens infantis já escritas numa comédia. Atrevida e estudiosa de igual forma, ela é implacável. Há que voltar a olhar para ela nem que seja só para fazer uma vénia à talentosa Quinn Cummings! Também é nas comédias românticas sem meet-cutes e casamentos que a esperança de que ainda conseguiremos ter alguma réstia de controlo sobre o que nos acontece se materializa. Podemos aterrar nas declarações de amor à chuva, ou numa viagem de carruagem pela cidade puxada a cavalos, mas o foco são as nossas máscaras e como nos despimos ou não delas numa narrativa que vive dia-a-dia e que deixa Elliot e Paula sem saber onde vão sequer viver com Lucy assim que Tony regresse de Itália e Espanha. O que fica nos ouvidos em The Goodbye Girl é o staccato nova-iorquino daquele que não tem o luxo de exigir pertença e como este funciona enquanto o fecho de correr determinante do rom-com que é sempre adorável e nunca emperra. Tudo o que nunca conseguiremos dizer na vida real é dito e despachado, mas não necessariamente resolvido. As pessoas não estão por perto, mas todas parecem saber umas das outras. Para além disso, há também uma espécie de voz divina que afasta quaisquer desentendimentos mais profundos e deixa apenas as quezílias ligeiras para que estas possam namorar entre si, criar fricção. Este é o tal mundo muito nosso, uma linguagem veloz e um vocabulário singular, só daquelas duas, neste caso, três pessoas. Não precisa de ser explicado. Está ali. Ziiiiiiiiiiip e somos facilmente nós. O encanto é infinito!
The Goodbye Girl teve a sua estreia inicial na cidade de Nova Iorque a 27 de Novembro de 1977 e celebra hoje o seu 45º aniversário. A 30 de Novembro de 1977, espalhar-se-ia pelas salas de cinema dos EUA, eventualmente da Europa e viria a dar a Richard Dreyfuss o Óscar de Melhor Actor da Academia Americana.