A 15 de Julho de 2012, o À pala de Walsh iniciava a actividade com um primeiro texto, escrito a oito mãos, pelos quatro fundadores do site. Entretanto passou uma década. Ao longo desses anos muitos foram os que escreveram connosco e publicámos mais de 2700 artigos, críticas, ensaios, textos coletivos, entrevistas, vídeos, conversas, ensaios visuais, crónicas e outras brincadeiras cinéfilas.
Depois de em Julho de 2022 termos apresentado o ciclo “10 anos à Pala” na Cinemateca Portuguesa, com 5 sessões seguidas de uma conversa sobre os filmes, apresentamos agora perto do final do ano uma outra iniciativa: o dossier “10 anos, 10 filmes”. Este dossier parte de um convite a um conjunto de realizadores portugueses cuja obra prezamos para nos ajudar a reflectir sobre o que foi esse cinema que por nós passou nos últimos 10 anos, através da escolha de um filme – que os tivesse surpreendido de alguma forma – e estreado durante esse período, acompanhado de uma pequena reflexão sobre essa escolha.
Hoje apresentamos a escolha de Carlos Pereira, programador e realizador de Histórias de Fantasmas (2018).
Descobri Leto (Summer, 2021), realizado por Vadim Kostrov, quando trabalhei no comité de seleção do Sheffield DocFest sob a inspiradora direção artística da Cíntia Gil. Foi como ver o primeiro filme do mundo, através de um olhar que não parecia corrompido pelas profusas imagens a que sempre estivemos condenados.
É um filme de Verão, sobre as memórias de infância. Um anti-flashback, porque nada tem a ver com uma ilustrativa reconstituição do passado mas sim com a procura de uma experiência estética que traduza a estranheza de estar no mundo. O cinema sempre foi uma máquina do tempo que nos faz lembrar e esquecer, e Vadim Kostrov filma como se ninguém tivesse filmado antes dele: um estado de questionamento constante através de uma câmara que lentamente se vai aproximando e afastando, como quem entra sem querer num território desconhecido. O que importa em Leto não é uma busca de sentido mas sim um assumir da deriva. É um filme de uma curiosidade comovente, sensorialmente inquieto, como se estivesse ele próprio a tentar encontrar um lugar e uma identidade. Às vezes, entre as suas imagens e sons, tenho a sensação de presenciar a origem dos nossos movimentos e das nossas palavras, no meio de uma natureza que não nos tem como centro e que partilhamos com o invisível.
Numa conversa sobre Deus entre avó e neto, facilmente uma das mais bonitas cenas da História do Cinema, o pequeno Vadim diz: “Vou ter muitos sonhos”. E Leto é sobre isso, sobre essa possibilidade da crença: no cinema, nos milagres, no regresso a uma serena brisa de Verão. Penso muito no filme de Vadim Kostrov, na sua marginalidade, na sua nostalgia. Encontro nele um antídoto contra a banalidade capaz de nos devolver, no seu olhar simultaneamente desformatado e atento, o reflexo mais preciso da nossa percepção. Um ensaio sobre a lucidez para nos fazer repensar o pôr do sol.
Que o À pala de Walsh nos ilumine durante muitos anos.
Carlos Pereira