Não vês, por conseguinte, em que instante a imagem vem das regiões do céu às regiões da terra?
Por isso e ainda uma vez, é necessário aceitar que há elementos admiráveis que ferem os olhos e provocam a visão. De certos corpos fluem perpetuamente os cheiros, como o frio dos rios, o calor do sol, e das ondas do mar a salsugem que rói os paredões ao longo do litoral. Não deixam variadas vozes de esvoaçar no vento.
Finalmente, quando estamos junto do mar, vem-nos à boca muitas vezes uma humidade com sabor de sal […].
Lucrécio, em Da Natureza das Coisas
Não será demasiado temerário presumir que não terá sido por razões meramente circunstanciais que os cineastas que melhor lidaram com a questão evocada na crónica anterior, na formulação lançada por Virginia Woolf ― «Se o cinema deixasse de ser um parasita, como faria para caminhar de cabeça erguida?» ― foram aqueles que fizeram do cinema uma «actividade de inventores», deles fazendo parte, se bem que tardiamente reconhecido, Boris Barnet, «o mais intimista e o mais requintado dos cineastas soviéticos e, em certo sentido, o mais marginal também»[i]
Numa reformulação, em que a propriedade dos termos carecerá de alguma indulgência, poder-se-á afirmar que a questão crucial consiste em dizer por meios cinematográficos aquilo que nos é dado. Utilizando, intencionalmente, o verbo dizer, ciente de que uns defenderão tratar-se de narrar e outros contraporão tratar-se de mostrar, o que se pretende pôr em evidência é a natureza específica da acção de apresentação diante dos nossos olhos através de meios cinematográficos.
De entre esses meios cinematográficos, o primeiro a disputar a primazia é, naturalmente, a câmara: «A pintura e o desenho são técnicas para produzir imagens [pictures]. Tal como a fotografia. Mas a natureza especial da fotografia permanecerá obscura se não a pensarmos também numa outra perspectiva ― como uma contribuição para a tarefa de ver. A invenção da câmara deu-nos não apenas um método de produção de imagens, e não apenas imagens de uma natureza nova: mas sim um novo modo de ver»[ii].
Esta observação de Kendall Walton, acompanhando o ponto de vista defendido por outros «realistas» como André Bazin ou Roland Barthes, permite-nos avaliar melhor a importância da câmara na invenção do cinema e da função do homem-da-câmara na «técnica de produção de imagens» no cinema dos primeiros tempos, que habitualmente designamos por primitivo que, ao contrário do que aconteceu depois como resultado da implantação do designado cinema pertencente ao modo de produção dominante, não alienou essa função, tal como o não fizeram realizadores que, ao longo da história do cinema, não abdicaram de pensar o estilo e a forma de expressão cinematográfica como indissociáveis desse novo modo de ver e do uso dos meios cinematográficos próprios para o realizar.
A merecer, no entanto, particular relevo são os casos de obras que «ferem os olhos e provocam a visão» e cuja «fulguração figurativa» é obtida conjugadamente com a adopção de uma nova prática no que diz respeito ao argumento cinematográfico. Antes de procurar a prova, de forma mais concreta, em U Samogo Sinevo Morya (À Beira do Mar Azul, 1936), de Boris Barnet, será útil referir que a expressão «fulguração figurativa» encontra a justa remissão para Pier Paolo Pasolini que a utiliza na dedicatória do seu filme Mamma Roma a Roberto Longhi, que fora seu professor e de cujo olhar sobre a pintura (de Giotto, Masaccio, Caravaggio, Piero della Francesca) se considera devedor. A repercussão da mesma no cinema, conforme registo do diário, com data de 3 de Maio de 1962, é explicada nos seguintes termos: «o meu gosto pelo cinema não é de origem cinematográfica mas figurativa. O que tenho em mente como visão, como campo visual, são os frescos de Masaccio, de Giotto ― que são os pintores de que mais gosto, juntamente com alguns maneiristas (por exemplo Pontormo). E não consigo conceber imagens, paisagens, composições de figuras que escapem à minha paixão pictural dos começos»[iii].
O facto de Barnet ter sido considerado «o inventor da comédia soviética» não foi o epíteto que melhor deu conta da característica mais assinalável das suas obras e, relativamente ao filme À Beira do Mar Azul, a classificação de comédia só poderia resultar num equívoco.
Por outro lado, convirá acrescentar que a impossibilidade sentida por Pasolini de «escrever usando a técnica do romance» se transformara na «vontade de usar uma outra técnica, a do cinema». Tal mudança viria a contar com uma reflexão de grande alcance num texto intitulado “O argumento cinematográfico «como estrutura que quer ser outra estrutura»” (1965), no qual Pasolini parte não da ideia mais comum do argumento em que, visto este na sua função mediadora, sobressairia o seu carácter transitivo, mas antes considerando-o “como obra completa e acabada em si própria” que, no entanto, não pode deixar de fazer “alusão contínua a uma obra cinematográfica a fazer”. Decorre daí que na leitura de um argumento se exige uma “colaboração muito particular” daquele que se entrega a tal tarefa. O que lhe é pedido é nem mais nem menos do que um empréstimo. A expressão utilizada por Pasolini para definir em que consiste este empréstimo é compiutezza «visiva».Não seguindo os que traduzem esta expressão por “acabamento”, mas por completude visual: uma plenitude, quer dizer, uma inteireza visual, que um argumento não pode ter, mas a que faz necessariamente alusão, e que só poderá ser alcançada na obra cinematográfica a fazer[iv], fica também mais explícito o papel que cabe aos meios cinematográficos.
A redescoberta tardia no ocidente europeu da obra de Boris Barnet, iniciada com uma integral no National Film Theatre em Londres em 1980, seguida de uma retrospectiva no Festival de Locarno de 1983 (sendo que a Cinemateca Portuguesa mostrou pela primeira vez filmes seus em 1987 e lhe dedicou uma retrospetiva em 1996), acompanhada de apreciações de cineastas como J.-L. Godard ou Jacques Rivette e de críticos e historiadores como Dave Kehr ou Bernard Eisenschitz nas quais lhe reservam um lugar cimeiro na cinematografia soviética, não servindo, por certo, de compensação para a nossa inconformada frustração por não termos visto antes os seus filmes, continua a justificar a necessidade de situar a sua produção no contexto histórico, mas sobretudo de mostrar a sua obra inteira como aconteceu no Festival de Bolonha Il Cinema Ritrovato, em 2011.
Nascido em 1902 em Moscovo, Boris Barnet frequentou Belas-Artes, antes de servir como enfermeiro no Exército Vermelho, atraído pela cultura física e desporto, em cuja escola estudou quando foi desmobilizado. Tendo-se tornado boxeur profissional e campeão na modalidade no início dos anos 20, foi esse o motivo que levou Lev Kulechov a convidá-lo para dar aulas aos estudantes de representação no VGIK, a escola de cinema de Moscovo. Foi actor, antes de ele próprio começar a realizar filmes. Não fazendo parte do grupo dos grandes realizadores clássicos do cinema soviético (Eisenstein, Pudovkin, Dovjenko, Vertov, Kulechov), nem do movimento vanguardista desenvolvido pela FEKS («Fábrica do actor excêntrico», colectivo de experimentação teatral onde se destacaram Kozintsev, Trauberg, Gerasimov), é preciso olhar para o «cinema esquecido dos anos 20 soviéticos, parcialmente mas não exclusivamente produzido no estúdio Mejrabpomfilm», para descobrir a «voz lírica única presente nos filmes de Barnet», nos quais a vida filtra e elimina todos os estereótipos com que se depara, algo que não deixa de parecer um milagre dadas as restrições do realismo socialista[v].
O estúdio Mejrabpomfilm constituiu um empreendimento cinematográfico germano-russo único. Moisei Aleinikov, produtor da época czarista de grande instinto na escolha de temas de sucesso, e Willi Münzenberg, um comunista alemão e “empresário da imprensa vermelha”, uniram forças em 1922 para criar em Moscovo, com sede em Berlim, esta casa de produção apostada em novas narrativas cinematográficas que produziu cerca de 600 filmes, antes dessa experiência internacional ter sido brutalmente encerrada, a seguir à produção de À Beira do Mar Azul, que fora uma co-produção com a Azerfilm do Azerbaijão, tendo a rodagem do filme decorrido na região do mar Cáspio.
O facto de Barnet ter sido considerado «o inventor da comédia soviética» não foi o epíteto que melhor deu conta da característica mais assinalável das suas obras e, relativamente ao filme À Beira do Mar Azul, a classificação de comédia só poderia resultar num equívoco, pois como João Bénard da Costa observa, com razão, trata-se de «um melodrama ― se quiserem uma comédia melodramática», cuja afinidade a ser procurada seria nos «imponderáveis “filmes de amor” da Nouvelle Vague como Adieu Philippine (1962) de Jacques Rozier». Um argumento reduzido ao essencial, num «filme de amor a três: amor entre Aliocha (Nicholas Krintchov) e Jusuf (Lev Sverdlin), os dois amigos tão novos na terra, amor dos dois por Macha (Elena Kuzmina), a rapariga da ilha, a rapariga que conhecem na ilha». As suas presenças, como as que radicam no mito, fazem de Aliocha e Jusuf os sempre náufragos e de Macha o espírito da ilha, e de nós os destinatários da interrogação: «Não vês, por conseguinte, em que instante a imagem vem das regiões do céu às regiões da terra?».
Relativamente à crítica com base na pertença do argumentista à “corrente emocional”, poder-se-ia contrapor as palavras de Sergei Eisenstein, retiradas de um artigo sobre “A Forma do Argumento”, publicado em 1929, em que afirma: «Um argumento é apenas um registo estenográfico de uma explosão emocional que visa a sua realização através de justaposição de imagens visuais. […] O argumento estabelece os requisitos emocionais, o realizador apresenta a sua resolução visual»[vi]
Sem deixar de considerar as pressões que Barnet teve de enfrentar para realizar este «exercício de impressionismo lírico baseado num “argumento emocional” que é, sem dúvida, um dos maiores tributos à indiferença no auge do período de mobilização e terror estalinista», o que se impõe, em vez do “tratamento” de uma narrativa, são as imagens fulgurantes de uma vaga irreprimível de vida.
Já sobre a função da câmara, particularmente em toda a sequência no barco, não podemos deixar de reparar na inventividade e extremo acerto dos movimentos, que fazem desta uma cena de antologia absolutamente insuperável. É Otar Iosseliani quem, reportando, com alguma ironia, palavras do seu professor Felonov, nos dá a confirmação: «Não há lógica neste filme. Não há lógica, não há medidas, mas é bem filmado. É muito bem feito»[vii]. Dimensão que não pode deixar de ser tida em conta ao considerar-se estarmos perante «um musical ligado à explosão da fantasia que se manifestou no cinema soviético em meados dos anos 30, no preciso momento em que era suposto progredir sob o estandarte do realismo socialista»[viii]
Perante o diagnóstico mordaz de Bernard Eisenschitz, segundo o qual «depois da liberdade de U Samogo Sinevo Morya, uma liberdade impossível, em 1936, em qualquer país podíamos esperar o silêncio, o exílio, a resistência interior»[ix], é de crer que Serge Daney que, perseverantemente, continuou a falar deste filme, sobretudo por causa da «morte» e da «ressurreição» de Macha, cuja celebração do regresso à vida transmuta um velório numa dança festiva nunca vista, encontraria uma saída à altura da sua convicção de que «se um dia Boris Barnet for reconhecido, um dos maiores realizadores russos, será sem dúvida por nossa causa», porque continuámos a acreditar que «ainda podíamos lutar pelo cinema», já não por causa de pertencermos à «última geração ocupada em definir o cânone, para especificar quem era um grande realizador e quem não era», mas, acrescento eu, porque continuávamos a trocar algumas ideias sobre reflexões de Eisenstein expostas em 1937 nos seguintes termos: «O que é que coloca Chaplin acima de toda a poética do riso em cinema? A profundidade do seu lirismo. […] A tradição do riso russo é diferente. […] o traço característico desse riso é a nota de denúncia social que o acompanha em qualquer lado», e para, talvez, com ele concluirmos que «o riso é uma arma de reserva»[x].
[i] João Bénard da Costa, «Barnet, Boris: U Samogo Sinevo Moria / “À Beira do Mar Azul” (1936)», em Escritos sobre Cinema, vol. 1.o, Tomo I (Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2018), 125.
[ii] Kendall L. Walton, «Transparent Pictures: On the Nature of Photographic Realism», em Marvelous images: on values and the arts (New York: Oxford University Press, 2008), 85.
[iii] Pier Paolo Pasolini, Accattone – Mamma Roma – Ostia, Edição digital (2014) (Milano: Garzanti, 2006), 209.
[iv] Pier Paolo Pasolini, «La scenneggiatura come “struttura che vuol essere altra struttura”», em Empirismo eretico, [1965] (Milano: Garzanti, 1977), 188–97.
[v] Giuliano Vivaldi, «Boris Barnet: The Lyric Voice in Soviet Cinema», Bright Lights Film Journal, 31 de julho de 2011, https://brightlightsfilm.com/boris-barnet-the-lyric-voice-in-soviet-cinema/.
[vi] Sergei Eisenstein, «The Form of the Script», em Selected Works Writings, 1922–34, ed. & trad. por Richard Taylor, vol. 1 (London: BFI Publishing, 1988), 134–35.
[vii] Bernard Eisenschitz, «Um Homem Leviano, ou Boris Barnet como realizador soviético», em Boris Barnet (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1996), 90.
[viii] Ian Christie, «Barnet igual a si mesmo? ou A Excepção e a Regra», em Boris Barnet (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1996), 54.
[ix]Eisenschitz, 82.
[x] Sergei Eisenstein, «Refelexões sobre a Comédia na U.R.S.S», em Reflexões de Um Cineasta, trad. José Fonseca Costa, [1937] (Lisboa: Arcádia, 1972), 193–201.