Lorsque vous lui aurez fait un corps sans organes,
alors vous l’aurez délivré de tous ses automatismes et rendu à sa véritable liberté.
Alors vous lui réapprendrez à danser à l’envers comme dans le délire des bals musette,
et cet envers sera son véritable endroit.
Antonin Artaud, Pour en finir avec le jugement de Dieu, 1947
Por onde começar, quando estamos diante de um filme-monumento como é o abissal Beau travail (1999) de Claire Denis? Começar pelo abismo das paisagens – a desolação tórrida do continente africano, autêntico no man’s land que percorre a câmara de Denis (e da diretora de fotografia Agnès Godard, sua cúmplice fiel), discreta e sensível, trazendo à superfície as marcas fossilizadas de séculos de colonialismo –; ou pelo abismo dos corpos – demorando-se sobre os rostos e torsos robustos dos soldados, cuja individualidade se dissolve na “máquina de guerra” a que dão (o) corpo? Começar pelo abismo da repetição – os gestos e os rituais que estes executam incansavelmente, maquinalmente, mesmo já sem saber porquê ou para quê –; ou pelo abismo do desconhecido – a chegada de um elemento exterior, que introduz o proverbial “grão de areia na engrenagem”? Por onde começar, tratando-se Beau travail de um filme que sabota tacitamente qualquer abordagem linear e causal da sua estrutura narrativa: pelo início, pelo fim, ou pelos meios que veiculam e justificam os anteriores?
Foi pela dança que vim pela primeira vez ao encontro de Beau travail; e será pela dança que a ele regresso, mais de vinte anos depois do sucesso da sua estreia na Mostra de Veneza de 1999, e apenas algumas semanas após ter-lhe sido atribuído o 7° lugar na célebre lista anual da revista britânica Sight and Sound. Se a reclassificação de Beau travail como um dos “melhores filmes de todos os tempos” reflete, de certo modo, a agenda ideológica da nossa época – com Jeanne Dielman (1976) de Chantal Akerman no topo da lista, passam a ser dois os filmes realizados por mulheres a figurar no top 10 –, o filme de Denis resiste obstinadamente a qualquer tentativa de classificação (“um filme nem de guerra nem de amor”, como se pode ler na sinopse em português), impondo-se como um verdadeiro OVNI no panorama do cinema francês contemporâneo.
Sempre imaginei que, se alguma vez viesse a escrever sobre Beau travail, começaria por evocar o fim do filme, essa cena antológica, entrecortada pelos créditos finais, em que Denis Lavant, após despir a pele rugosa e o uniforme militar da sua personagem, o (ex)sargento Galoup, se vem agitar e contorcer desenfreadamente na pista de dança, ao som do hit eurodance do grupo italiano Corona, The Rhythm of the Night. Isolada do resto da intriga, esta sequência produz uma espécie de curto-circuito – diria mesmo um corpo-circuito – onde coalescem ator e personagem, um dando corpo ao outro, o segundo emancipando-se da sua condição ficcional através da performance impromptu do primeiro, e confrontando-o, por via da dança, com a sua própria alteridade.
À semelhança do texto de Melville, cuja intriga girava já em torno de um triângulo masculino imbuído de um certo imaginário homoerótico, a realização de Denis revela-se, também ela, particularmente sensível às manifestações de virilidade e às dinâmicas de poder entre militares, deixando transparecer um olhar crítico sobre a homofobia latente que corrói o corpo militar no qual os corpos individuais se inserem.
Ver Denis Lavant dançar no grande ecrã é em si um puro acontecimento cinematográfico, profundamente enraizado no imaginário cinéfilo das últimas décadas: impossível não pensar nas explosões espasmódicas do ator em Mauvais sang (Má raça, 1986) – com a corrida ao som do elétrico “Modern Love” de David Bowie – e Les Amants du Pont Neuf (Os Amantes de Pont-Neuf, 1991) ou, mais tarde, a coreografia luminosa desenhada pela sua silhueta coberta de sensores de movimento, em Holy Motors (2012), também de Leos Carax. Porém, diante da câmara de Claire Denis, a dança-morfose de Denis Lavant parece ser de outra natureza, na medida em que, para além de dar a ver a presença do ator sob a personagem, esta funciona retrospetivamente como uma espécie de epifania, reveladora do caráter imponderável e incondicional dos movimentos pulsionais que animam e consomem a personagem. Assim, torna-se difícil compreender plenamente a dimensão dionisíaca e catártica desta cena sem termos antes experimentado a ordem marcial que pesa sobre os corpos que ocupam o ecrã ao longo do filme.
Perguntava-me, portanto, por onde começar a escrever sobre Beau travail. Poderia evocar a origem do projeto: uma encomenda feita pelo produtor Pierre Chevalier, então diretor da secção de ficções do canal Arte, no âmbito de uma coleção de longas-metragens em torno do tema do Outro, mais precisamente da questão do “ser estrangeiro (em terras estrangeiras)”, que leva Claire Denis a querer sondar o desenraizamento dos soldados da Legião Estrangeira do Exército Francês, um universo exclusivamente masculino que não poderia ser-lhe mais desconhecido (apesar de a cineasta ter passado a infância na África colonial – memórias que já revisitara no seu primeiro filme semiautobiográfico, Chocolat [Chocolate, 1988]).
Poderia também mencionar a principal fonte de inspiração do argumento, coescrito por Jean-Pol Fargeau: baseado na novela Billy Budd de Herman Melville (publicada postumamente, em 1924), Beau travail troca o isolamento em alto mar da tripulação de um navio da Marinha Real Inglesa, no final do século XVIII, pelos rituais rigorosos de preparação física e moral de uma unidade de legionários de várias origens, destacados numa missão de manutenção da paz no Golfo de Djibuti, nos anos 1990. À semelhança do texto de Melville, cuja intriga girava já em torno de um triângulo masculino imbuído de um certo imaginário homoerótico (tendo este inspirado o romance Querelle, de Jean Genet, posteriormente adaptado ao cinema por Rainer W. Fassbinder, em 1982), a realização de Denis revela-se, também ela, particularmente sensível às manifestações de virilidade e às dinâmicas de poder entre militares, deixando transparecer um olhar crítico sobre a homofobia latente que corrói o corpo militar no qual os corpos individuais se inserem.
“Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir“. Estas palavras de Clarice Lispector sintetizam bem a dificuldade em resumir a intriga narrativa de Beau travail segundo uma cronologia linear de eventos, com um princípio, meio e fim. Efetivamente, o filme acumula as sequências de abertura pré- e pós-genérico, as quais convocam, através de imagens e de sons díspares, os monstros (do pós-colonialismo e da masculinidade tóxica) que farão existir os desejos reprimidos e os gestos transgressivos subjacentes à história contada no filme.
É, portanto, a partir do fim, do seu fracasso pessoal, que Galoup se propõe contar a sua história, através de um movimento de anamnese que o conduz, não necessariamente às origens, causas e consequências das suas ações, mas ao centro, ao âmago, da sua experiência em África.
Assim, o primeiro plano, acompanhado por um cântico da Legião Estrangeira entoado por vozes masculinas, revela, por meio de um travelling lateral, da esquerda para a direita, uma espécie de fresco ou pintura rupestre que preenche a totalidade do ecrã e no qual identificamos, desenhadas num negro profundo, várias silhuetas de soldados no topo de montanhas sob um céu cor de laranja tórrido. A segunda sequência de abertura transporta-nos para um ambiente noturno e festivo, uma discoteca onde, entre luzes estroboscópicas, mulheres negras dançam e flirtam com homens brancos, ao som de um hit pop turco do final dos anos 1990. Por fim, já depois de o título aparecer no ecrã, é a vez da montagem introduzir o território, simultaneamente geográfico e mental, no qual o filme se desenrola. “Allô Djibouti” são as primeiras palavras que ouvimos, proferidas ao telefone por um homem negro sob o olhar expectante da população local; de seguida, à medida que um coro solene de vozes masculinas se impõe na banda sonora (um excerto da ópera Billy Budd de Benjamin Britten, outra adaptação do romance de Melville), a montagem faz suceder uma série de planos desconexos: uma paisagem inóspita vista através da janela de um comboio em movimento; um tanque militar esquecido no meio do deserto; sombras de corpos estendendo-se sobre o solo árido, que um movimento de câmara revela pertencerem a um grupo de homens, em tronco nu e de braços erguidos, como estátuas imperturbáveis sob o sol abrasador; uma página manuscrita sobreposta às cintilações do mar azul; os rostos de pedra desses mesmos homens, oscilando a bordo de uma embarcação, sendo o último rosto sobre o qual a câmara se demora o de Denis Lavant, cuja voz se faz ouvir, desde o plano seguinte, através da leitura em off de fragmentos de um diário:
“Marseille, fin février. J’ai du temps devant moi maintenant. J’ai tout raté d’un certain point de vue. Et beaucoup de choses dépendent du point de vue. De l’angle d’attaque. Mon histoire est simple : c’est l’histoire d’un homme qui a quitté la France trop longtemps, d’un soldat qui a quitté l’armée avec le grade d’adjuvant. Adjuvant-chef Galoup. Galoup c’est moi. Inapte à la vie. Inapte au civil.”
Inscrevendo a intriga no território da subjetividade da personagem interpretada por Lavant, esta voz off emana de um tempo presente que, ao invés de se abrir ao futuro, se fecha sobre si mesmo, já que Galoup prefere debruçar-se sobre o passado militar que lhe virou as costas, do que encarar de face a nova vida civil de regresso à metrópole, vida para a qual se julga inapto. É, portanto, a partir do fim, do seu fracasso pessoal, que Galoup se propõe contar a sua história, através de um movimento de anamnese que o conduz, não necessariamente às origens, causas e consequências das suas ações, mas ao centro, ao âmago, da sua experiência em África.
(Re)comecemos então este texto, desta vez pelo meio de Beau travail. Entenda-se “meio” segundo a polissemia do termo: parte central, ambiente, intermediário ou médium (espiritual ou material). Desde os primeiros minutos do filme, o espectador é transportado para um meio que lhe é estranho, o da base militar praticamente desafectada em Djibouti; é, de seguida, por intermédio da matéria fílmica propriamente dita – imagens, sons e corpos em movimento – que Claire Denis compõe, ou coreografa, a intriga principal em torno do sargento Galoup e do seu pelotão de legionários, dando a ver, nomeadamente através do contraste entre a pujança física dos gestos que executam e o ritmo indolente da montagem, o estado de “desenraizamento” profundo vivido pela Legião Estrangeira no continente africano (por exemplo, raros são os planos em que os corpos são filmados de forma a incluir os pés no enquadramento).
Importa salientar que o olhar das mulheres os acompanha ao longo do filme – prova de que o female gaze sempre existiu, apenas foi durante muito tempo ocultado por outras pulsões escópicas mais prementes.
Imiscui-se, no seio destes, o jovem recruta Sentain (Grégoire Collin, revelado anos antes em Nénette et Boni [1996], e desde então presença recorrente nos filmes da cineasta) que, recém-chegado à base militar, rapidamente se destaca pelos seus atos heróicos e ganha a atenção do comandante Bruno Forestier (Michel Subor, que retoma aqui o papel do Petit soldat [1963] desertor de Jean-Luc Godard), por quem o sargento Galoup nutre uma grande “admiração”. Incapaz de conceber que os seus sentimentos possam ser de outra natureza, Galoup perde-se nos meandros dos ciúmes que o consomem, ao mesmo tempo que opera como uma espécie de médium, não necessariamente no sentido em que comunica com os mortos, mas na medida em que o seu “eu” repatriado convoca, através da voz off, o espírito do homem que foi no passado, bem como os espectros dos corpos que o rodeavam, restos de um “exercício fantasma” que, na ausência de uma guerra onde combater, se viram reduzidos a repetir os mesmos rituais de sempre.
No meio do filme, encontram-se sobretudo os corpos, vigorosos mas inúteis, dos soldados da Legião Estrangeira, corpos que observamos longamente durante os treinos físicos no deserto, os afazeres quotidianos na base militar (executando tarefas domésticas, como estender e passar a roupa a ferro, que o nosso inconsciente marcado por séculos de cultura patriarcal ainda associa às mulheres), e as pontuais saídas à noite em licença, as únicas circunstâncias em que os soldados podem esquecer temporariamente as duras provas e obrigações da vida militar e em que convivem com a população feminina local (importa salientar que o olhar das mulheres os acompanha ao longo do filme – prova de que o female gaze sempre existiu, apenas foi durante muito tempo ocultado por outras pulsões escópicas mais prementes). Para moldar as formas masculinas em movimento à languidez do olhar da sua câmara, Denis contou com a colaboração do coreógrafo Bernardo Montet, que introduziu vários movimentos inspirados pelas artes marciais e pela dança butô no repertório gestual dos soldados, conferindo às formações militares, que de outra forma reduziriam os indivíduos ao “ornamento da massa”, nos termos de Siegfried Kracauer, uma dimensão poética, simultaneamente sensual e sacramental.
Em Beau travail, os corpos em movimento desempenham claramente as três funções não-convencionais que Nicole Brenez atribui às irrupções da dança no cinema moderno, conforme explicado no seu texto “Travolta en soi. Danse et circulation des images” (1998): às duas primeiras utilizações, que remetem mais diretamente para o modo como a dança estrutura e elucida a narrativa de um filme – resumidas pelas fórmulas “a dança explica o mundo” e “a dança exprime o movimento como problema” –, Brenez acrescenta uma terceira via de circulação das figuras dançantes através da matéria cinematográfica, que diz mais respeito ao modo como os corpos em movimento vêm contaminar, ou são contaminados, pelas propriedades materiais e técnicas do suporte fílmico:
“A dança problematiza o movimento das imagens. Ela coloca o cinema perante as suas formas mais fundamentais: a natureza projetiva das imagens, a sua complexidade física e mental, a riquíssima paleta de nuances de velocidade, os movimentos obscuros e profundos de translação entre os fenómenos fílmicos, as propriedades da intermitência…”
Também para a personagem de Galoup, a dança não é apenas uma forma de dar sentido ao mundo, mas acaba por ser, num momento decisivo do seu percurso errático, a única maneira possível de nele continuar a existir: não mais procurando integrar-se à rigorosa coreografia plástica das formas masculinas apolíneas que o rodeavam (mas das quais sempre destoara), mas permitindo-lhe existir verdadeiramente enquanto Outro, fazendo do seu corpo o “campo de batalha”, palco de uma rutura com o passado, mas também de uma eventual reconciliação consigo próprio, onde enfim circulam livremente os seus impulsos dionisíacos. No filme, a passagem do culto da ordem à redescoberta do corpo fenomenal é simbolizada por um único plano: a câmara começa por enquadrar a frase “Sers la bonne cause et meurs” tatuada sobre o peito de Galoup (e sussurrada em off), deslizando de seguida de forma a mostrar o pulsar de uma veia sobre o músculo do seu braço, ao mesmo tempo que se começa a ouvir o tema final:
“This is the rythm of my life, the night…“
Regresso assim à última cena de Beau travail, por onde tentara dar início a este texto. Desta vez, Galoup tem a pista de dança toda para ele e, no entanto, prefere manter-se colado à parede coberta de espelhos, os quais não só duplicam o seu reflexo, como multiplicam os focos de luzes que o envolvem. A frontalidade do enquadramento permite englobar a totalidade do corpo e, contudo, este parece progressivamente dissolver-se nas suas convulsões, precipitações e rodopios, acentuados pelos fenómenos de projeção, desdobramento caleidoscópico e intermitência das imagens em movimento. Do “ato puro das metamorfoses”, expressão pela qual o poeta Paul Valéry definira a arte da dança, emerge um novo corpo-circuito, próximo do “Corpo sem Orgãos” deleuzo-guattariano, operando como um veículo de intensidades pulsionais que fusionam, neste memorável plano-sequência, com os impulsos luminosos do suporte fílmico.
Beau travail será exibido no âmbito do ciclo “Claire Denis: Todo o corpo”, no Batalha Centro de Cinema, no Porto, nos dias 30 de Dezembro, às 21h30, e 8 de Janeiro, às 17h15.