Vilified, crucified / In the human frame (...) I didn’t know I had permission / to murder and to maim. Leonard Cohen
Nunca a paisagem diante do nosso olhar esteve tão inundada de literatura e cinema alusivos aos comedores de carne, bebedores de sangue. Sempre houve apetite pela sugestão do macabro, do que se esconde, os fantasmas que iluminavam (transcendiam) a nossa ideia de existência. Mas de onde vem agora este transbordar na exploração do sobrenatural? Talvez porque actue enquanto metáfora para tornar visível o que não é, para um crescer-de-idade, mas ainda assim parece demasiado óbvio, diminuto. Tendo em conta o estado das coisas – como Timothée Chalamet dizia aos jornalistas no Festival de Veneza deste ano, “É difícil estar vivo neste momento. Um colapso social está no ar.” – e a lógica examinação do cinema enquanto agente que chega até nós por causa de uma assombração qualquer, algo lá está… sobrenatural, pensar na abordagem do canibalismo no ecrã é como que virar a moeda ao contrário e olhar para o fosso que a sociedade que herdamos tem vindo a cavar. Já nenhum espectador acredita na sugestão. O que aparece no ecrã tem que ser imagético o suficiente para deixar uma margem para a não-crença, mas vindo do tecido gráfico das coisas biológicas, naturais na sua sobrenaturalidade. Quem são os rebeldes obrigados a sofrer pela sua condição? Quem são os marginalizados que vivem abafados nos interiores das coisas, dos países, de si mesmos, e precisam de recorrer à eterna fuga pela sobrevivência? É deles que Luca Guadagnino fala, partindo de uma adaptação de David Kajganich do bestseller homónimo de ficção juvenil de Camille DeAngelis.
Ao contrário do movimento do filme, comecemos pelos ossos. No ecrã, maravilhosos quadros da paisagem pastoral do interior da América do Norte, tocada pelos amarelos e castanhos outonais. Estamos no final dos anos 80, na ponta da cauda do Reaganismo. Se os objectos espalhados pelo plateau, nomeadamente no supermercado a uma determinada altura não nos levem a tal, o cheiro e a cor do ar dentro do filme assim o fará. Tudo parece ter sido tocado por uma chuva lamacenta (até a cor do sangue relembra Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, naquele último confronto). É importante que estejamos nos anos 80, uma década de optimismo e nostalgia ocos, muito banter patriótico, enquanto a epidemia HIV/AIDS devastava o país com mais de 39 milhões de mortes e não havia a tecnologia nem a vigilância para detectar canibais pelas estradas nacionais. É notavelmente fácil ver Bones and All (Ossos e Tudo) ao lado de filmes como Smooth Talk (Conversa Suave, 1985), de Joyce Chopra, Rumble Fish (Juventude Inquieta, 1983), de Francis Ford Coppola, Out of the Blue (Anos de Rebeldia, 1980), de Dennis Hopper, e claro Running on Empty (Fuga Sem Fim, 1988), um das pérolas mais incandescentes de Sidney Lumet. Em poucas palavras, a arqueologia da adolescência como ela é fica realizada com estes. Filmes que se agarram ainda aos fios da liberdade da Nova Hollywood, e pintam o jogo predatório que resulta na perda da inocência. Por vezes auto-infligida. Mas sempre provocada, de uma forma ou outra, pela genética ou falha parental. Os jovens actores, que entretanto já nem connosco estão (nomeadamente Linda Manz e River Phoenix), protagonizam a sua própria crise identitária através dos personagens que vestem.
Em essência, um portal de ternura, aqui especialmente híbrido em tom, género e estilo – resultante de uma mistura de vácuos que formam um túnel de concepções próprias – Bones and All não é a metáfora que nos parece ser indicada. Há mais na paisagem do que indica o olhar.
Os tempos podem ser outros, mas Taylor Russell e Timothée Chalamet vêem-se nesses mesmos papéis, dentro de um filme de estrada. Maren (Russell) vê-se abandonada pelo pai depois do seu 18.º aniversário, e parte sozinha de autocarro em autocarro à procura da mãe que nunca conheceu, ao som da cassete de despedida que o pai gravou e que faz um mapa dos tempos passados com a filha canibal que mastigou a própria babysitter com apenas 3 anos. Pelo caminho, conhece Sully (Mark Rylance), um velho loner que cheira humanos prestes a morrer, e assim os deixa até os poder comer. E logo a seguir Lee (Chalamet), também ele isolado e rebelde, dono de uma vida cujos motores são nada mais do que os pequenos e grandes roubos e as estadias nas casas daqueles de quem se alimenta, estes humanos que, racionaliza ele, fizeram algo para o merecer (seja lá o que isso possa significar). Sob o signo da paisagem estéril mas infinita e da narração frutada de Badlands (Noivos Sangrentos, 1973), o derradeiro poema de Terrence Malick, que definiu mais de um século de contares melancólicos dos que matam para se libertarem, Bones and All processa o que já (e ainda bem) podemos esperar de Guadagnino como se se tratasse de um cunho autoral: o sentimento maior-que-o-mundo que se desenvolve não em momentos específicos, mas no fluxo das suas imagens. Em comparação com Badlands, o seu coração é mais quente, mais transpessoal. Num desconectar muito característico entre as várias peças, pinta o estudo de personagens na matéria-prima do filme. Replicar a experiência que provoca no espectador é, como numa transferência química, ter que mergulhar no filme outra vez. Mesmo sabendo, claro está, que aquela primeira vez não é recuperável.
Em essência, um portal de ternura, aqui especialmente híbrido em tom, género e estilo – resultante de uma mistura de vácuos que formam um túnel de concepções próprias – Bones and All não é a metáfora que nos parece ser indicada. Há mais na paisagem do que indica o olhar. Vinda de Virginia e depois Maryland, passando por Ohio, Indiana, Kentucky, Minnesota, Maren chega finalmente a Fergus Falls com Lee, onde conhece a mãe e descobre que – surpresa, surpresa – a viagem não tem fim. O fim é, claro, ela mesma, e esta é a América naturalista de Kelly Reichardt, onde a paisagem grita enraivecida no seu silêncio. Estruturalmente, o filme esmorece depois disto, mas o seu ímpeto permanece vivo, algures entre três tonalidades diversas: o encantado, o avinagrado e o sujo, com o regresso de Sully e uma ideia destronada do que é bom, mau, moral ou imoral, para a simplicidade de como a solidão enlouquece. Dentro do conflito, o filme personifica o mesmo tipo de correr imaginário daquele que já conta a história do ponto de vista melancólico do futuro, porque se sente essa distância (um dos flashbacks tormentosos de um deles confirma um retalho de algo que ainda está para acontecer e que só veremos mais tarde). É como se o filme vestisse a mesma paragem das paisagens e do céu aberto, o mesmo movimento da minutiae da vida, só visível a quem nela se vê ou sente incluído e, mais uma vez, como em tudo que o realizador italiano toca [só para contexto, varri o Suspiria (2018) da minha mente], um pulsar do amor romântico que tanto quebra o acordo da humanidade, como, por isso mesmo, também salva.
Traz de arrasto a herança dos anti-heróis da Nova Hollywood que retiraram o centro à harmonia, ao equilíbrio e à beleza e perguntaram, “Não deveria eu também existir?” Afinal este é o desenho internalizado de uma fuga e depois de uma espécie de encontro dentro das várias camadas desse escapar. (…) 2022 responde sem mais demoras. “Claro que sim.”
Se tanto, pedia-se a Guadagnino mais força, mais volume, mais corpo. Enquanto um todo, o filme tem um trato domesticável que questiona se o que estamos ali a ver não será tudo uma versão tíbia, já para não dizer aguada, do que seria pretendido. Mas depois lembro-me da certeira resposta de Jean-Luc Godard, que recentemente nos deixou, quando o chamaram de marginalizado: “A margem é o que mantém as páginas do caderno juntas”, e retomo o meu caminho. Ao som de uns acordes iniciais de guitarra acústica, música nua que ressoa as várias contradições e profundidades associadas à gema de ovo nada fotografável dos EUA, Trent Reznor e Atticus Ross constroem um entendimento sonoplasta muito empático com todas aquelas personagens. Maren acredita na sua própria bondade. Lee já deixou de acreditar, mas anseia por acreditar outra vez. Como este último descreve em Fergus Falls, o berço da narrativa, tudo é doloroso. Ao se aproximar de Maren, Lee está também, inadvertidamente, a reaproximar-se de si mesmo e por conseguinte, da condição da qual não consegue fugir.
Se funciona enquanto símbolo para algo, Bones and All não se alia tanto ao que é diferente, alia-se muito mais ao que é rejeitado, ignorado ou, até melhor dizendo, vilificado. Tanto pode representar o trauma que percorre gerações como a agonia do vício, a depressão do amor impossível porque queer, ao desespero da solidão, da discriminação racial ou de género, ao viver abaixo do limiar da pobreza, e até à necessidade de uma ideia de comunidade (detectada através do faro) que precisa de ser revitalizada. Noutras palavras, esse apetite que está à flor da pele, tão humano mas também em rejeição do seu próprio conceito traz de arrasto a herança dos anti-heróis da Nova Hollywood que retiraram o centro à harmonia, ao equilíbrio e à beleza e perguntaram, “Não deveria eu também existir?” Afinal este é o desenho internalizado de uma fuga e depois de uma espécie de encontro dentro das várias camadas desse escapar. No seio tanto do inacto como do adquirido, é difícil perceber o que vem à toa em cada momento. O mundo é um lugar inóspito, especialmente para quem foi abusado. Lee oferece todo o seu amor (o corpo e a alma, de forma literal) a Maren, e 2022 responde sem mais demoras. “Claro que sim.”
★★★☆☆