Caderneta de Cromos é um questionário breve, impertinente quanto baste, mais ou menos imbecil, sobre o mundo do cinema, em geral, e sobre o mundo em toda a sua inteireza, em particular. Está à frente do Cineclube de Alvalade, é benfiquista, gosta e percebe de vinhos, não gosta de praxes mas secunda e justifica o modo como se dirige aos seus queridos e precários associados – trata-os afectuosamente por “cadelas”. Bruno Castro é a mais recente vítima do nosso questionário mal-educado, desinformado (veja-se a primeira questão, major fail) e orgulhosamente deslocado.
1. Um passarinho do mundo cinematográfico disse-me que, a dado ponto da tua vida, trabalhaste no IndieLisboa. Gostava de saber se tens alguma memória fofinha – tipo mumblecore hipster shit – que queiras partilhar connosco dessa tua passagem pelo festival.
FAKE NEWS! POLÍGRAFO JÁ! Nunca trabalhei no IndieLisboa. Nem sequer fui voluntário. Todas as minhas memórias do Indie são de algumas pessoas que lá passam ou passaram (hey PP e M. e R.!) ou como super espectador. Daqueles espectadores negros, de capa, que exigem tudo ao festival (que seja coerente, que não cresça demais, que não ceda a ideias idiotas, que tenha tostas decentes no bar) e chegaram a tirar férias para lá estar dias inteiros. E nesse papel, não há nada como entrar em 2004 num cinema enorme que esteve fechado e perceber que aquele projecto pequenino no 222, que deu tantas noites de orgasmos fílmicos, tinha agora um festival e trazia agora coisas como Tarnation (2003), de Jonathan Caouette. Confesso que tenho mais memórias da Geniuzastare no 222. Do A Zed & Two Noughts (Um Z e Dois Zeros, 1985) do Greenaway, do Julien Donkey Boy (1999) do Korine, dos anime… Dava muita coisa para voltar ali, ao cheiro a humidade, às cadeiras partidas, ao pessoal à porta, à dificuldade em estacionar. E aquilo está tudo lá como estava. Tirando o cinema, que agora é um festival institucionalizado e gigantesco, a disparar em tantas direcções que dá tiros nos pés. De cabra.
2. Estás agora à frente do cineclube de Alvalade. É caso de amor à camisola ou estás lá pelos diamantes negros que – toda a gente sabe – financiam a actividade cineclubista neste país?
Ai filhos, o amor à camisola é tão bonito… A cena é que quando para projectar cinema nem diamantes negros chegam, mais vale despir. Estou (à frente, atrás, de lado, marreco, com dores na lombar, a falar depressa demais) porque é inacreditável que não existam cinemas independentes com programas independentes em Portugal. E isso devia fazer-nos regurgitar 104 vezes de espanto e depois partir cadeiras na cabeça de alguém, e depois fazer alguma coisa. Quais camisola, é o cinema, crl! O cinema. Esse sacana.
3. Sei-te um apreciador de vinhos. Que vinhos darias a servir às seguintes personalidades do cinema: Francis Ford Coppola, Jean-Luc Godard, Kelly Reichardt e – esta é mais difícil, concedemos – Apichatpong Weerasethakul.
Coppola: um verde tinto da malga em Nevogilde para se deixar de merdas com aquelas garrafas que custam dois rins de cavalo que ele vende. Godard: o Pinot Noir do Manuel Campolargo, que dois velhos rezingas entendem-se bem com vinhos honestos. Kelly Reichardt: o Expressões Alvarinho do Anselmo Mendes, não tem suor de cavalo e vai bem com carne de vitela. Apichatpong Weerasethakul: o Bafarela Superior 17, o Tomi dá-lhe forte na fermentação e tudo ajuda a sonhar mais fundo naquela noite escura.
4. Tratas os associados por “bitches”. Estás a sugerir que o grande cinema é como uma grande cadela (vulgo embriaguez alcoólica)? Qual foi a última que tiveste (embriaguez cinematográfica, claro)?
A clarificação de “vulgo embriaguez alcoólica” estragou tudo na pergunta, mas bom, gosto da ligação entre bitch e cadela. Na verdade só demonstra ignorância cinéfila: “bitch” nos 70s é um ser sexuado e super supérfluo, que habita as estações de serviço durante o dia, esfregando carros, e pensa na vida de noite, talvez esfregando a realidade. Como nunca apanhei nenhuma cadela (it’s funny because it’s true), a última mocada foi Fragments of Paradise (2022) (do KD Davidson), com o Mekas a pôr os cinéfilos todos a chorar baixinho às 8 da manhã em Veneza. E o filme nem é fantástico, damn!
5. Além de “bitches”, como caracterizarias o típico público e ambiente em geral (“bitchy”) das confraternizações do vosso cineclube? E, atenção, tens de usar na tua resposta as palavras “aboborar”, “tremebunda” e “outrossim”
“Confraternizações”! HAAHHAHAHAHaHHAHAHAHAH Perguntas a aboborar desde 1987… O público do Alvalade Cineclube é uma nuvem: aparece outrossim desaparece, ora maduro ora verde, uma forma de atenção tremebunda quase todas as semanas, com sorrisos nas apresentações porque “aquele parvo está outra vez a falar à velocidade do pensamento”. O que é curioso (olá, 1982) é a capacidade de partilhar sentimentos, mais do que fazer perguntas. Acontece amiúde e diz-nos que o ambiente é seguro. It’s safe out there. Uma espécie de 9 passos dos apanhados pela tela. Os AT. Podem beber um copo, it’s allowed.
6. Vocês ocupam, neste momento, parte da programação do cinema Fernando Lopes, situado no campus da Universidade Lusófona. E depois passam todo este cinema de autor da pesada… Estão a querer prolongar – e abrir ao grande público – o período de praxes desta instituição de ensino?
ABAIXO A PRAXE! ABAIXO A PRAXE! ABAIXO A PRAXE! ABAIXO A PRAXE! ABAIXO A PRAXE! Não. Os espectadores abraçam a pesada sem ir para o jardim do Campo Grande levar com ovos e farinha na moleira. Somos todos autores, tá?
7. O vosso mais recente ciclo é dedicado aos seventies americanos. Não acham que está na hora de darem mais espaço a temas como pós-colonialismo feminista LGBTQ+ eco friendly e menos atenção ao cinema americano “imperialista e reaça” nos vossos programas?
Foda-se, lá se foi parte da programação de 2023…. Toda a gente sabe que a melhor forma de evitar confusões é dar beijinhos ao imperialismo primeiro e espetar-lhe uma feminista eco class A+ depois. Vocês não aprendem nada nos filmes que vêem? Mas “Reaça” é um óptimo título para um ciclo. Já estou a ver os cartazes colados nas caixas de electricidade que afinal são apenas arrumações para pessoas de baixa estatura. E bom, na Primavera mostrámos como voltar à terra. Mais eco que esse exercício de festa popular de Agosto não dá. Just saying.
8. Sei-te um grande benfiquista. Abrimos então espaço para poderes enviar mensagens de bazófia clubística para os seguintes camaradas de clube: Miguel Gomes, António-Pedro Vasconcelos e José Manuel Costa.
Jantei com os três há duas semanas e a opinião foi unânime: aquele Neres precisa de um corte de cabelo novo. Não se percebe. Tanta jinga de perna e depois aquela carapinha ao acordar de puto que vai pra escola em cada jogo que não assiste ninguém para a festa. O Miguel até referiu que também não gosta muito da ideia de um campeonato ganho assim sequencialmente, faz-lhe comichão e como dorme pouco agora por causa do puto isso não ajuda. Nunca tenho coragem de lhes enviar mensagens depois dos jogos. O meu lugar é mais perto da linha de meio campo e ficam todos rezingas quando digo que vejo os golos melhor que eles.
9. Continuando a falar de futebol mas desta vez acerca de foras de jogo mal assinalados, o que te parece: não achas que esta moda de se estar contra os filmes de super-heróis não é como aquela moda de não “se gostar por ser foleiro” de westerns de Ford e thrillers de Hitchcock nos anos 40 e 50? E que isto ainda nos vai rebentar na cara como aquele ano em que perdemos tudo com o Jesus?
Claro que vai. Se bem que o Ford não guinchava na lateral ou caía de joelhos, há limites para o que um cowboy faz. Isto lembra-me um filme que nunca vi, o Heroes da Karoliina Paatos. Mas espera, há uma moda de se estar contra os filmes de super-heróis? Como assim? Tem a ver com os fatos justos? Com os diálogos parvos? Com a premissa de realismo dentro da fantasia? Com os zoom ins? Com a utopia de salvar algo que devia era ser enterrado vivo? Contem-me tudo.
10. Gostamos de histórias embaraçosas e de pessoas que se riem de si mesmas. Já recebeste incontáveis convidados no cineclube. Conta lá: alguma vez uma pergunta tua te saiu pela culatra assim à grande? Não vale citar aquela vez em que convidaste o Mário Augusto e lhe fizeste uma pergunta sobre o tema da ruína e da melancolia no cinema de Marguerite Duras.
Começando pelo que interessa: em 2023 vamos convidar o Mário Augusto e fazer uma pergunta sobre o tema da ruína e da melancolia no cinema de Marguerite Duras. Obrigado. Sobre culatras: eu tento! A sério que tento, mas habitualmente as pessoas riem-se e respondem como se a pergunta fosse uma ironia ou provocação. Inserir emoji bracinhos no ar. O que saiu furado foi não ter feito pergunta nenhuma ao Lauro António antes dele desaparecer. Isso é que é vergonha que carrego. O resto é pólvora seca.