E aqui vamos nós outra vez. A melhor altura do ano. Do impressionismo das luzes que piscam e brilham como jóias à magia festiva por trás da comunhão e partilha da época, re-apropriada pelas agências de marketing, é difícil afastar o cinismo quando o sentimento que emana do maravilhamento das festas de final de ano e seus rituais – sejam estes o acender das setes velas do Kwanza, as oito do Hanukkah, ou o enfeitar da árvore de Natal – é um de deambulação existencial. Noutras palavras, tarefa perfeita para o mumblecore reproduzir, o ramo do cinema independente Americano mais electrizante na sua crueza, afetividade e humor, isento de um habitat natural, que pulsa de ambição e autonomia, nunca forçando o espectador a um “contrato”, ou seria melhor dizer compromisso? A pérola de Charles Poekel, Christmas, Again (2014), filmada no mais onírico e arrastado dos 16mm e ainda assim tão pobremente vista, é um dos melhores exemplos disso mesmo. Não só engendra outro submundo contemporâneo que se junta àqueles de Nathan Silver, Ted Fendt, Amy Seimetz, John Magary ou mais recentemente Joe Denardo e Paul Felten, como combina a frieza da estação do ano com a doçura da melancolia associada às festividades, ampliando tudo o que foi perdido até ali.
Quando se aproximam as festividades, é-me difícil escolher entre este e a sequência do chá em flor ou o Metropolitan (1990), de Whit Stillman e a sequência do Yule Log a ser transmitido na televisão na véspera de Natal. Há alguns filmes que de tão vistos já se desprenderam do vocabulário festivo e dos dias em família e são simplesmente casa, como You’ve Got Mail (Você tem uma Mensagem, 1998), Moonstruck (O Feitiço da Lua, 1987), ou até Blast of Silence (1961). Mas estes dois para além de serem filmes onde o Natal (neste caso) habita, também personificam o tipo de abandono com o qual ganhamos especial sincronia nos últimos dias do ano, em reflexão de tudo o que não poderá ser alterado. Pelos olhos de Sean Price Williams, o director de fotografia que deu uma cara ao cinema independente Americano, e com a montagem de Robert Greene, tudo reluz e vibra nos movimentos rotineiros de Noel (sim, o nome dele é mesmo Noel), interpretado pela powerhouse que é Kentucker Audley, um brilhante realizador também, que vem até Nova Iorque um mês por ano para vender árvores. Debaixo do céu azulado mas nevoso de Brooklyn e sob os tons verde-azul-vermelho on repeat das luzes que se espalham pela cara de Noel turno nocturno atrás de turno nocturno (exigido por ele) dentro e fora da caravana, onde dorme durante o dia e de onde vende árvores e coroas que enfeita, o zumbido da depressão evidencia-se. Ao longo do filme há menções, demasiadas, de uma rapariga muito simpática que “estava aqui o ano passado”, a ex-parceira dele, e sentem-se como punhais. A acrescentar a isso, o rapaz que ele recomendou ao dono do estabelecimento para fazer os turnos diários é, na verdade, o irmão dela.
Resplandecente em como capta a vulnerabilidade de emoções tão contraditórias, este é o superlativo do cinema que trata a efemeridade do agora.
Entre a ingestão de anti-depressivos, escondidos num calendário do Advento, e a sua mistura com bebidas energéticas, um Noel atordoado é uma presença constante no ecrã, filmado por Williams da mesma forma trémula que aquela que exactifica não só como este se sente, mas como o filme se enrola na imagem do tipo de conto curto e perceptivo que é mágico porque é emocionalmente apurado. Como a história do Pai Natal que desce da chaminé uma vez por ano, também Noel desce (“I live upstate”) uma vez por ano e ao bater das doze badaladas do Natal, desaparece. Christmas, Again é sobre ele, como este conduz um corpo cujo estado natural não sairia sequer daquela caravana, forçando-o a movimentar-se no frio da noite e do passeio de cimento por onde árvore atrás de árvore é empurrada, “embrulhada” e transportada para as casas quentes e convidativas das pessoas, ou assim as imaginamos. Resplandecente em como capta a vulnerabilidade de emoções tão contraditórias, este é o superlativo do cinema que trata a efemeridade do agora; do auto-sacrifício e da superação em nome de uma ideia de felicidade para os outros. Claro que é difícil não pensar que aquelas árvores, na sua missão de espalhar alegria e servir de centro para a comunhão, foram removidas do seu cordão umbilical! E Poekel aborda isto também, mesmo sem o inferir de forma vincada. Ali está Noel, a viver rodeado de seres que foram cortados das suas raízes e no início do ano seguinte estarão nas entradas dos prédios (como se vê em Lisboa) de onde serão depois levados pelas carrinhas das freguesias e destruídos. No ar gélido e crocante de Nova Iorque, a solidão de todos estes que trabalham, vivem e sofrem por e para que o Natal aconteça é exasperante.
Constantemente à procura de foco, os dias de Noel fazem-se de clientes, conversas com o irmão da ex-namorada e a namorada deste, momentos de passagem por um bêbado, nadar e tomar banho numa piscina comunitária, comprar raspadinhas e voltar a ligar o gerador que mais vezes do que não deixa de funcionar. Eventualmente, cruza-se com Lydia, interpretada por outra cara conhecida do mumblecore que tem, nos últimos anos, irrompido ecrã fora (Mindhunter anyone?), Hannah Gross, que Noel encontra desmaiada num banco de jardim com pastilha elástica no cabelo e sem um dos sapatos. Daqui em diante, a previsibilidade de tal encontro concretiza o desejo de Poekel em concluir o desenho de Noel enquanto personagem. Na maior parte dos casos, especialmente naqueles em que a vida se intromete, as festividades são para ser vencidas, e Noel tenta sair do outro lado ileso, com Lydia enquanto co-piloto. Os dois, momentaneamente abrigados pelo naturalismo dos seus arredores, salientam uma sobriedade no filme em ler a solidão como uma língua silenciosa, omnipresente nos corpos, suportada pelo tipo de serenez que transborda de significado em Christmas, Again. E talvez seja por isso que o, na altura, jovem realizador consegue incluir momentos como o brotar de uma flor de chá dentro de um recipiente de vidro ao som da devastadora voz de Marissa Nadler e do seu folk mais afectivo (“All Love Must Die”) sem que este pareça forçado. Eis o canto dos deuses para todos aqueles que se procuram.
Isto para dizer que não há nada mais emulatório, nada que abrace mais a nossa relação connosco mesmo e os outros, que o símbolo de um bolbo com uma cor suja e escura enquanto o vemos a transformar-se na mais bonita das flores assim que toca na água quente. Sentados em frente e depois ao lado um do outro dentro da caravana, aparece perante Noel e Lydia uma abertura enorme para o mesmo tipo de florescer e Poekel não deixa a câmara parar. A primeira tentativa é a única tentativa. Este é o reino das imagens “roubadas”, afinal. Estão ali dois corações que vagueiam por Williamsburg, e ali está uma flor submersa e os contares de todas as nossas pequenas alegrias que se amontoam na energia que faz tudo andar em frente. Talvez a vida seja só isso. Uma enormidade de segundos esplendorosos e depois as suas continuações. Conseguimos ver isso mesmo na cara de Lydia quando se apercebe que Noel, muito como o Natal e um conceito do que este foi um dia e já não é na idade adulta, desvaneceu e não há como o localizar. Não saberemos onde está ou para onde foi a partir do momento em que o perdemos. Há sempre lugar para a redefinição e para a transformação, mas aquele sentimento não regressa. O filme anda atrás dele, e onde há um tatear, há amor. E há muito amor neste filme, pelo cinema e pelo seu papel transportador de magia. Noel estará de volta para o ano.