Park Chan-wook venceu o melhor prémio de melhor realizador em Cannes este ano, algo que não deixa de ser uma novidade, apesar de já ter ganho por duas vezes, com Oldeuboi (Oldboy-Velho amigo, 2003) e Bakjwi (Thirst – Este é o meu Sangue, 2009), o prémio especial do Júri. Continua assim o hype do cinema coreano, depois de Gisaengchung (Parasitas, 2019) de Bong Joon Ho ter vencido a Palma de Ouro e o Óscar de Melhor filme em 2020, e 2021 ter sido o ano em que toda a gente se pôs a falar do sangue e das tripas de Squid Game (2021), de Hwang Dong-hyuk, estreado na Netflix.

Heojil kyolshim (Decisão de Partir, 2022) é um thriller sentimental. A premissa é simples. Um detective casado, Hae-jun (Park Hae-il), investiga um caso em que um homem se suicidou ou foi empurrado do cimo de uma montanha. Naturalmente, as suspeitas recaem sobre a esposa do falecido, Seo-rae (Tang Wei), imigrante de origem chinesa. Progressivamente, a suspeição começa a confundir-se com desejo. É neste espaço entre procurar a verdade e deixar embalar-se numa ficção amorosa que Park Chan-wook se vai encaixar como terceiro metteur-en-scène, entre dois jogos (e batalhas) de manipulação das suas personagens.
Park Chan-wook tem nas mãos algo do mesmo universo de Woman on the Beach (A Mulher Desejada, 1947) de Jean Renoir ou Rebecca (Rebeca, 1940) de Alfred Hitchcock, mas prefere multiplicar-se através dos olhares, optar por jogar o jogo da pistas e dos detalhes — quer antes amar o plano e a composição.
Desta forma, o argumento (que o realizador escreve com a sua habitual colaboradora Seo-kyeong Jeong) aposta nesse trejeito dramático. Amamos só na medida em que suspeitamos, da morte real nasce a possibilidade idílica do amor. Os jantares “românticos” têm lugar na sala de interrogatório, as denúncias são substituídas pelas declarações de amor, e por aí vamos. A profundidade das personagens, sobretudo do protagonista insone [Nolan também brincou com essa forma de expressar inquietação no universo do thriller, com Insomnia (Insónia, 2002)], é ajeitada com a construção do argumento. Além dos três actos, existe uma estratégia algo comum no cinema coreano: temos “dois filmes” colados num só, em que a segunda parte, evidentemente, capitaliza sobre as rimas, os sentimentos, as descobertas da primeira metade.
Se usei a palavra “ajeitar” é porque creio que em Heojil kyolshim a profundidade dramática é mais sugerida do que efectiva. A isso não ajuda a sobreposição de soluções visuais que Park Chan-wook utiliza. Como se ao espectador fosse pedido que acreditasse no amor profundo entre duas personagens, enquanto anda de montanha russa. Os smart watches, as apps de contar passos, as lanternas, os binócolos, as sobreposições entre o plano e as mensagens de telemóvel, tudo isto encaixa num redemoinhar de pistas e voltefaces (só o amor parece procurar a sua solidez); o longe devém perto: a montagem une a observação de longe e a presença no espaço observado; os mortos surgem com os vivos, os flashbacks com o presente e as diferentes hipóteses; até o olho de peixe se literaliza. Contudo, nem sempre isso tem um ganho para o todo e, portanto, ficamos muitas vezes de fora a olhar a extravagância.

Park Chan-wook tem nas mãos algo do mesmo universo de Woman on the Beach (A Mulher Desejada, 1947) de Jean Renoir ou Rebecca (Rebeca, 1940) de Alfred Hitchcock mas prefere multiplicar-se através dos olhares, optar por jogar o jogo da pistas e dos detalhes — quer antes amar o plano e a composição. E, nesse caminho, o detective e a sua presa, a suspeita e o seu predador são menos pessoas no drama romântico e mais peças no puzzle detectivesco.
Resta-nos ainda o humor em Heojil kyolshim. Tartarugas furtadas que dão dentadas, células gastrointestinais activadas pelo pensamento, sexo com compromisso para efeitos de cognição. Este lado mais leve do filme, esse que não precisa da serenidade de Park Chan-wook, acaba por funcionar como escape a uma solenidade romântica que procura capturar os bons fígados do público.
★★☆☆☆