Há cineastas para quem nem o céu é o limite. Cameron é um deles, procurando abrir novos capítulos na história estética e sobretudo tecnológica do cinema, elevando a parada da sua proposta de cinema, seduzido por uma concepção antiquada de cinema-espectáculo (DeMille?) e pelo papel fundamental do drama na construção de novos mundos (Griffith?). Um world builder de sensibilidade profusa e, por vezes, orgulhosamente franca e “pirosa”. Os nossos walshianos escolhem alguns planos que sintetizam o gesto cameroniano.
A série Aliens a mim sempre pareceu uma fantasia psicótica sobre a necessária tarefa, empreendida pelo cosmo, de retirar a pedrinha no sapato de todo o fatal e irreversível processo entrópico, motor físico de sua jornada sinistra em direção ao Nada: o homo faber, sapiens, erectus, ou o homem tout court é esta pedra; o monstro que tenta sistematicamente desalojar os astronautas da órbita da vida não é uma exceção, mas a Regula de morte que coordena a todas as diligências do cosmos; o romanesco da série Aliens gira em torno desta imperiosa necessidade de aniquilação da vida, a que a vida humana inteligível se opõe com um virtuosismo masoquista. Em Aliens (Aliens: O Recontro Final, 1986), o filme que James Cameron dedicou à série sobre o regime de entropia, é a figura humana que sofre os maiores revezes do horror absoluto: não há aqui, como nas outras, o recurso a um Deus ex-machina que tudo salvaria no final das contas; como se vê no fotograma acima, se falamos de cinema, falamos de figuração (no caso do horror, de des-figuração) sob a égide inominável da ação do Sublime: o corpo do astronauta é manietado pelo monstro cósmico como se fosse uma massa de modelar porosa às circunvoluções do Mal. O soma humano abandona aqui sua estrutura de organismo e, dilacerado in extremis pelas garras do Alien, nos revela as potências de outras estruturas, por exemplo a do corpo sem órgãos do esquizofrênico de que Artaud e Deleuze nos deram as pistas para, sob a plástica funcional e causal do organismo, representar corpos anteriores, infensos à própria ideia de representação, mas foi o cinema, arte tardia do corpo capturado in natura, que nos ofereceu as faculdades excelsas de nos libertarmos da máquina sistêmica do organismo; este abraço abrasivo do monstro libera-nos para categorizar a figura humana segundo os signos tenebrosos de sua iminente aniquilação: abdução intransitiva, deperecimento convulso, estilhaçamento hediondo.
O modelo que nos oferece Aliens, o resgate para o desaparecimento da figura estruturada sistemicamente, é de impura avant-garde, que infiltra como cratera o seio do Mesmo (do mainstream): abissal figuração do infigurável, do inominável, do convulso e do hediondo que solicita a atenção humana, aquela prece natural da alma de que falava Malebranche, fascinada agora, segundo a res cooptada pelo abraço fatal, com a possibilidade fantasmática de sua própria dissolução.
Luiz Soares Júnior
Ao rever The Abyss (O Abismo, 1989) pela primeira vez em muitos anos, fica desde logo a sensação do quanto este é um filme único na filmografia de James Cameron, que ao mesmo tempo parece ser completamente situado no seu universo cinematográfico, com as inúmeras sequências de personagens esquecidas num fim do mundo, presas em corredores rodeados de perigos, num cenário hostil em que a tecnologia é tanto uma fonte de perigo como uma solução para uma qualquer redenção. Ao contrário de Aliens (Aliens: O Recontro Final, 1986) ou de The Terminator (O Exterminador Implacável, 1984) e das suas sequelas, não há aqui um inimigo externo facilmente identificável, uma ameaça visível, mas apenas o desafio de lutar pela sobrevivência perante circunstâncias naturais adversas (que podem ter sido causados pelos próprios humanos, uma presciente metáfora já em 1989), sempre com a desconfiança em relação à autoridade, e em particular às hierarquias e organização militares. O belicismo, as armas e as explosões dos filmes citados dão aqui lugar ao engenho humano, à capacidade, ou melhor, à necessidade de sobreviver, de estender o corpo para mais uns fôlegos-sopros, de apostar no improvável, porque há outros que ainda precisam de nós. Como o momento ilustrado, esta é uma sucessão de saltos de fé (alguns mesmo literais), e é talvez o filme de Cameron mais spielberguiano, pela forma como confia nas suas personagens, nas suas motivações e inquietações, como uma linha directa para a nossa empatia; é como se Cameron tentasse encontrar na imagem simbólica do caminho de volta à superfície a descoberta de uma qualquer réstia de esperança, no significado do destino destas personagens.
João Araújo
Eu sei que irão discordar. Há tantos outros planos que destilam Terminator 2: Judgement Day (O Exterminador Implacável 2 — O Dia do Julgamento, 1991) — as várias transformações do T-1000; Arnold Schwarzenegger numa mota — mas, para mim, esta é a imagem que destila o filme. Um dos meus preferidos de James Cameron, é um filme com uma linguagem de acção que funciona, que torna tudo o que Schwarzenegger faz em algo cool, mas cuja emoção não deixa de coexistir com tudo o resto. A história de uma máquina de guerra que vem defender um miúdo que é a esperança na humanidade e que encontra a humanidade em si mesmo. Uma estranha sinceridade e sensibilidade na expressão de emoções, que não deixa de ser cheesy neste gesto final tão ternurento como tough guy.
Esta imagem é o cinema do James Cameron: meio cheesy, meio tough guy, a envolver um pouco de efeitos especiais e a criar imagens icónicas aliadas a um pouco de emoção.
Ana Cabral Martins
Quando vimos Avatar pela primeira vez (e só regressei a ele agora), o fascínio que gerou nalguns (eu incluído) explicava-se a dois níveis: pela crença algo romântica numa dimensão espectacular – verdadeiramente monumental – do cinema narrativo de Hollywood e pela ousadia de Cameron em (continuar a) ser franco e directo mediante um tricotado hiper-sentimental, ligando e pondo em conflito comunidades worlds apart. A primeira parte da explicação, em certa medida, perde força hoje, ao visitarmos ou revisitarmos Avatar, sobretudo se essa visita ou revisita acontecer fora do contexto ideal, que é a sala escura, e não tirando partido da tecnologia 3D (à época, foi dos poucos filmes a saberem, efectivamente, transformar esta tecnologia numa experiência de imersão, com algum frisson ou vertigem). O que sobra – e até sai reforçada – é a ideia de que há qualquer coisa bela na franqueza sentimental deste cinema; deste cinema dentro do cinema, porque Avatar é tanto sobre os novos mundos abertos ou descobertos na malha digital [qual The Matrix (1999) ecologista, qual western sci-fi que nos coloca na pele dos índios, dos povos “a colonizar”] como sobre a própria experiência do cinema (como lugar eminentemente experimental vocacionado para a criação de um novo corpo).
A Pietà que quase encerra o filme – devia ter encerrado de facto, a meu ver – prova também esse desejo romântico, maximamente conciliador, que aspira a unir realidades distantes e aparentemente incompatíveis: numa espécie de inversão da mítica imagem de Fay Wray nas garras de King Kong no clássico de 1933, assistimos à heroína na’vi, símbolo da resistência à tirania dos humanos colonizadores, abraçando o “humano traidor”, interpretado por Sam Worthington, corpo defeituoso “encurralado”, na vida real, numa cadeira de rodas, mas libertado, numa segunda pele virtual, enquanto na’vi. Acredito que Cameron levantou a maior produção de todos os tempos para chegar a esta imagem e fazer caber nela tudo o que a máquina cinema pode produzir de piroso, grotesco e plástico, mas desse concentrado “pulposo” resultou algo bem real: uma furiosa sentimentalidade e um bem sonante grito a favor das (re)conciliações impossíveis. Um exercício de fé qualquer – romântico comme il faut – impossível de conceber fora do cinema.
Luís Mendonça