Não posso deixar de pensar que escrever sobre um filme da Rita Azevedo Gomes é sempre um acto de enorme alegria. Não se trata de nenhuma adoração cega ou mesmo de algo tipo de favoritismo, mas antes, porque considero o trabalho da Rita Azevedo Gomes como a expressão viva de uma certa forma de fazer cinema em Portugal que cada vez mais rareia. Sei que esta mesma consideração não é nova e há quem – cada vez mais desmentido pelo rumo que a obra da cineasta tem vindo a levar – durante anos tenha tentado colar este trabalho singular a uma qualquer descendência de Oliveira ou César Monteiro (e nesse gesto subtil e machista, uma forma de menorização do mesmo). Há ainda uma segunda alegria contida neste texto, que é o facto da Rita Azevedo Gomes ter conseguido fazer mais um filme, esse trabalho hercúleo que em Portugal é cada vez mais ingrato (se é que não foi sempre), não só pela burocratização dos processos, como pela perpetuação do desinteresse (quer das salas, quer do público em geral) pelo cinema português, como (e talvez o factor mais importante) a dificuldade que sempre houve na obtenção de financiamento para a produção dos filmes.
E este filme é o exemplo mais evidente disso, pois é o resultado de um trabalho de amor pelo cinema (e por todos aqueles que desse universo fazem parte – basta pensar na presença regular da actriz Rita Durão), pela vontade de criar uma obra (um corpo que se apresenta cada vez mais sólido e particular), de manter-se fiel aos princípios que regem o seu universo e sobretudo a um estilo que se mantém indiferente a modas e afectações [e no entanto, disponível a incorporar diferentes linguagens e texturas – basta pensar no Correspondências (2016)]. Não é por acaso que estas qualidades “desvirtuam” o lado profundamente rohmeriano do texto, sem que haja, no entanto, quaisquer indícios formais que nos levem a pensar no cineasta francês. Em conversa com a Rita Azevedo Gomes, a mesma diz que jamais foi próxima de Rohmer e que, a ser próxima de alguém, seria antes de Bergman.
Esta sensação de trabalho sempre em aberto é uma característica cada vez mais evidente no universo de Rita Azevedo Gomes (…)
De facto, Rohmer jamais permitiria os “truques” e as graças de Rita Azevedo Gomes – basta pensar no episódio do piano a tocar sozinho ou no sonho de Jorge (interpretado pelo magnífico Adolfo Arrieta, outro cineasta igualmente singular) – pois Rohmer, ao contrário de Bergman que sempre permitiu o contágio da magia sobre as coisas, era o mais puro tradutor do real para o ficcional (não é por acaso que Rohmer procurava, com a mais exacta minúcia, replicar aquilo que filmava tal como era). Além de que este momentos e desvarios são igualmente a expressão de um método de fazer cinema que sempre teve de procurar soluções dentro dos recursos que possuía. E o filme está repleto de exemplos onde os actores, assim como no aproveitamento da casa, criam partidas ao espectador (a confusão constante entre o filme em si e o filme rodado, as incertezas do cineasta que constantemente interrompe o filme e ordenava novas filmagens, o entra e sai dos actores por janelas e portas, o uso da música e do som, ora ampliado e falseado, ora evocativo de elementos naturais fora do ecrã).
Há ainda um outro aspecto a assinalar, nesta impossibilidade rohmeriana entre o texto e os propósitos do filme da Rita Azevedo Gomes. Se é certo que a personagem feminina é inequivocamente a mulher-tipo de Rohmer (aluada, exposta a um dilema amoroso, um tanto frívola e errática, intelectualmente “limitada”), o trabalho da Rita Durão e da cineasta vai precisamente contra essa imagem. Se por um lado o texto dá-nos de facto essa mulher, por outro lado, a presença da actriz surge com uma enorme clareza naquilo que pensa, naquilo que deseja e naquilo que gosta. Além de que, jamais o homem rohmeriano poderia actuar tal como Pierre Léon o faz. Se é certo que o texto exibe a superioridade intelectual de Paul, é igualmente visível a inaptidão das suas capacidades intelectuais para lidar com as situações práticas; assim como, uma certa infantilidade emocional (tão visível na sua curiosidade ou na frase que procura ouvir) e uma constante subjugação à ex e futura mulher que irrompe sem aviso a sua casa ao longo do filme. E claro, a presença de Arrieta, uma presença em muito semelhante à presença de Ingrid Caven em A Portuguesa (2018), que vagueia pelo filme sem propósito aparente, mas que pela sua imagem e força, interrompe a ordem estabelecida das coisas, tal como o anjo de Klee que agita e desarruma a linearidade temporal.
Arrieta está em total estado de graça, sempre um pouco despassarado, mas de uma ternura e delicadeza imensa, uma perfeita nota polifónica a esta composição de Mozart. Composição essa que vai além das suas personagens, pois tudo está intimamente relacionado no filme, basta atentarmos às cores e aos rigorosos planos da casa. Mais uma vez, em conversa com Rita Azevedo Gomes, eu comento a presença do vermelho no filme e pergunto-lhe se esta não é uma alusão à obra-prima de Arrieta, Flammes (1978). Foi inevitável pensar, desde o primeiro plano do filme, no qual a cineasta aparece sentada numa cama à noite de pullover vermelho vestido, que aquela cor era o seu cunho, a sua imagem cinematográfica. Rita riu-se com esta minha extrapolação, que deve antes aos tons do lenço que Paul oferece a Adélia no seu aniversário. De facto, este magnífico lenço é síntese das duas cores reinantes (vermelho e verde) do filme. Enquanto na roupa o vermelho vai surgindo de forma pungente e subtil, o verde contagia o dentro e fora da casa (quer pela vegetação que envolve a casa, quer por exemplo nos dois quadros abstractos que por diversas vezes surgem como pano de fundo à acção).
E no final desta comédia de enganos onde tudo acaba bem, o desfecho do filme parece indicar o recomeço do próprio. Esta sensação de trabalho sempre em aberto é uma característica cada vez mais evidente no universo de Rita Azevedo Gomes, como se esta incompletude fosse a força motriz do próximo filme. Tal como a própria declarou à Agência Lusa, “(…) naquela altura queríamos fazer qualquer coisa juntos. E para mim fazer qualquer coisa é tentar fazer um filme”. Saímos de Trio em Mi Bemol (2022) com vontade de permanecer na sala e assistir a nova variação do filme; ansiosos por mais uma cena onde o capricho desvairado do cineasta Jorge prolongue o filme e obrigue os actores e o curso das filmagens a refazerem as cenas que testemunhamos. É um filme de uma enorme maturidade, feito com a leveza de um espírito jovem.
★★★★☆