É preciso começar por dizer quão descabelada era a Hollywood de onde saiu esta sátira explosiva “apontada” aos filmes de espiões, à época a primeira produção hollywoodesca a ultrapassar a marca dos 100 milhões de dólares, batendo o record estabelecido pelo anterior título do mesmo realizador, James Cameron, a sua obra-prima máxima Terminator 2: Judgment Day (O Exterminador Implacável 2 – O Dia do Julgamento, 1991). Digo “descabelada” porque, além da pronunciada dimensão paródica, quase ao nível de uns ZAZ, ao universo cool e sério desse particular subgénero do cinema de acção, todo este filme parece resultar de um puro apetite pelo entretenimento simultaneamente mais frontal, exuberante, sem elemento algum de paragem e de distracção supérflua. E o primeiro elemento de distração é, aos olhos de Cameron, as boas regras da verosimilhança ou da congruência narrativa. Por isso, a pergunta é: como é que um dos filmes mais estúpidos dos anos 90 – e politicamente pedestres (o terrorismo islâmico em registo caricatural, a misoginia mais ou menos flagrante de um agente secreto empregando os mais altos meios da polícia secreta para “torturar” a mulher supostamente adúltera…) representou, ao mesmo tempo, um dos mais divertidos nacos de entretenimento a sair da indústria nos nineties?
A minha tentativa de resposta começa desta forma: porque é o produto de um cineasta com um talento especial para o cut to the chase, em bom português, de um realizador que sabe, como poucos, ir directo ao assunto. E aqui o assunto principal é o cinema como espectáculo na sua dimensão essencialmente visual e sonora. Corpos em movimento, cenários inteiros em ruínas após a sua passagem, um one-liner saído da expressão ainda robótica, eternamente “de Terminator”, de Arnie: “You’re fired!” É isso que Cameron parece dizer na cara do espectador que se ilude ao pensar que o cinema popular de entretenimento precisa de uma mensagem, de uma boa moral, personagens life-size, boas lições de metafísica. Aqui a mise en scène pauta-se por uma gestão de impactos, em que o delírio visual é a nota principal e inegociável. Rimo-nos face a todo o disparate assumido, mas disparate que também nos embasbaca, ainda ao dia de hoje, pela sua “vertigem” espectacular.
Estamos, de facto, no período áureo do cinema de acção: o seu embaixador mor, Arnold Schwarzenegger, participara naqueles que são, a meu ver, os seus dois filmes mais paradigmáticos: o sucesso estrondoso e planetário de Terminator 2 e a ode ao cinema como universo de infinitas possibilidades e de um terno encantamento chamada Last Action Hero (O Último Grande Herói, 1993), se calhar, revisto ao dia de hoje, após a sua pobre recepção então, o The Last Picture Show (A Última Sessão, 1971) deste cinema mastodôntico ancorado nos efeitos especiais maciços e numa certa vertigem “embasbacadora”: “UAU” era a palavra que guiava – e que era gerida e domada por – McTiernan e Cameron quase por igual. Cameron com menos elegância, mais força bruta, estilo directo e “mecânico”; McTiernan, vindo da grande escola clássica (Hawks acima de todos), mais elegante, procurando alguma forma de bailado entre a câmara e os ditos corpos compactos que povoam este cinema e desfazem em pó os cenários urbanos.
Entre marido e mulher não se mete a colher? Apetece responder que “sim”, mas se não devemos meter a colher, podemos talvez “intrometer” uns quantos dossiers delicados da política externa americana.
True Lies é um filme perfeitamente ciente da sua economia rebarbativa, da sua, digamos assim, “estupidez total” e, tornando-a uma espécie de premissa que se ultrapassa mais do que se segue, é um óptimo pretexto para “brincar” com todos os gadgets disponíveis. É Cameron a empregar maquinaria muito pesada, tanto ao nível dos aviões de combate, caças, helicópteros, carros e todo o tipo de armas automáticas, como dos próprios corpos, já que, neste particular, há, pelo menos, dois motivos de diversão: Arnie interagindo com Jamie Lee Curtis. O sentido de humor dos dois é parte fundamental desta potente química on screen – conhecíamos já nesta altura a apetência de Arnie para a comédia, por causa, por exemplo, de Kindergarten Cop (Um Polícia no Jardim-Escola, 1990), mas também conhecíamos a faceta sexy-cómica de uma Lee Curtis reinventada em Trading Places (Os Ricos e os Pobres, 1983) depois do filme que a definiu durante muito tempo, Halloween (Regresso do Mal, 1978). Mas também há essa dimensão robotizada dos corpos monumentalizados de Arnie e Jamie Lee Curtis: ele tenta dançar o tango – dizem que foi a cena mais difícil de rodar para o actor, superando portanto a dificuldade de desfazer em mil pedaços uma casa de banho pública (na sequência mais à la John Woo de todo o filme) ou, pilotando um avisão de guerra, varrendo com tiros um andar inteiro de um arranha-céus – e ela tenta fazer um strip – a sequência mais lembrada ao dia de hoje do filme, curiosamente, pela sua mistura genial da tal sexyness com uma divertida, e indisfarçável, “falta de jeito”, não de Curtis mas da sua personagem, uma mulher descrita como “conservadora” mas desejando ou ansiando por uma escapadela fora do quadro da sua vida entediante de secretária e “fada-do-lar” ideal.
Se Curtis, na pele da sua personagem, deseja uma fuga qualquer à sisudez da sua vida, Cameron, por seu lado, encontrou neste True Lies o pretexto ideal para se lançar no mais dispendioso playground que Hollywood lhe podia disponibilizar à época. Fugiu do tom sombrio, quase expressionista, no sentido caligarista do termo, do universo Terminator e tentou fazer uma espécie de slapstick comedy à maneira de Buster Keaton ou, melhor ainda, de Harold Lloyd, tirando partido da matéria mais dura de todas: uma absurda “intriga internacional” (vagamente premonitória do que seria o advento do 11 de Setembro, no seu grau de espectacularidade, desta feita, como é claro, sem graça nenhuma), um concurso “a minha arma é maior que a tua” em perseguições diabólicas pela cidade (a mais louca envolve um cavalo e uma mota subindo às alturas de um arranha-céus), mas também uma tentativa de elevar a assunto de Estado tanto a afirmativa voluptuosidade de Curtis (em processo de revelação) como o corpo inquebrável de Arnie, ainda que igualmente a sua terna devoção à família (devoção outrossim em progressiva revelação).
O pudor e conversadorismo do marido, ao serviço do governo, mas levando uma vida de fachada como vendedor de material informático, acabam por ser postos em causa pela (suposta) vida dupla da mulher com sede de aventura e de acção. A troca de papéis entre os dois é evidente, já que é por valores essencialmente conservadores – a protecção do sacrossanto casamento – que Arnie saves the day, ao passo que ela tem o que deseja: muita acção e muita aventura. Entre marido e mulher não se mete a colher? Apetece responder que “sim”, mas se não devemos meter a colher, podemos talvez “intrometer” uns quantos dossiers delicados da política externa americana. A saudavelmente disparatada relação promíscua entre os assuntos da cama e os assuntos do Estado torna True Lies num filme de duas faces: a nossa reacção imediata é ao espectáculo visual, à sua kinesis exuberante, mas, no fundo, no fundo, esta é uma muito burlesca screwball comedy, à maneira de um The Thin Man (O Homem Sombra, 1934), por exemplo, tendo como eixo central a dinâmica – em destruição e recuperação permanentes – estabelecida entre marido e mulher, mulher e marido.
A “verdade da mentira” está – joga-se – aqui, no ou a partir do núcleo familiar, numa narrativa em que, além de bons sentimentos, é preciso – exige-se! – excitement. Já o xadrez geopolítico é somente “fogo de vista”, fumaça para épater le bourgeois. Como aquele plano em que a eclosão do beijo deste casal reencontrado, depois da terapia matrimonial mais extrema, acompanha a detonação nuclear em pano de fundo. Um momento de explosivo super-romantismo que sinaliza a urgência maior que é a last-minute recue de todo um casamento empreendida por Arnie. Face a tudo isto, a segurança nacional e planetária acaba por ser um assunto menor.