O que é um filme de Natal? Um filme passado durante a quadra natalícia, seja integral ou parcialmente? Um filme em que o Natal assume um poder transformativo? Um filme recheado de música natalícia? Um filme que contém um momento mágico que coincide com o Natal? Ou, simplesmente, um filme que é habitualmente visto durante a época festiva? Ou um filme que, como o próprio Natal, exacerba tudo, alegrias e tristezas? Talvez seja tudo isso. E While You Were Sleeping (Enquanto Dormias, 1995) é tudo isso.

A vida de Lucy (Sandra Bullock) é uma vida lenta e triste, feita de serões solitários com o gato, um sonho remoto de um dia visitar Florença, aqueles pratos pré-preparados para micro-ondas que resumem tudo. Por isso, a sua narração inicial consiste grandemente de memórias mais felizes, em tons sépia, da vida de criança com o pai, de uma época em que ela já vivia de outras memórias – a cerimónia de casamento dos pais, o momento em que o pai soube que amava a mãe de Lucy, a mãe que lhe ofereceu o mundo (que, afinal, era apenas um globo terrestre iluminado, um artefacto que sobrevive na sala de Lucy). São as memórias quentes que aquecem os Invernos frios [já assim dizia Deborah Kerr em An Affair to Remember (O Grande Amor da Minha Vida, 1957)].
Mas o Inverno agreste de Chicago nada tem de tons quentes de pôr-do-sol. É um azul gélido que torna a solidão de Lucy no guichet do metropolitano ainda mais comovente, uma solidão agudizada pela imagem da família que corre ainda para apanhar o metropolitano que se aproxima, já atrasada para o almoço de Natal. A família que Lucy perdeu, primeiro a mãe ainda em criança e, mais recentemente o pai, deixando-a numa existência quase invisível em que ela nunca é notada ou relembrada (nem mesmo pelo homem que lhe vende os cachorros-quentes, incapaz de se lembrar do seu pedido habitual), uma existência muitas vezes hesitante, visível numa gaguez de tipo James Stewart. Não espanta, portanto, que ela se refugie numa paixão idealizada por um qualquer bonitão elegante que passa por ela todos os dias, sem nunca trocar com ela uma única palavra (Freud acharia particularmente curioso o facto de este homem ser extremamente parecido com o pai de Lucy, que apenas vimos brevemente logo no início do filme). A solidão do Natal é, ainda assim, uma solidão que dói mais, a solidão que vemos na cara de Jane Wyman em All That Heaven Allows (Tudo o Que o Céu Permite, 1955), contemplando o seu reflexo no aparelho de televisão mais cruel já visto no cinema, ou a solidão de Meg Ryan carregando desajeitadamente todo o peso do pinheiro de Natal em When Harry Met Sally (Um Amor Inevitável, 1989). O peso desses rituais natalícios é literal em While You Were Sleeping, a ponto de Lucy deixar escapar o pinheiro que tentava puxar pela janela do seu apartamento por ser demasiado pesado.


While You Were Sleeping vive neste limbo do anacronismo, entre o conjunto de character actors e artimanhas narrativas próprios do cinema clássico de Hollywood e a “desglamourização” realista da protagonista, uma verdadeira girl next door.
Numa comédia romântica convencional, o conto de fadas ser-nos-ia servido com as peças todas devidamente encaixadas, a narrativa seria, afinal, aquilo que descreve Lucy na noite em que decide “torturar um homem em coma”, partilhando com ele o desejo imaturo que vem alimentando, de que “se ao menos aquele homem a conhecesse mesmo bem, apaixonar-se-ia perdidamente por ela”. Tratando-se de uma comédia romântica às avessas, Jack (Bill Pullman) só aparece à meia hora de filme e Peter (Peter Gallagher) só acorda quando mais de metade do filme já se esgotou. Por isso, é também sozinha que Lucy enfrenta essa primeira meia hora, tendo como par romântico o conjunto da família de Peter – pai, mãe, irmã, avó, padrinho. Quando a enfermeira diz a Lucy que fale com Peter de modo que ele possa ouvir a sua voz (Lucy que tantas vezes fala consigo própria), não sabemos ainda que talvez Peter tenha negligenciado a família justamente para tentar escapar a esse enorme coro de vozes, vozes que se sobrepõem em conversas cruzadas constantes, tal como sucede no jantar de Natal, em diálogos desconexos entre Alan Ladd, a Argentina e o puré de batata. Mas este é o momento corriqueiro e confortável do Natal, a confusão das prendas e da comida (e bebida), tudo fugaz, como seria de esperar. Voltar à existência pós-natalícia é deixar os tons quentes da troca de prendas e reencontrar o azul gélido de que falávamos mais acima, numa cena que constituirá o cerne de While You Were Sleeping. Ox (Peter Boyle) sentado solitariamente à mesa, manhã cedo, satisfeito por finalmente ter chegado aquele momento mágico em que tudo está bem, todos estão felizes, um momento de paz. Mas afinal ainda não é desta que esse momento acontece, porque ele nunca acontece. “Life is a pain in the ass” e um cruzeiro com Kathie Lee Gifford que se perdeu. E o que fica é a solidão de Ox (também ele), evidenciada nas sucessivas alterações ao nome da firma da família – de Callaghan and Sons, para Callaghan and Son, para simplesmente Callaghan.

O Peter que acorda e que até ali havíamos conhecido apenas de indícios circunstanciais (de objectos, de histórias de infância, de relatos de familiares e de colegas de trabalho), revela-se um pouco cómico e um pouco sacana, mas acredita, depois de alguma orientação do seu padrinho Saul (Jack Warren), que a ligação a Lucy poderia revelar-se uma possibilidade de renascimento após o acidente. O facto de Peter acabar por acreditar nessa promessa de redenção, por pouco provável que ela se apresente, compreende-se pela sua formação católica e quase confere realmente a este Natal em particular uma carga de salvação em que Peter parece crer mais do que qualquer uma das pessoas que o rodeiam, um deslumbramento por tudo o que o rodeia que aos olhos mais cínicos parece apenas patético. E como é óbvio, sendo Peter um pouco totó (é Saul quem o afirma), a sua resolução aparenta ser esperançosa mas volátil.
Na verdade, os ditames do conto de fadas deveriam resultar numa união final entre Lucy e Peter: o jovem rico e impassível deixar-se-ia tocar pelo bom coração de Lucy e, contra todas as probabilidades, unir-se-ia àquela que era a sua salvadora. Mas esta é uma solução (o final feliz mais óbvio) de que o próprio filme zomba permanentemente, reconhecendo que a união entre Lucy e Peter não faz qualquer sentido, porque pertencem a mundos diferentes.
While You Were Sleeping vive neste limbo do anacronismo, entre o conjunto de character actors e artimanhas narrativas próprios do cinema clássico de Hollywood e a “desglamourização” realista da protagonista, uma verdadeira girl next door [Sandra Bullock traja mais simplesmente na festa de Natal dos Callaghan do que perdida na selva profunda de The Lost City (A Cidade Perdida, 2022)], entre a promessa do príncipe encantado na canção de Natalie Cole dos créditos iniciais (“This will be, an everlasting love / This will be, the one I’ve waited for / This will be, the first time anyone has loved me”) e o pragmatismo do chefe de Lucy quando ela anuncia que decidiu casar com um homem só porque ele é bonito e rico. São avanços e recuos, entre o plausível e o implausível, entre acreditar e não acreditar, troçando do gadget narrativo chamado “amnésia”, com um médico que tenta de forma entediada descrever um tipo de amnésia selectiva que possa explicar o facto de Peter não reconhecer Lucy. Se a colega de Lucy sublinha o absurdo da situação de Lucy, noiva de um homem com quem nunca teve sexo, nada há já de estranho em aceitar que Lucy possa aceitar o pedido de casamento de Jack, numa situação exactamente igual àquela que a colocaria frente a Peter. Em bom rigor, tal não deverá causar estranheza, pois Lucy apaixonou-se não por Jack, mas por toda a família Callaghan. Daí que o pedido de casamento venha, não apenas do pretendente, mas da família em peso, comprimida como um único rosto do outro lado do vidro. No fundo, aquilo que é o terror de Cary Grant no final de To Catch a Thief (Ladrão de Casaca, 1955) – a chegada iminente da sogra ao seu refúgio de solteirão – é para Lucy a felicidade suprema, porque ao casar com Jack, casa com uma família inteira.

No final, há o regresso à narração de Lucy para confirmação de uma verdade simples, ainda que pareça extremamente próxima – a vida nem sempre corre como se espera. Mas, pelo caminho, também há sonhos que se concretizam, sejam eles Florença ou o mundo. O chefe de Lucy diz-lhe que é suposto nascermos numa família, não alistar-se como um marine. Mas é Natal, deixemos Lucy viver o seu conto de fadas.