There are girls with avid, searching eyes and girls dull with the discontent of long office days ahead, girls rebellious because they have only impersonal business hours to contemplate, and girls eager because an office and its men and its activities is a livelier place than the kitchen. There are girls tired because they been awaked by raucous-voiced alarm clocks after insufficient sleep; girls hungry because they rose too late for coffee and breakfast food… and timid girls wondering if they shall have to suffer this morning for yesterday’s errors.
Vera Caspary, Music in the Street, New York: Grosset & Dunlap, 1929.
Ser uma working girl em Hollywood, no final dos anos 1920, não é algo particularmente raro nem impossível, sendo muitas as mulheres que trabalham nos bastidores da “fábrica de sonhos” como montadoras, argumentistas, anotadoras ou simples secretárias. Também Dorothy Arzner terá sido tudo isso antes de se tornar numa das mais prolíficas realizadoras da Hollywood clássica: no ativo entre 1927 e 1943 (vários destes anos sob contrato com a Paramount, o seu estúdio de eleição), foi a única cineasta a transitar do cinema mudo para o sonoro (com The Wild Party [Louca orgia, 1929]), e a primeira a integrar, em 1938, o Directors Guild of America (tendo sido novamente homenageada por esta instituição em 1975). “Mulher de armas” — se considerarmos a câmara de filmar como uma arma — num mundo feito por e para os homens, Arzner não só realiza filmes sobre mulheres e para mulheres, como veicula através deles uma visão proto-feminista da sociedade americana, desafiando em vários pontos o statu quo social e a ordem moral então impostas às mulheres — atos de bravura que só a implementação do Código Hays, a partir de 1934, viria refrear.

Se o seu nome e reputação já não nos são hoje completamente desconhecidos, tendo grande parte das suas realizações estreado comercialmente em Portugal, a filmografia de Dorothy Arzner — atualmente em destaque na programação da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema — reserva-nos ainda algumas refrescantes e arrojadas surpresas. Umas delas é Working Girls, filme realizado em 1931 mas durante muito tempo “esquecido”: fracasso comercial (em parte devido à ausência de stars de peso no elenco), boicotado pela Paramount (que terá limitado a sua distribuição nas salas de cinema americanas, com receio de represálias pelo modo como nele é abordada a temática da gravidez — e, logo, do sexo — antes do casamento), e praticamente impossível de ver durante décadas (um bem-haja às cópias piratas e à The Criterion Collection, que permitiu a sua redescoberta em 2020), Working Girls é apesar de tudo uma comédia romântica inventiva e subversiva, sendo destacada pela própria cineasta como uma das suas realizações favoritas.
Adaptação de uma peça de teatro de Vera Caspary e Winifred Lenihan (por sua vez inspirada num romance da primeira, Music in the street, citado em epígrafe), o argumento de Working Girls, assinado por Zoe Akins (colaboradora frequente de Arzner, a par da montadora Jane Loring), gira em torno das jovens irmãs Thorpe, originárias do Indiana, que vêm instalar-se em Nova Iorque com dois objetivos bem definidos: arranjar um emprego que lhes garanta um mínimo de independência e encontrar um homem que seja um “bom partido” para casar. Os papéis principais são atribuídos a duas atrizes pouco conhecidas, Dorothy Hall e Judith Wood, louras platinadas no estilo de Jean Harlow, cujas carreiras serão tão fugazes quanto a desta última, ainda que bem menos emblemáticas.
Contrariamente à irmã mais velha (Dorothy Hall), nascida em Maio e portanto chamada Mae, que sonha encontrar o homem ideal pronto a casar-se “por amor”, a mais nova (Judith Wood), de seu nome June por ter nascido em Junho, tem uma visão bem mais terra-a-terra dos laços matrimoniais, que encara como um “mal necessário” para alcançar alguma estabilidade financeira e como a única forma de mobilidade social ao alcance das mulheres na América da Grande Depressão — visão que adivinhamos espelhar a da própria cineasta, que em vários dos seus filmes retratou o casamento heterossexual como “um instrumento para manter homens e mulheres reféns de aparências e de papéis forçados e, talvez mais significativamente, reféns de um consumo excessivo” (nas palavras de Gwendolyn Audrey Foster, «Pre-Code Women: Dorothy Arzner’s Working Girls (1931)», Senses of cinema — CTEG Annotations on Film, fevereiro de 2017).
Descobrir Working Girls é também, precisamente, compreender de que formas Dorothy Arzner foi contornando, desafiando e reinventado o papel e a imagem da mulher moderna no cinema clássico de Hollywood, dentro e fora do ecrã.
Importa aqui lembrar que, apesar da sua orientação sexual não ser um segredo, não há nos filmes de Arzner quaisquer tramas amorosas ou personagens abertamente lésbicas. No entanto, uma certa queerness inerente ao seu olhar de cineasta e mulher homossexual (verdadeiro female gaze em potência) paira sobre as suas realizações, nomeadamente através da atenção que é acordada ao modo como as personagens femininas se vestem, agem e se comportam de maneiras diferentes consoante se encontram na esfera privada, em presença de outras mulheres, ou socialmente, junto dos seus pretendentes, para quem, de forma mais ou menos consciente, desempenham os papéis de femme fatale ou de damsel in distress.
Este aspeto é particularmente evidente em Working Girls, que desde os primeiros minutos introduz um ambiente exclusivamente feminino: o da pensão reservada a jovens raparigas trabalhadoras e bem comportadas (ou que pelo menos fingem sê-lo), onde Mae e June ficarão hospedadas. Longe do olhar puritano da diretora, as residentes partilham chocolates e garrafas de gin, confidenciam conquistas e desgostos amorosos, cobiçam sem maldade as prendas luxuosas que algumas recebem dos seus male friends e, nos momentos de maior liberdade, dançam nos braços umas das outras, ao som da música jazz que lhes chega pela janela (música naturalmente proibida no interior do estabelecimento por ser considerada um estímulo à promiscuidade).

Ainda assim, o clima de sororidade não é isento de intrigas, de conflitos ou até de desejos camuflados (uma troca de olhares entre June e a lift girl da residência sugere-nos que June não atrai unicamente homens – e sabê-lo bem). Mas todas se revelam fiéis cúmplices quando é preciso cobrir os atrasos inesperados na hora do recolher obrigatório, ou corroborar a existência de um familiar inventado para justificar as noites passadas fora (“Say, you kids ought to meet a man like my aunt!”).
É graças ao talento natural para o “desenrascanço” de June que as irmãs conseguem o seu primeiro trabalho na capital: Mae como estenógrafa para o cientista Von Schrader (Paul Lukas), June enquanto operadora telefónica na Western Union. Também nos assuntos do coração ambas se revelam bastante expeditas: a inocente Mae cai rapidamente nas boas graças do patrão, para logo de seguida se perder nos braços do playboy Boyd Wheeler (Buddy Rogers), ignorando que este está comprometido com uma socialite de boas famílias; já June sai regularmente com Pat Kelly (Stuart Erwin), um saxofonista algo tacanho mas generoso, que a enche de presentes sem esperar nada em troca.
Working girls de dia, gold diggers de noite? A maneira como Arzner expõe os objetivos, vícios e fragilidades das suas protagonistas revela uma realidade bem mais complexa: Mae e June são uma amálgama de tudo aquilo que se esperava que uma mulher fosse nos anos 30 — simultaneamente sedutora e delicada, trabalhadora mas sempre pronta para a festa, independente mas disposta a “assentar” assim que as condições se propiciem. O facto de a expressão working girls servir de título de um outro filme realizado por uma cineasta americana nos anos 1980 (Lizzie Borden e as suas Profissionais do Sonho) permite-nos pressentir um paralelismo no modo como as duas realizadoras denunciam o casamento e a prostituição como “o resultado de um sistema económico, que a super-estrutura social, jurídica e cultural que nele se apoia alimenta e justifica” (Manuel Cintra Ferreira, folha de sala de Working Girls [Profissionais do Sonho, 1986] para a Cinemateca Portuguesa, março de 2022).
Paralelamente às dinâmicas amorosas vaudevillescas que se tecem entre o núcleo de personagens do filme de Arzner, são as questões de classe que determinam as afinidades entre uns (June e Pat Kelly) e os obstáculos entre outros (Mae e Boyd Wheeler). Esta última deitará tudo a perder ao passar uma noite com Boyd, acabando despedida, solteira e grávida; será preciso que June interceda novamente em seu favor, em primeiro lugar convencendo o Dr. Von Schrader a renovar a sua proposta de casamento para salvar a honra da irmã (ainda que isso signifique que ambos terão de ignorar os sentimentos que entretanto começaram a sentir um pelo outro) e, mais tarde, pedindo uma pistola emprestada a Pat com a intenção de “encorajar” Boyd assumir a responsabilidade pelos seus atos: “Have you got a gun? We’re going to a wedding!”

Working Girls está repleto de deliciosas tiradas como esta, que conferem uma nota picante à intriga por vezes algo previsível; pois não esqueçamos que, ainda que se trate de um filme pré-código, este não deixa de estar sujeito aos diktats do studio system, que impõe o happy ending romântico e, mais importante ainda, o reiterar da ordem moral. Por isso mesmo, descobrir Working Girls é também, precisamente, compreender de que formas Dorothy Arzner foi contornando, desafiando e reinventado o papel e a imagem da mulher moderna no cinema clássico de Hollywood, dentro e fora do ecrã.
Working Girls será exibido na Cinemateca Portuguesa, no dia 19 de Dezembro, às 19h00, na sala M. Félix Ribeiro, e repete no dia 20 de Dezembro, às 15h30 ne mesma sala.