Na versão italiana de Germania Anno Zero (Alemanha, Ano Zero, 1947), de Roberto Rossellini, o filme é antecedido por uma nota que procura enquadrar o cenário com que nos vamos deparar: a cidade de Berlim no Verão de 1947, em pleno pós-guerra, uma cidade feita em ruínas. Esse intertítulo introdutório descreve a perversão de ideologias, desprovidas da moral e da piedade cristãs, em loucura criminosa, apontando para o facto de que Edmund, o jovem protagonista do filme, é empurrado, de forma mais geral pelas circunstâncias, e de modo mais directo por um antigo professor, para um acto que irá alterar decisivamente a sua vida: o assassinato do próprio pai, que executa, por estar convencido de que a morte representará a libertação do progenitor.

Germania Anno Zero dá conta da destruição atroz causada pela ideologia nazi no seio da própria Alemanha. Como se lê naquele cartão introdutório, o filme não é nem uma acusação contra o povo alemão, nem a sua defesa, antes uma constatação da situação extrema em que este se encontrava então. O movimento de Edmund rumo ao abismo, eco, na lógica do filme, daquela ideologia, é, tristemente, provocado sobretudo por inércia e não por uma acção deliberada — como o intertítulo indica, os agentes são o cansaço, a lassidão.
Num mundo em que é preciso começar do zero, em que uma série de princípios que pareceriam elementares foram desestabilizados e em que se torna difícil precisar o valor de cada coisa, como saber qual é o papel de um filho, de um pai, como saber deixar de ser soldado e voltar a ser uma pessoa?
A inércia caracteriza, de facto, quase todos os adultos mais próximos de Edmund: seja o irmão, Karl-Heinz, que integrou as SS e receia agora revelar-se às autoridades, preferindo viver escondido; seja a irmã, que apesar da sua dedicação à família, resiste aos incentivos de algumas amigas para ganhar, de formas menos respeitáveis, algum dinheiro; seja o próprio pai, que, apesar de estar agora efectivamente incapacitado, fala a certa altura sobre outras formas de inacção de que foi conivente, lamentando a insuficiente resistência da sua geração ao regime nazi. Confrontado com a incapacidade física do pai, a virtude da irmã e o medo do irmão, Edmund é o único que parece capaz de agir, talvez, paradoxalmente, pela inocência que o caracteriza. Durante todo o filme, vemo-lo ser usado e enganado por quase todos aqueles que o rodeiam, desde a família ao Sr. Rademacher, dono da casa onde foram alojados, aos vendedores do mercado negro ou a outras crianças com quem estabelece contacto e que se servem dele sem pudor, da sua solicitude, ingenuidade e vulnerabilidade física. Edmund pouco ganha com as suas pequenas missões. Mas, ao contrário dos outros, caracteriza-o uma determinação benigna, que faz dele intermediário entre o exterior e o interior da casa, entre a necessidade de assegurar a sobrevivência da família (e não apenas a sua) e ideais de moralidade — o que devia ter sido feito de forma diferente (absolutamente evidente em retrospectiva), no caso do pai; o moralismo do irmão, colaborador directo do nazismo, que censura o rapaz por andar com crianças que se envolvem em actividades pouco lícitas; as recriminações constantes dos Rademacher sobre quanto se gasta e o que se faz, todos eles muito preocupados com o que é ou não próprio, num mundo erodido em termos morais, onde vítimas e carrascos convivem debaixo do mesmo tecto. Lembremo-nos de um comentário de Karl-Heinz feito em tom de auto-comiseração e desprezo por aquilo que descreve como “as ditas vítimas do fascismo”, o que não deixa de apontar para o desígnio de Rossellini fazer do filme uma análise não sentenciosa de uma situação.
É nesse trânsito entre certo e errado, próprio e necessário, que Edmund é capturado. A um dos pedidos de ajuda que dirige a Henning, um antigo professor seu, colaboracionista, que reencontra num dos percursos pela cidade, este responde minimizando o valor da vida do pai do rapaz, dizendo-lhe que pouco há a fazer por ele, considerando a sua idade e o seu estado de saúde: que, na natureza, os fracos desaparecem para dar lugar aos fortes, que é necessário ter a coragem de dar continuidade àquela espécie de lei e salvar a própria pele. A displicência do discurso do professor é substituída, em igual medida, pelo assombro perante a notícia de que Edmund concretizou a acção para a qual aquelas palavras cobardemente haviam apelado — o extermínio do mais fraco em favor da sobrevivência do mais forte. Papagueando os preceitos da ideologia que defende, Henning não mede o significado e o possível impacto das suas palavras no rapaz.
A tragicidade da situação de Edmund é que também ele é um dos “fracos”, nomeadamente se pensarmos em todos os adultos e crianças que constantemente lhe passam a perna. Isto torna ainda mais perverso vê-lo a obedecer a uma ideia de supremacia de um sobre o outro. De igual modo, acolher a lei do mais forte implica esquecer que manter vivo o pai era o propósito da família, aquilo que mantinha os irmãos reunidos e que levava Edmund, expedito, a atravessar a cidade todos os dias.
Como qualquer criança, Edmund é permeável ao discurso de Henning, que acolhe de modo literal, sem compreender a dimensão do que lhe é proposto. Não foi apenas a língua viperina do professor, mas também as lamentações do próprio pai acerca da extrema agonia em que se encontrava que conduziram o filho a um questionamento e relativização extrema do valor da vida humana. O rapaz acredita estar a fazer algo bom — quando os três irmãos se reúnem junto ao morto, Edmund pergunta ao irmão mais velho se o pai está agora, finalmente, livre.
Esta alteração de valores permeia todo o filme. Lembremo-nos das poupanças do pai, delapidadas pela inflacção, da balança do sr. Rademacher, que logo no início do filme é vendida por muito menos do que ele tinha exigido, do falso sabão com que um dos miúdos de rua engana as pessoas. Lembremo-nos da formulação do intertítulo inicial, em que ideologias se transmutam em loucura criminosa — uma coisa é transformada no seu oposto, algo que tenho abordado nos textos desta rubrica sobre os filmes de Rossellini, aqui com consequências bem mais nefastas.
Num mundo em que é preciso começar do zero, restabelecer as regras, em que uma série de princípios que pareceriam elementares foram desestabilizados e em que se torna difícil precisar o valor de cada coisa, como saber qual é o papel de um filho, de um pai, como saber deixar de ser soldado e voltar a ser uma pessoa? Edmund é inteligente e desembaraçado, mas não partilha de modo de nenhum da familiaridade que outras crianças da sua idade demonstram relativamente à utilidade da malícia, há nele uma espécie de rectidão absoluta — pensemos, por exemplo nos rapazes que visitam, com menos candura que Edmund, o casarão de Henning, ou em Christl, a rapariguita que lhe oferece cigarros, com ternura até, mas sem que cheguemos a saber onde os arranja.
Há um desacordo profundo entre Edmund e todas as outras personagens — ninguém é da altura dele, nem o bando rapazes mais velhos que encontra em volta de Christl na noite da morte do pai, nem os rapazes mais novos com quem tenta jogar futebol no dia a seguir e que o rejeitam —, entre ele e o próprio mundo. Na cena inicial, a única do filme em que vemos árvores frondosas, Edmund finge ser mais velho do que é para que o deixem trabalhar. Ou, pensando que nem ali o rapaz é verdadeiramente desonesto, o corpo seria, em rigor, mais novo do que ele. Criança sempre fora do lugar, nessa cena observamo-lo a abrir covas para enterrar os mortos da guerra, como se o seu caminho para a morte começasse logo no início do filme.
Num texto de 1977, ano da morte de Rossellini, João Bénard da Costa fala das ruínas de Berlim como “o mais onírico dos cenários”, suficiente “para desencadear o suicídio de uma criança”. Tentava por estes dias encontrar o sentido da afirmação de Bénard. Nesse texto, o crítico integra Germania Anno Zero naquilo que estabelece como uma segunda fase no trabalho de Rossellini, iniciada por este filme, e que descreve como “a fase do «realismo ontológico» tal como Bazin o definiu, da identidade spinozeana entre a ordem das ideias e a ordem das coisas”. Aqui, Bénard bebe assumidamente de um texto de Jacques Rivette, Lettre sur Rossellini, no qual o crítico e cineasta francês fala do domínio do concreto como sendo o mesmo que o domínio do espiritual. Para Rivette existe uma ligação indestrinçável entre corpo e alma, ideia que ecoa, não por acaso, num texto de Joaquim Sapinho sobre as aulas de António Reis em que se analisou Germania Anno Zero: “(…) De como a forma humana intacta de Edmund era apenas uma sombra, também ele era uma ruína mas interior. Para António Reis as formas tinham vida. O que ele ensinava era a atenção às formas. Retirava-nos da distracção da história superficial. O exterior das formas revelava o interior da vida de Edmund.”
Não porque as formas sejam continentes de um conteúdo, mas porque, como escreve Rivette, “o corpo é alma, o outro eu-mesmo, o objecto verdade e mensagem”. Depois de, perante a surpresa horrorizada de Henning ao ouvir a sua confissão, compreender a gravidade do seu acto, Edmund segue sozinho pelo meio da cidade arruinada. Ocupa-se a fazer coincidir os seus passos com buracos que cobrem o pavimento, marcas da guerra. A sua tentativa parece ser a de se relacionar com a materialidade das coisas, agora que também ele é, sim, uma ruína, agora que tudo surge aos seus olhos coberto por um sentido de irrealidade. Depois de subir ao prédio onde o filme termina, joga com a própria sombra, fazendo-a aparecer e desaparecer; atira uma pedra à fachada de um prédio próximo; bate com um tijolo na moldura de uma janela, como uma criança que testa a solidez das coisas, mas também a da sua alma — lembramo-nos aqui do plano em que o pai engole o chá envenenado e em que Edmund, ao seu lado, engole em seco. É o seu rosto que ali vemos, mas é interior a morte a que assistimos.
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. Germania Anno Zero (Alemanha, Ano Zero, 1947), de Roberto Rossellini, é parte dessa lista.