Cinquenta anos decorridos sobre a trip de mescalina de Huxley junto a um jardim de Hollywood, numa época em que já viajámos até à Lua e cingimos o nosso planeta com uma cultura de entretenimento mais sufocante do que tudo o que ele imaginou nas páginas de Admirável Mundo Novo, talvez não seja descabido pensarmos que a expedição que Huxley levou a cabo aos confins da sua própria mente constitui a derradeira viagem que nos espera a todos, quer por meios químicos, quer por outra porta menos arriscada, a passagem interior para o nosso eu mais genuíno e mais cativante.
J. G. Ballard, in prefácio de As Portas da Percepção (Antigona, 2013, tradução de Paulo Faria)
Eleanor Coppola acompanhou Francis na rodagem de Apocalypse Now (1979), durante 238 dias nas Filipinas. Uma espécie de diário de produção, que inclui o registo de várias conversas mantidas com o marido, sem este ter conhecimento. Hearts of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse (1991) servir-nos-á, então, como mediação para trilhar um filme que Coppola apresentou em Cannes, depois de mais de dois anos de montagem: “O meu filme não é um filme. O meu filme não é sobre o Vietname. Ele é o Vietname. É como foi. Uma loucura. E nós fizemo-lo do modo como os americanos estavam no Vietname. Estávamos na selva. Éramos muitos. Tínhamos acesso a muito dinheiro, muito equipamento, e pouco a pouco ficámos loucos”.
Orson Welles encenou em 1938 Heart of Darkness (Coração das Trevas, 1902), numa das emissões míticas na rádio com o seu elenco do Mercury Theatre. Welles pensava tornar o romance de Joseph Conrad como a base para o seu primeiro filme, em 1939. A história narra a viagem de um capitão no Rio Congo à procura de Kurtz, um mercador de marfim. Um homem de ideais, Kurtz, que ambiciona educar os nativos, mas que sucumbe às tentações da selva e enlouquece. Welles interpretaria Kurtz, mas perante a perspectiva montanhosa dos custos de produção, Hollywood deixou tombar o projecto. Coppola fundou a Zoetrope em 1969, na Califórnia, para filmar fora do controlo dos estúdios de Holywood, e um dos primeiros projectos foi Apocalypse Now. Numa fase já adiantada do conflito no Vietname, e com grande presença e contestação no quotidiano da nação americana, John Milius escreveu o guião que apontava para uma rodagem no Vietname, com câmaras portáteis de 16 mm, sendo que a realização ficaria entregue a George Lucas. O projecto acabou arquivado: por razões de segurança, nenhum estúdio alinhou.
A rodagem foi atribulada desde o princípio. Em Abril de 1976, Coppola viu as imagens da primeira semana de rodagem e decidiu substituir Harvey Keitel. Enfiou-se num avião para Los Angeles para convencer Martin Sheen a interpretar o Capitão Benjamin Willard.
Coppola esperou pelo sucesso de vários projectos nos anos 70 – em que os The Godfather (1972 e 1974) conseguiram associar êxito financeiro à aclamação da critica e da academia –, para reactivar a Zoetrope, sendo que o primeiro projecto seria, então, Apocalypse Now. O cineasta transformou o projecto em algo algo seu, dir-se-ia do seu íntimo, e colocou o seu dinheiro e penhorou os seus bens para garantir um orçamento megalómano, onde se destacava o cachet de três milhões de dólares para Marlon Brando, para três semanas de trabalho. Coppola afirmou que o cargo de realizador era, nessa época, um dos últimos estatutos ditatoriais do mundo democrático. O facto de estar a gastar o seu dinheiro, a fazer uso da aclamação conquistada até então, deram-lhe a sensação de ser Kurtz.
A rodagem foi atribulada desde o princípio. Em Abril de 1976, Coppola viu as imagens da primeira semana de rodagem nas Filipinas e decidiu substituir Harvey Keitel. Enfiou-se num avião para Los Angeles para convencer Martin Sheen a interpretar o Capitão Benjamin Willard, o caçador de Kurtz. Sheen, acabou por aceitar uma rodagem que apontava para 16 semanas na selva, mas estava preocupado com as suas condições físicas: tinha 36 anos e fumava três maços de cigarros por dia, sentia-se velho e cansado e perguntava-se se aguentaria o ritmo. Depois de alguns adiamentos e com a rodagem em bom ritmo, em Março de 1977 Sheen sentiu fortes dores no peito e apanhou um autocarro para o hospital, onde o informaram que tinha sofrido um ataque cardíaco e o presentearam com uma extrema unção ministrada por um padre que não falava inglês. Nos primeiros indícios de que a realidade iria invadir o plateau e baralhar os domínios, Coppola ficou mais preocupado com o impacto da noticia em Hollywood do que com a saúde do actor: o médico ter-lhe-ia dito que ele era um jovem, que em três semanas voltaria ao trabalho. Como numa guerra, Coppola mostrou que mesmo na iminência do desastre (de a United Artists interromper a rodagem), iria sempre avançar. Colocou um duplo de Sheen na sua ausência e logo que pôde readmitiu o actor em tarefas mais leves. Em paralelo, Marlon Brando, um dos grandes trunfos da produção (seria Kurtz), mandou avisar que se recusava a adiar o inicio da rodagem e que ficaria com o milhão de dólares de adiantamento.
A primeira sequência de Apocalypse Now é atravessada por um helicóptero e pelo seu som, que invade o primeiro plano de uma selva. A selva arde em chamas, um inferno na terra, que se mescla com um plano apertado do rosto de Martin Sheen, de cabeça para baixo, permeado por imagens de guerra. Entramos na mente de Willard, a ventoinha do quarto funde-se nas hélices sonoras de um helicóptero, a máquina de guerra que se assemelha a um insecto estranho e perigoso. Abrem-se as portas da percepção. É o enunciar de um trauma, pessoal e colectivo, a que o tema The End (The Doors) serve de orientação: um território desesperado, longínquo e antigo, tomado pelo perigo, pela dor e pela insanidade, a que se propõe uma escapada em direcção à mitologia do Oeste e à psicanálise de Freud. Grande parte do filme chegar-nos-á da narração dos pensamentos de Willard, das suas percepções e fragilidades. “Quando estava aqui queria estar lá, quando estava lá, só pensava em voltar para a selva”. Depois de uma primeira comissão, Willard regressara a casa, para depois de poucas semanas voltar, aliciado pelo estado primordial do caçador, mesmo que a geometria das paredes daquele quatro em Saigão pareçam apertar, esmagá-lo.
Eleanor confessa que receou que Sheen atacasse Coppola perante a insistência da interpelação abrasiva em que o cineasta desafiava o actor a pensar na mulher e nos filhos, na casa, em como seria perder tudo isso.
À pergunta de Sheen a Coppola – afinal quem era Willard –, Coppola encontrou a resposta num sonho em que o actor se transformava no personagem: independentemente do que filmassem, Sheen era o personagem. Coppola estava a caçar a faceta obscura de Sheen. Na cena do quarto, filmada no dia do 36.º aniversário do actor, Coppola deu pouquíssimas indicações e o actor estava tão embriagado que nem mediu a distância do espelho e acabou por cortar-se. Fora de campo, Coppola gritava para Sheen se mirar no espelho, para observar que bonito astro do cinema ele se tornara, mas também para dar a ver o seu caos interior e enfrentar o seu pior inimigo. Eleanor confessa que receou que Sheen atacasse Coppola perante a insistência da interpelação abrasiva em que o cineasta desafiava o actor a pensar na mulher e nos filhos, na casa, em como seria perder tudo isso. Naquele quarto, debaixo daquela descarga emocional, na sua fragilidade, Sheen encontrou o homem que poderia matar Kurtz: as imagens de um Sheen embriagado fundem-se com o rosto enegrecido de Willard nas chamas da guerra, um vai e vem indiscernível entre as memórias e uma antecipação da luta pela vida na selva onde reinava Kurtz, que comunicam com um mal interior e uma vontade de regressão.
A reunião em que a missão é entregue a Willard pelas altas patentes militares fede a conspiração. Os olhares na direcção da câmara e de Willard estão sempre a evidenciar uma gravitas que merece desconfiança, colocam-nos num lugar oculto, são uma projecção da América saída daquela hora do almoço na Dealey Plaza em Dallas, das mortes dos Kennedy e do reverendo Luther King, e que confluiria no abalo do edifício democrático, no caso Watergate. O general que liderava a comitiva fechou o encontro com Willard, apontando a viagem ao coração das trevas: “Nesta guerra as coisas tornam-se confusas na selva. O poder, os ideais, a moralidade antiga e as necessidades militares práticas. Mas, na selva, com estes selvagens, deve ser uma tentação ser Deus. Cada coração humano vive com um conflito, entre o racional e o irracional, entre o bem e o mal, e o bem nem sempre triunfa. Às vezes… o lado negro sobrepõe-se ao que Lincoln chamava os melhores anjos da nossa natureza. Todos os homens têm um ponto de ruptura, incluindo nós os dois. O Walt Kurtz atingiu o dele e enlouqueceu”.
As Filipinas foram o território escolhido devido às semelhanças com a paisagem do Vietname. Perante a recusa em colaborar do exército americano, Coppola fez um acordo com o presidente das Filipinas, Ferdinand Marcos: a troco de milhares de dólares por dia, garantiu o apoio dos militares, incluindo a disponibilidade da frota dos helicópteros do presidente, enquanto não fossem necessários, pois os comunistas lançavam ataques frequentes para tomar o controlo das ilhas do sul. Nesse permanente dentro e fora, vários dias de rodagem foram condicionados pela necessidade de combater os rebeldes, com um general do exército a gerir em permanência o vai e vem de helicópteros e de pilotos, entre o set e a defesa das posições a sul. Na construção do cenário principal, um templo cambojano decadente onde Willard enfrentaria Kurtz, Dean Tavoularis, o designer de produção, confidenciou a Eleanor que o templo foi construído com blocos de argila seca, que pesavam 150 quilogramas cada um. Eram 600 pessoas a trabalhar, algo que em Hollywood seria incomportável, mas exequível ali, com os nativos pagos a um dólar por dia. Um simulacro à dimensão de Hollywood, simulacro verdadeiro como todos, expresso na materialidade.
A chegada dos helicópteros do lado do mar, a que se seguem as explosões e a floresta em chamas com as cores da guerra é algo para lá do visual, táctil: são imagens belas, imagens surrealistas, imagens que não são deste mundo, imagens saídas de um sonho de Dali.
O filme levava literalmente à guerra e à destruição a extensas parcelas das Filipinas. Na incontornável sequência das Valquírias de Wagner, que invadem os céus por ordem do Tenente Kilgore (Robert Duvall), uma porção de floresta é efectivamente destruída pelas chamas, pelo simulacro de napalm lançado pelos helicópteros comandados pela indústria de Hollywood. Se aquela ópera apela ao sublime que o romantismo encontrava nas paisagens da destruição, da ruína e da diluição do tempo, a invasão daquele pátio silencioso é também da cultura do ocidente, com especial enfase na cultura americana, a nação americana transportada para outro território. A chegada dos helicópteros do lado do mar, a que se seguem as explosões e a floresta em chamas com as cores da guerra é algo para lá do visual, táctil: são imagens belas, imagens surrealistas, imagens que não são deste mundo, imagens saídas de um sonho de Dali. O fito deste ataque era o de permitir o acesso à praia que melhores ondas garantia para o surf. Kilgore não é apenas responsável pelo uso do arsenal de guerra, mas também o patrono da cultura americana: com alguém a trautear o “Let’s Go Surfing Now” dos Beach Boys, os seus soldados são forçados a entrar no mar com as pranchas, mesmo sob uma forte resposta dos vietcongs.
Killgore liderava uma divisão de cavalaria que trocara os cavalos e a paisagem americana por helicópteros e pela selva, em mais uma imposição da imagética da nação saída da Guerra da Secessão, como quem instala o western no Vietname. Uma imagem de um acampamento nocturno protegido pelo recorte das árvores, que remete para um quadro de Raoul Walsh ou de John Ford, é só um introito para o desfiar de iconografia representativa da nação invasora: os chapéus de cowboy, as cartas do saloon para marcar os cadáveres, a corneta usada para ditar o ritmo dos ataques. Na cena que antecede a tomada da praia, a cavalaria desfere um massacre operado por munições e explosões. Um vietnamita lança uma granada para dentro de um dos insectos de guerra. Perante isto, Kilgore diz: são uns selvagens. Poderiam ser as palavras de um cowboy a referir-se a uma tribo de ameríndios atacados no território onde a sua tribo estava estabelecida. No helicóptero de Duvall há uma inscrição – Death From Above. É a máquina da morte que chega, ordenada pelos céus, como um decreto religioso. O helicóptero, como temos visto em outras paisagens ballardianas, é o ícone da guerra: a sua constante presença, o som das hélices, o fumo a negro com tons de vermelho, são metáforas de destruição.
Wherever America goes, they make a big show. Vittorio Storaro, director de fotografia, diz que Coppola lhe relembrava sempre que não estavam a fazer um documentário sobre o Vietname, mas sim um grande evento de luzes e de música, pois os americanos produzem entretenimento aonde vão: a ideia de colocar Wagner na cena da batalha é em parte isso, é uma ópera da fantasia primordial característica dos americanos. George Lucas acrescenta: “A guerra tinha um carácter interessante, psicadélico. A cultura estava a influenciar, a infiltrar-se no sudeste da Ásia. Uma estranha cultura americana, onde se adoptara o tom de uma guerra tipo rock n’ roll. As coisas foram mais longe do que se pensava. Durante a guerra, ninguém sabia das drogas, de toda a loucura. Isto possibilitou que fosse feito um filme revelador, (…) onde veríamos a insanidade que aquilo era”.
Lance (Sam Bottoms), um dos tripulantes da lancha de Willard, e que tinha sido um surfista famoso nas praias de Los Angeles nos anos 50, recebe uma carta dos pais onde se relata uma visita à Disneylândia. O remetente: não há nenhum lugar como este, pois não?! Ao que Lance responde para si: é aqui! Bottoms haveria de confessar a Eleanor Coppola que fez grande parte do filme sob o efeito de erva, além de experiências pontuais com ácidos, sendo que na sequência da ponte Do Lung, que foi rodada durante várias noites, houve distribuição de anfetaminas para sacudir a equipa. A ponte Do Lung, limite simbólico da geografia do Vietname, que todos os dias era destruída pelos vietcongs para ser reerguida no dia seguinte pelos americanos, é encenada por Coppola como uma sequência de um espectáculo da Broadway ou de Las Vegas, num carnaval de explosões e de luzes. Por estes dias, perante o arrastar da rodagem, da derrapagem do orçamento, a equipa na iminência do desastre celebrava em grande estilo, com fogo de artificio e um outdoor a anunciar o 200.º dia de rodagem.
Apocalypse Now fez uso, então, de um volume impressionante de meios, de construção de grandes cenários, numa atmosfera de fim de um tempo de orçamentos extravagantes. No ano seguinte, Heaven’s Gate de Michael Cimino enterraria os sonhos e a liberdade artística da Nova Hollywood, enquanto provocava a derrocada da United Artists, um dos grandes estúdios. O filme, nesse exibir da materialidade, parece ter consciência desse fim eminente, que em breve haveria de ser substituído pelos sonhos digitais de Spielberg e dos Star Wars de George Lucas.
Com Sheen sempre alheado dos restantes personagens e enfiado na sua cabeça, o filme divide-se entre as imagens da sua mente o contra-campo pontual das acções dos outros personagens nesta espécie de parque de diversões.
Em 2001, Coppola relançou o filme com uma nova montagem, que adicionava cerca de 50 minutos à versão de estreia, deliberadamente encurtada no longo processo de montagem, afinada para o sucesso, que deixou de ser uma opção: era necessário, para evitar o desastre da empreitada. Apocalypse Now Redux inclui uma nova sequência – a plantação francesa (que abordaremos à frente) e a extensão da actuação das coelhinhas da Playboy numa das bases. Na continuação, rio abaixo, da viagem até ao coração das trevas mapeada pela cultura de sucesso e pelo sonho americano, as modelos da Playboy chegam de helicóptero a um palco, pequena ilha contígua a um anfiteatro plantado na água. Com Sheen sempre alheado dos restantes personagens e enfiado na sua cabeça, o filme divide-se entre as imagens da sua mente o contra-campo pontual das acções dos outros personagens nesta espécie de parque de diversões.
Antes da chegada, ouvíramos com os tripulantes da lancha de Willard um dos hinos do hedonismo daquele tempo, emitido pela rádio como um presente do Tio Sam: (I Can’t Get No) Satisfaction. Um tema dos Rolling Stones, figuras cimeiras da música rock e do media landscape e que apesar de serem britânicos agarraram os sons das tradições do sul da América, sendo que por isso, os dois tripulantes mais atentos ao tema são afro-americanos, sempre chamados a contribuir nas guerras da nação, à espera de um dia acederem ao estatuto de cidadãos plenos da América. Lemos no rosto do ainda adolescente Laurence Fishburne (Tyrone) – que será o primeiro dos tripulantes a encontrar a morte, a letra de (I Can’t Get No) Satisfaction, que grita a denúncia de um excesso de informação inútil, disparada pela rádio e pela televisão, que ao invés de alargar as portas da percepção, apenas condiciona o que ele compra e lhe inibe a moral e os costumes. Os soldados daquela expedição particular trocam dois barris de combustível por umas horas com duas das playmates. Mas algo estranho acontece na intimidade dos dois pares, que retrai a actividade sexual daquela geometria: as mulheres, na vontade de serem outras, mostram-se obcecadas com a repulsa dos outros pela sua imagem; os soldados, ao invés da volúpia, procuram repor imagens das suas memórias, de reencontrar no sentido táctil do papel (características distintivas das playmate, como a cor do cabelo) que se sobrepõe à pele, a concretizar a superação do ícone na relação com a realidade, da memorabilia sobre a carnalidade.
Coppola diz-nos que por um lado o filme é uma aventura, uma viagem por um lugar desconhecido; mas também se espraia por uma vertente alegórica, filosófica. Eleanor completa: Apocalypse Now é sobre a viagem interior de Francis, o seu medo de falhar. Ao esperar que o filme ilumine os factos – o que aconteceu, como aconteceu e como afectou as pessoas participantes –, enquanto está permanentemente a ansiar o desastre da rodagem, que só poderia resolver com o seu suicídio, o cineasta está muito próximo do protagonista de The Atrocity Exhibition (romance de 1970, filme de 2000) e do seu projecto científico que promove simulacros para melhor entender os traumas, os pessoais e os de uma época. Este contexto é corroborado pelas declarações em Cannes, em que Coppola parece fazer a catarse de uma rodagem traumática, encontrada no longo processo de montagem do material recolhido. É então um laboratório de ideias, algo que junta a escala e os propósitos humanistas da ciência e da arte, as paisagens interiores e o estado do mundo.
O cineasta lamentava que ninguém o escutasse, pois pensavam que ele só obtinha resultados em cenários de crise. Faria qualquer coisa para escapar disto, como ficar doente. Confessou que ponderou em lançar-se de uma altura de cinco metros. Podia morrer ou ficar paralítico, mas pelo menos era uma saída.
Os jornais faziam manchetes com o “campo de batalha”, com o Vietname de Coppola nas Filipinas. O cineasta endereçava respostas para Hollywood: vociferava que nunca pararam de trabalhar, assumia que a rodagem estava atrasada, também devido à escala da empresa, pois tinha pelo menos o dobro da proporção dos seus projectos anteriores, como os dois The Godfather; reafirmava que todos os dias travavam uma guerra enorme, com centenas de pessoas no set e um continuum de problemas de produção. Em Maio de 1976, depois das primeiras chuvas, um tufão atingiu as Filipinas. Os rios alagaram as aldeias, foram reportadas pelos menos 200 mortes. Entretanto, a longa sequência de dias de chuva tinha demolido 80% dos cenários: a realidade voltara a apossar-se do filme, a reforçar o simulacro. Enquanto chegavam noticias de mais um trauma da América, na cópia de uma primeira página dedicada ao atentado da trupe de Charles Manson, os técnicos e o elenco, como os soldados do Vietname, foram de licença para casa pelo menos durante dois meses, enquanto se reconstruiam os cenários. Intensificava-se o melodrama em volta da rodagem com Coppola, que ficara nas Filipinas, a cavalgar as notícias de Hollywood, que o adjectivavam como um louco incapaz de gerir os prazos e o financiamento: iria perder tudo, incluindo a sua residência na Califórnia. Mas estas notícias, perspectivadas à distância, revelam-se um combustível para a empresa de Coppola, que afirmou que desistir do projecto, seria como desistir de si próprio.
As três semanas de rodagem com Marlon Brando engrossaram a ansiedade, o trauma experimental do cineasta. O actor, que se comprometera a emagrecer, apresentou-se corpulento e embaraçado com essa condição, o que forçou Coppola a esconder a sua figura nas sombras dos monumentos decadentes erguidos pelo simulacro de Dean Tavoularis. Alguns dias depois de iniciarem o trabalho conjunto nos diálogos, o cineasta apercebeu-se que Brando, ao contrário do combinado, não lera Heart of Darkness. As linhas de Kurtz surgiram em grande medida de improvisos de Brando, nos quais Coppola tinha pouquíssima ingerência. Numa das gravações áudio recolhidas por Eleanor podemos ouvir o desespero do marido: “Por favor, ajudem-me! Isto não funciona”. Coppola bradava que o processo escapara do seu controlo e de qualquer racionalidade. Ele estava a criar simultaneamente personagens que ambicionam representar uma guerra traumática para a nação americana e uma viagem pela natureza humana, enquanto lidava com as suas fragilidades e as exprimia para procurar ver nelas algum sentido. Crescia o pânico de o verem como um realizador pretensioso, um idiota armado em professor de filosofia. O cineasta lamentava que ninguém o escutasse, pois pensavam que ele só obtinha resultados em cenários de crise. Faria qualquer coisa para escapar disto, como ficar doente. Confessou que ponderou em lançar-se de uma altura de cinco metros. Podia morrer ou ficar paralítico, mas pelo menos era uma saída. Esta tensão entre o interior e o exterior, entre um fora de campo que está a ameaçar em permanência o enquadramento, revela-se no filme na sequência em que Coppola está a rodar uma reportagem para a televisão e aparece em campo durante breves instantes e se volta para Willard: “não olhes para a câmara, passa como se estivesses a lutar”.
Dennis Hopper interpreta um fotógrafo, a quem Coppola escolheu para captar a verdade, uma espécie de mediador (a figura do americano) para facilitar o encontro de Willard com Kurtz. Numa sequência de Hearts of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse, Coppola diz a Hopper que ao fim de cinco dias ele ainda não sabe os diálogos. Depois da enésima repetição da cena, Hopper diz que já não consegue ver nada com aqueles óculos: cada risco é uma vida que ele salvou. Coppola diz-lhe que devia integrar coisas como esta (a história dos óculos) nos diálogos. Hopper responde que não consegue reinventar as falas porque o realizador está sempre a dizer que ele continua sem saber os diálogos dele. Coppola diz-lhe que se ele aprendesse os diálogos, podia depois esquecê-los e reinventá-los. Hopper diz que foi isso que fez, ao que Coppola responde por entre gargalhadas que ele não pode esquecê-los se ainda não os memorizou. Para lá da paródia, a cena ajuda a exprimir a ideia gritada por Coppola, o pedido de ajuda, perante o eminente desastre de quem tinha investido tudo num filme e achava que nada tinha, nem uma história, nem interpretações. Perante isto, Coppola transformou o trauma colectivo dos americanos – o Vietname – no seu trauma particular, para o qual convocou todas as ajudas, como os actores trazerem a suas vidas, o seu mundo interior e as suas fraquezas para o filme.
No guião de Apocalypse Now, o exército de Kurtz era uma tribo de nativos. Em vez de maquilhar cidadãos filipinos, Coppola convenceu uma tribo das montanhas a participar no filme, sendo que havia rumores de que os Ifugao seriam caçadores de cabeças.
Antes da chegada ao reino de Kurtz, há uma última sequência, um mergulho na toca do coelho, como um sonho de Lewis Carroll. Coppola pretendia que os seus soldados recuassem no tempo, à medida que subiam o rio, como um filme da História do Vietname em flashback. Na sequência da plantação francesa, o tempo dilui-se. Fundada ainda no século XIX, pela geração dos avós, aquele lugar é uma fantasmagoria, como a luz de uma estrela já desaparecida, captada por um telescópio. É neste lugar que enterram o corpo de Laurence Fishburne, sobre o qual colocam o grande ícone da América, a bandeira, mas aqui esfarrapada, resultado de uma nação dilacerada. Numa mesa iluminada por um pôr do sol, pelo crepúsculo de um tempo, é no estender da hora mágica que várias gerações de franceses, de homens, mulheres e crianças, afirmam que aquele é o seu lugar, construído pelas mãos das várias gerações, como se perante a extinção de um planeta tivessem escapado para uma outra galáxia. É um dialogo de colonizador, de colono para colono: os franceses perderam a II. ª Guerra, a Argélia, a Indochina, mas aquele pedaço de espaço-tempo será defendido, eles têm um propósito, enquanto os americanos estão a lutar pelo maior nada da História, o Vietname. Esta guerra incompreensível será suspensa por um pequeno lapso de tempo, no encontro de Willard com Roxanne, a jovem viúva francesa interpretada por Aurore Clément. Antes de se entregarem à volúpia, a uma beleza táctil no corpo da mulher, há um plano com uma iluminação ténue que os junta a uma paisagem (o rio e a selva) e a uma percepção do paraíso tão primordial quanto efémera. Ainda no leito, o pensamento de Willard vagueia, assume que não sabe o que fará quando chegar ao fim do rio, mas que anseia começar a caçada a Kurtz.
A tripulação de Willard encontra uma ilha preenchida de templos e altares deteriorados, uma grande catedral a céu aberto, que cheira a loucura e a morte lenta, em que se expõem cadáveres, enforcados e decapitados. Um território vigiado por uma mistura de soldados e de nativos, adultos e crianças, súbditos de Kurtz. Uma idolatria e um líder insondável: lúcido ou louco, ídolo ou sábio, corajoso ou recluso. Revelar-se-á um homem destroçado como nunca vira, pensa Willard: Kurtz é um contentor de todos os horrores, alguém que acedeu ao coração das trevas, para experimentar a empatia pelo terror e pela miséria moral, e que não abdica da verdade, na narração de episódios de barbárie ou na leitura da Time, rodeado de crianças, onde se abre uma fenda do que foi ocultado aos americanos, na incursão no Vietname. O sussurro de Brando num dos encontros com Sheen atribui-lhe o direito, e talvez o dever, de o matar, mas não de o julgar: é um mártir, disponível para o sacrifício. Willard passará por uma purga, uma purificação que o prepara para o grande evento. Kurtz e Willard, já não são homens, são semideuses, criaturas de outra estirpe.
No guião de Apocalypse Now, o exército de Kurtz era uma tribo de nativos. Em vez de maquilhar cidadãos filipinos, Coppola convenceu uma tribo das montanhas a participar no filme, sendo que havia rumores de que os Ifugao seriam caçadores de cabeças. Eleanor aproximou-se da tribo e conseguiu autorização para filmar os seus cânticos, histórias e rituais, que envolviam a morte de galinhas e porcos. Depois de muita insistência, Eleanor convenceu Francis (que estava a trabalhar no guião nas pausas da rodagem e do sono) a assistir ao culminar do ritual, onde se sacrificava um antílope: o animal ficava de pé, enquanto os nativos o abordavam de vários lados e lhe desferiam duros golpes de catanas. Eleanor descreveu aquela morte com algo de belo e trazido de outro tempo. A carne do animal foi partilhada por todos, como no dia de acção de graças, disse Eleanor, sendo que os Ifugao ofereceram a melhor parte do animal aos Coppola: o coração, oferenda que era normalmente entregue aos sacerdotes.
Voltar-se-á a ouvir The End dos Doors, enquanto Brando entra por uma porta preenchida de um fundo branco e da percepção de que nos falavam Ballard e Huxley. No exterior da caverna, rezas, danças e velas acesas produziam uma antecâmara para a decapitação de Kurtz, que Coppola mimetizou a partir do ritual da tribo: uma criatura de tal magnitude só poderia ser sacrificada numa cerimónia honrada e solene, antiga e digna, primitiva e bárbara. Na montagem alternada de Coppola, o antílope é golpeado repetidamente, enquanto a lâmina de Willard entra na carne de Kurtz, que recebe os golpes de pé, como o touro que quase não tem dorso e que só depois de rasgado e aberto, colapsa.
Enquanto a selva e os nativos se ajoelham na passagem de Willard, ouve-se o horror na voz de Brando, nos escritos onde incitava ao lançamento da bomba atómica, ao extermínio. O mundo ficara numa encruzilhada, com a ciência envolvida em algo tão opaco e oculto como as crenças das tribos mais ancestrais. Willard, enquadrado num contrapicado entre as colunas de um templo, acabara de aceitar o pesado legado do trauma de Kurtz.