O ano de 2022 ficou marcado pela excelência do cinema de terror que chegou às nossas salas e/ou serviços de streaming. Ti West não trouxe um mas dois filmes que constituem, a meu ver, um dos mais entusiasmantes second comings de um realizador em muito tempo: X (2022) e o (ainda por estrear em Portugal) Pearl (2022), duas obras protagonizadas por Mia Goth, a meu ver, a actriz do ano transacto, compondo uma personagem consumida, até ao paroxismo, pelos seus altos sonhos com a ribalta mas revelando, na realidade, uma fragilidade e um “estado de abandono” verdadeiramente comoventes – o longo grande plano que encerra Pearl, em jeito de confissão sórdida relativa aos terríveis actos praticados, é um momento de inspiração da sua actriz, acima de tudo, mas também de um realizador que percebe ser ela a força maior do seu filme e de muito cinema americano.
Houve ainda um Jordan Peele buscando uma nova linguagem em Nope (2022), obra complexa que funde David Lynch com M. Night Shyamalan. Houve ainda Smile (2022), um surpreendente filme de sustos de natureza psicanalítica, que importa para os Estados Unidos as melhores lições (Que las hay, las hay) do J-Horror. Agora, e finalmente, chega-nos, através do VOD (em videoclubes como o da MEO), um filme intitulado The Barbarian (Bárbaro, 2022), de um realizador – também actor de profissão – pouco conhecido mas que nem por isso deixou de reunir o consenso da crítica nos Estados Unidos. O buzz era muito e talvez excessivo, mas não posso deixar de confirmar agora que este título, vindo desse lugar estranho chamado contemporaneidade, está à altura do bom ano que tivemos em matéria de terror.
Zach Cregger assina este exercício narrativamente sofisticado, caminhando no sentido da sátira ou da formação de um olhar implacável sobre estes estranhos tempos, do #metoo à alta exploração imobiliária, nomeadamente versando sobre os segredos obscuros – e sujos – do concentracionário regime instaurado pelo serviço Airbnb. É também um filme de monstros em que a barbárie está muito mais do lado da economia e da sociedade do que está escondida, pronta a ser despertada, numa cave sinistra situada algures nos subúrbios de Detroit. Narrativamente, o filme avança, recua, recua mais, avança de novo… Um pára-arranca que nos faz passar por vários estados de ansiedade e incerteza (face a todos os resets, o interesse não esmorece mas flutua um pouco).
A entrada da (aparente) protagonista do filme numa vivenda situada numa das zonas menos recomendáveis do arruinado Estado de Detroit é seguida de uma autêntica lição de paranoia cinematográfica: na casa está um hóspede awkward interpretado por Pennywise, perdão, por Bill Skarsgård, que se isenta de culpas quanto à sua presença não prevista na dita habitação, pois esta deveria estar somente destinada à personagem interpretada por Georgina Campbell. Se o primeiro “bloco de tempo” da narrativa resulta numa teia lentamente urdida pela mise en scène, o que se segue é um veloz e ainda mais desnorteante estilhaçamento da história, quase ao jeito de um Elephant (Elefante, 2003) ou à maneira de um filme de cativeiro (a)guardando (por) angústias exemplarmente contemporâneas. No entanto, atenção: o clima de assédio, pós-#metoo, já está contido in nuce no estado de tensão que acomete a personagem de Campbell – e nós com(o) ela – ao dar de caras com o tal room mate, no mínimo, misterioso.
O storytelling faz a história nascer, crescer e “barbarizar-se” através de múltiplos estados de espírito, mas sem nunca perder a referência da tal âncora solidamente enterrada na situação precária em que vivemos.
Não posso deixar de notar quão surpreendente é o modo como Zach Cregger constrói a sua história, quer dizer, faz avançar os seus peões reservando o confronto com “a rainha” para os descabelados – descabelados de mais, diria – minutos finais. A surpresa é gerida com pinças: não se trata de um grande twist, porque é da ordem do próprio storytelling o grande efeito de terror contido ou disseminado aqui. Isto consubstancia-se na sensação de nunca estarmos sob controlo das circunstâncias que se vão desenrolando à nossa frente, até porque o filme comete a proeza fina de ir adiando, mas sem deixar de fazer avançar alguma coisa, a definição dos verdadeiros protagonistas da história – mais ou menos a meio, intuímos poder vir a ser não uma pessoa, mas a própria casa, quer dizer, o seu historial “bárbaro”. Mas a monstruosidade do filme não resulta propriamente desse passado, assombrado por práticas sórdidas, da habitação. É na verificação desta ideia que radica uma importante transformação da narrativa, uma vez que tudo ou quase tudo muda com a entrada em cena da personagem encarnada por Justin Long, actor (com uma certa tendência para o caricatural) a fazer de actor, aqui regressado ao género do terror mais de vinte anos depois de ter gozado da oportunidade de uma vida ao co-protagonizar o filme de culto, com uma recepção crítica semelhante à que está a ter The Barbarian, Jeepers Creepers (2001) de Victor Salva.
Duas questões de propriedade chocam entre si: Long é um actor smart ass, com a mania que é dono de tudo e de todos, e que pode tudo contra todos. Alguém cuja arrogância é finalmente vingada pelo maldito karma, leia-se, por uma acusação de violação por parte de uma colega de trabalho. Com a desgraça a bater-lhe à porta, decide procurar refúgio numa dessas propriedades que adquiriu às cegas e pôs a render em regime Airbnb – a propriedade do corpo violado tal qual a propriedade da terra? Este actor em muito veloz decadência mediática, financeira e moral não demorará até se aperceber da sua fraca qualidade humana, quer dizer, da imoralidade dos seus investimentos imobiliários, por um lado, e da natureza das suas “investidas” contra os mais vulneráveis, por outro. Muito por força da falta de escrúpulos desta personagem vis-à-vis o incrível assunto da maternidade entretanto exponenciado, Barbarian é um exemplar de terror alegórico ou satírico subjacente (escondido como uma realidade underground) ao filme de cativeiro e horrífico mais tradicional, neste particular, não muito distante de experiências como The Descent (A Descida, 2005) ou mesmo The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974).
É dessa maneira de ser – de um certo ethos ou falta dele – que a narrativa se desdobra e a experiência se torna cada vez mais complexa – o fim do filme, talvez cedendo a um grotesco excessivamente auto-complacente, celebra a boa velha fórmula da “final girl” num tom mais cómico do que horrífico. Mas, até chegarmos aí, passamos as passas do Algarve, tentando localizar os principais elementos da narrativa ou as linhas com que esta se cose. Reconstituindo todo este elaborado trajecto de pára-arranca e ziguezagues, verificamos como o storytelling fez a história nascer, crescer e “barbarizar-se” através de múltiplos estados de espírito, mas sem nunca perder a referência da tal âncora solidamente enterrada na situação precária em que vivemos, ou melhor, sem nunca cortar o cordão umbilical que liga este filme aos reinantes modos de estar, ser e vender que tanto nos subjugam e escravizam. E se, no fundo, no fundo, falo em “economia”, faço-o no sentido, afinal, mais profundo da palavra, proveniente do grego oikonomia, que significa “administração do lar ou da casa”. Barbarism begins at home, já cantava alguém.
★★★☆☆