Uma das imagens que ficam impressas de Manbiki kazoku (Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, 2018) é a forma como Koreeda filmava os espaços da casa. A proximidade dos membros da improvável família de pequenos criminosos ia ajudando a compor – através dessa forma cinematográfica – um calor que, minando os espaços institucionais do afecto, retraçava as ideias de família e de comunidade. Quatro anos depois, e com um “filme francês” pelo meio [La verité (A verdade, 2019)], Koreeda parece ter sentido vontade de voltar a esse seu tema: o calor produzido por formas não institucionais de família como critério para habitar os fugazes momentos de felicidade.
Ao olharmos, à primeira vista, para Beurokeo (Broker – Intermediários, 2022), julgamos estar diante do avesso do filme que venceu a Palma de Ouro de 2018. Se nesse a família acolhia uma jovem que parecia abandonada e negligenciada, neste é um par de traficantes de bébés que procura vender um, abandonado pela sua mãe numa das “baby boxes” instaladas junto a uma igreja em Busan. Bom, como é comum com Koreeda a questão não é assim tão linear. Os ditos intermediários – Sang-hyeon [o famoso ator coreano de Gisaengchung (Parasitas, 2019), Song Kang-ho] e Dong-soo (Dong-won Gang) – apesar de roubarem as bebés das caixas da igreja, revelam-se pessoas carinhosas, preocupadas com os futuros pais que, além de terem muito dinheiro para gastar, possam dar uma vida boa à criança.
Em Broker não é possível distinguir, separadamente, o papel da autoridade, da maternidade, dos que contornam e cumprem a lei, das crianças que buscam proteção e afecto, dos pais reais ou adoptivos. Como se tudo fizesse parte de uma mesma incerteza.
Esta inflexão da ideia do criminoso, e que aqui se aproxima de uma certa fantasia irreal, é trabalhada a partir da lógica do road movie. A essa busca dos melhores pais, junta-se a própria mãe da criança, que incerta sobre se pode/deve recolher o bebé, vai acompanhar os dois intermediários, e ainda uma criança que no caminho é trazida de um orfanato. Estamos pois, diante dessa família, estranhamente pouco familiar, que já havíamos visto em Manbiki kazoku. A estes podemos ainda juntar, à distância e vigiando os primeiros, duas polícias que desde o início sempre vão acompanhando a tentativa de venda ilegal do bebé.
Quer no início, em que é uma das polícias que coloca, de facto, o bébé que a mãe deixara no chão dentro da caixa, quer no final que não revelaremos, o papel da polícia é bem ilustrador dessa confusão de fronteiras no universo de Beurokeo: não é possível distinguir, separadamente, o papel da autoridade, da maternidade, dos que contornam e cumprem a lei, das crianças que buscam proteção e afecto, dos pais reais ou adoptivos. Como se tudo fizesse parte de uma mesma incerteza e onde apenas a emoção e o afecto pudessem ditar o que deve/pode ser feito. É, como dizia acima, a questão do calor.
E é talvez pelo julgamento dessa temperatura que este filme de Koreeda é necessariamente uma obra menor na sua carreira. O road movie, com as suas características episódicas, vai dissipando o calor entre as personagens: momentos há que se tornam ligeiros, como se o riso pudesse ser inimigo de uma certa concentração térmica entre as personagens. Mas seria injusto apenas culpar o humor ou a ligeireza. Também a dimensão policial do filme, quer na já referida posição societária diante do crime de tráfico, quer, sobretudo, pela busca dos culpados para um homicídio de que entretanto temos notícia, retira afecção a essa família em trânsito que Koreeda vai esculpindo.
Sabemos como Koreeda tem sido apelidado de um novo Ozu, sobretudo pelas tecituras familiares. Mas, podíamos até pensar, na sua faceta de cozinheiro de tofu (é célebre a referência do mestre japonês, na capacidade de saber fazer “apenas uma coisa bem”) que Koreeda retrai e repete, refina e recompõe a partir do mesmo. Não diria que isso não é observável, de uma certa maneira, no realizador de Beurokeo. A questão é que neste filme, precisamente esta ideia de família de facto versus família oficial nos surge primeiro como um eco, antes de qualquer voz. Não há variação sobre um mesmo. Há uma dispersão que procura, em vão, chegar a esse “mesmo”. O resultado é um “mesmo” mais pálido, mais arrefecido.
★★☆☆☆