Em 1969, o pintor Carlos Calvet foi à praia. Não estava sozinho, bem pelo contrário. Junto à rebentação violenta das ondas do Guincho, o pintor (que na época já se havia libertado do círculo surrealista e se afirmava como promotor nacional da arte pop) empunhava a sua câmara de 8mm e apontava-a para uma série de amigos que ali se tinha reunido para uma ação promovida por Noronha da Costa (também ele pintor primeiro e realizador depois), no âmbito de uma tal de Oficina Experimental de Ernesto de Sousa (que, inversamente, foi primeiro realizador e só depois artista plástico).
Lá, nesse 3 de abril ventoso, juntaram-se, além dos referidos, Melo e Castro (poeta primeiro, realizador depois), Fernando Pernes (o crítico de arte que viria a ser o primeiro diretor de Serralves), António-Pedro Vasconcelos (primeiro realizador, depois menos), Ana Hatherly (outra artista interessada em filmes), o casal Artur Rosa e Helena Almeida (cujas obras foram, igualmente, tocadas pela potência sequencial e animista do cinema), Jorge Peixinho [compositor e músico que assinaria, entre outras, a banda-sonora de Brandos Costumes (1975)], a harpista Clotilde Rosa (irmã de Artur), entre outros. Esta grupeta, com as devidas cambiantes, andava, desde meados da década a partir pianos à la John Cage e a fazer outras tropelias performativas. Esta foi mais uma.
Pois bem, a razão daquele encontro era simples: Noronha da Costa havia produzido uma peça e naquele dia os convivas combinaram que se registaria (em filme e nas memórias dos presentes) a destruição, pelo próprio, desse objeto a tiro (a vanguarda a antecipar o final da Roda da Sorte, em 1994, com Herman José em modo superlativo). Só que, como seria de esperar, a ventania do Guincho não permitiu concretizar a ação e, assim, a obra (ou não-obra) ficou incompleta. Ou talvez não. A incompletude da não-obra gerou uma outra coisa, a que o cabecilha de tudo aquilo, Ernesto de Sousa, chamou “meeting as art”.
Um dia no Guincho com Ernesto (1969), em menos de seis minutos e sem som, testemunha aquilo a que Andreia Magalhães resumiu como “os artistas reuniam-se para discutir e colaborar em projetos artísticos, onde as confluências eram mais importantes do que as marcas de autoria, e o processo mais importantes que a concretização de um objeto artístico.” A obra era o encontro; o happening (ou ação) era o pôr em marcha a amizade; a performance era o estar uns com os outros.
Serve esta referência a uma filme de artista algo obscuro (o filme, não o artista) como momento emblemático de uma certa família de filmes portugueses que se poderia denominar como “cinema da amizade”. O chavão não é muito operativo, é certo, nem muito claro, mas é mais ou menos evidente que se cola, com facilidade, às primeiras obras de cada geração de cineastas ou a filmes realizados em momentos de impasse – não se ficando necessariamente por aí, vejam-se os últimos filmes de Rita Azevedo Gomes para encontrar neles uma outra declinação desse mesmo termo.
Dom Roberto (1962) e Os Verdes Anos (1963) são, claramente, cinema da amizade (especialmente nos seus modos de produção associativa/colaborativa). Mais tarde, filmes como Nojo aos Cães (1970) e Meus Amigos (1974) retratam, em jeito especular e reflexivo, a geração de 60 e o modo como esta é representada, em particular nestes filmes, figurando como momentos de balanço, algo desiludidos, sobre as utopias de um grupo. Uma Rapariga no Verão (1986) e Corações Periféricos (1991) são também, noutra medida, formas de “cinema da amizade”. A Cara que Mereces (2004) e A Espada e a Rosa (2010) constroem-se explicitamente em torno dessa ideia, mas em circuito fechado. Mais recentemente, com a entrada do digital, os exemplos acumulam-se, especialmente ao nível das metragens curtas, a partir de uma geração de cineastas que, em tempos, apelidei de “Geração Whatever”, cujas longas-metragens de destaque são O Primeiro Verão (2014), Cavern Club (2015) e Verão Danado (2017), em modo documental A Casa e os Cães (2019) e O Cerro dos Pios (2019) e, em jeito de manifesto, Aos nossos amigos (2017). Frágil (2022) integra-se neste último grupo.
O que caracteriza cada um destes momentos é a noção de impasse. Ernesto de Sousa e Paulo Rocha percebiam que o sistema “industrial” não lhe servia (nem os acolhia – o que é importante sublinhar). Macedo e Cunha Telles sentiam-se excluídos por parte de um núcleo duro demasiado autocentrado. A geração de 90 e, em particular, o grupo da Azul/Trópico Filmes (com Vítor Gonçalves, José Bogalheiro, Ana Luísa Guimarães e Daniel Del-Negro) sonharam uma alternativa – falhada – aos dois grandes produtores do “regime democrático”, Paulo Branco e Cunha Telles. E a grupeta da O Som e a Fúria impôs-se – dessa feita de forma bem sucedida – como alternativa real a esses mesmos dois produtores, especialmente no momento em que o primeiro perdia a galinha dos ovos de ouro (Manoel de Oliveira) e o segundo perdia as “produções executivas” francesas.
O caso da Terratreme é muito particular e prende-se com o renascimento do documentarismo português na sequência dos vários ateliês promovidos pela Fundação Gulbenkian nos finais dos anos 90 e inícios do novo milénio. Sendo que a Terratreme é a última grande casa de produção de cinema, antes da atual fragmentação total. Só que, ao contrário do que seria de supor, a fragmentação contemporânea das estruturas de produção de cinema em Portugal teve um efeito de atomização, com pequenas produtoras construídas em torno de um ou dois realizadores com grandes currículos (até certo ponto a O Som e a Fúria, em volta de Gomes, a Optec em redor de Costa, a Ar de Filmes em torno de Botelho, a Zulfilmes, a defunta Black Maria, a Fado Filmes, a Rosa Filmes numa versão raquítica, etc.) e pouco interessadas ou pouco aptas (financeira e logisticamente) a trabalhar com jovens cineastas sem o respaldo de um financiamento.
A geração de João Salaviza, Carlos Conceição, Ico Costa e Jorge Jácome (só para destacar os nomes mais bem sucedidos) foi a última, dos cineastas portugueses saídos do Conservatório de Cinema, que ainda encontrou uma brecha no sistema de produção que lhes permitiu (de modos muito distintos) ter um percurso sustentado. A partir daí, que é como quem diz, a partir do início da década dos 2010, o percurso dos jovens realizadores passou a estar fortemente dependente da sorte de uma seleção num festival internacional de classe A – vejam-se os casos de Leonor Teles ou David Pinheiro Vicente. Todos os outros, ou estagnaram num limbo de concursos inconsequentes ou se renderam aos encantos financeiros da publicidade e da produção de conteúdos, ou encontraram financiamento em circuitos artísticos alternativos (a música, a dança, a arte contemporânea), ou enveredaram por uma carreira académica ou, contra tudo e contra todos, lançaram-se, sem pensar muito, na autoprodução.
A atitude de Adriano Mendes, Gonçalo Soares, Pedro Cabeleira, Miguel de Jesus e da “trupe A Casa e os Cães” (Madalena Fragoso, Margarida Meneses, Flávio Gonçalves, Rúben Gonçalves, Ana Mariz, Rui Esperança, etc.), a que se juntam Afonso Mota e João Eça, é uma afirmação de existência – apesar dos condicionalismo – e uma afirmação de despertença. Cada filme que realizam sem quaisquer (ou quase) apoios é um ato político onde se afirma a utopia de que a amizade enquanto sistema de produção, não sendo uma alternativa, é uma forma de contraposição a um sistema propenso ao acantonamento. [Nota 1: tenho-me referido, essencialmente, ao cinema de ficção por ser este aquele que, pelas suas dificuldades operacionais, mais depende de um sistema de produção colaborativa. Vários documentaristas e realizadores de obras híbridas têm trabalhado em quase isolamento, com equipas mínimas ou inexistentes, e independentemente da qualidade desses filmes, dificilmente poderão ser inscritos nesta vaga do “cinema da amizade”.]
Não é pois meramente casuístico que o trabalho de Calvet tenha sido desenvolvido em suporte dito amador, e que o circuito de apresentação desse filme fosse o das galerias e museus. Com a sua pequena e modesta câmara de 8mm, Carlos Calvet antecipava, no gesto, o que as mais recentes gerações fazem com o cinema digital. Mas, talvez o que seja mais surpreendente é o modo como estes filmes, feitos no espírito da amizade, sejam também eles sobre a amizade enquanto tema [do mesmo modo que só o coletivismo da Terratreme poderia gerar um filme como A Fábrica do Nada (2017)].
Ao contrário de outros filmes (noutras décadas) que se construíram no seio de uma partilha entre amigos, mas que, ainda assim, traduziam uma visão autoral circunscrita em torno da figura do realizador, muitos destes filmes mais recentes são, de forma ostensiva, filmes de um coletivo. Embora assinados, é muito claro que neles a circulação das várias funções que cada um ocupa traduz uma ideia de obra única e verdadeiramente geracional, que nunca (estou em crer) se tinha produzido no contexto do cinema português. Mais ainda quando são os próprios que ressurgem nos filmes uns dos outros, se citam entre si, ecoam temas e lugares, ou respondem a uns filmes com outros filmes – penso, naturalmente em curtas como Miragem, Meus Putos (2017), Poder Fantasma (2019), Os Inúteis (2019), Errar a Noite (2020), Silvestre (2021) (e, já noutros circuitos, o mesmo se passa com Marcelo Tavares, Clara Jost e Helena Estrela, ou entre Ricardo Branco, Joana Sousa, Alexander David, Tiago Siopa – estando, certamente, a faltar-me muitos nomes…).
Em conclusão, parece haver uma dinâmica menos competitiva nas novas gerações de cineastas portugueses, destacando-se a força colaborativa do grupo, a interajuda e o espírito comunitário (por oposição à defesa de um ou dois nomes tutelares, como foi sendo costumeiro nas gerações precedentes – mas talvez esta perceção seja só falta de distância histórica… muito provavelmente, daqui a uma meia dúzia de anos, este texto será, no mínimo, naïf). [Nota 2: tudo isto se refere, com raras exceções, ao ínfimo universo da Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa e às suas sucessivas turmas, mas estou em crer que é possível extrapolar o mesmo para outros contextos de ensino e outros contextos de produção, veja-se o caso de resistência dos “três camaradas” José Oliveira, Marta Ramos e Mário Fernandes, cujo trabalho se caracteriza por uma mesma forma “amical” de trabalhar, ou, no Porto, o exemplo da Olhar de Ulisses, construída a partir de “colegas de turma” do curso da Escola das Artes da Universidade Católica.]
E, com tudo isto, ainda não falei de Frágil. É, sem qualquer sombra de dúvida, o mais divertido dos filmes desta vaga. Algures entre o slapstick mais pateta, o puro nonsense pastilhado e o musical chunga [onde convive o techno e o It’s Always Fair Weather (Dançando nas Nuvens, 1955)], o filme consiste numa epopeica jornada de três dias (sem três noites) de um rapaz que só quer ir sair para o “club” e que, pelos mais variados estupefacientes, nunca o chega a conseguir.
O esquema narrativo é simples e até bastante clássico (três dias, três atos – conhecimento, viagem, transformação e “regresso a casa”), mas tudo está lá, afinal, para suster a torrente tresloucada de ideias, gags textuais, visuais e sonoros, piadas privadas, referências obscuras, piscadelas à cultura pop e à cultura ”alterna”, cameos mais ou menos locais, autocitações, meta-reflexões, testemunhos da rodagem, improvisos, acidentes, descobertas e demais brincadeiras, naquilo que é a única forma de retratar a contemporaneidade: vê-la através da sua multiplicidade, tão barroca quanto lúdica. E esse é o paradoxo mais encantador de Frágil, é sobre a certeza granítica e helénica da “jornada do herói” – essa estrutura “cis hetero masculina branca e conservadora” – que o filme se abre à diversidade, transformando a personagem de Miguel num veículo para “todxs xs Outrxs”.
Esta operacionalização da figura do herói e a debilitação da sua jornada, transformada numa deambulação inebriada pela cidade de Lisboa, converte o classicismo da narrativa numa forma subversiva. O que daqui resulta é a transformação de Miguel (o “herói”) numa espécie de puro vínculo, elo de ligação ou figura de afeção, uma vez que ele só é na medida daqueles com que se cruza, os amigos. Miguel materializa a amizade, mais do que meramente a simbolizar. Nesse sentido, ele representa – no limite – o próprio filme: é por ele e para ele que todos ali estão, isto é, é pela amizade.
Tanta conversa para concluir que Frágil, e toda a sua inscrição mediática (recorde-se a performance que aconteceu na estreia nacional do filme no IndieLisboa), não é apenas o sintoma de uma contexto de ensino, produção e distribuição anquilosado, é já uma alternativa – mesmo se utópica. Essa é a sua grande força, a consciência de que o seu processo de produção é já, em si, um retrato geracional. E, mais do que isso, Frágil é, no seu centro, uma afirmação da amizade como sistema alternativo de produção, de vivência e de criação. Ainda é preciso andar a partir pianos para se apreciar um piquenique entre amigos no Guincho.
★★★★☆