C’est enfermé dans sa solitude que l’être de passion prepare ses explosions et ses exploits. Et tous les espaces de nos solitudes passées, les espaces où nous avons souffert de la solitude, désiré la solitude, joui de la solitude, compromis la solitude sont en nous ineffaçables. Et très précisément, l’être ne veut pas les effacer. Il sait d’instinct que ces espaces de sa solitude sont constitutifs. Même lorsque ces espaces sont à jamais rayés du présent, étrangers désormais à toutes les promesses d’avenir, (…) on y retourne dans les songes de la nuit.
Gaston Bachelard, La Poétique de l’espace, 1957
Em três curtas-metragens – Saute ma ville (1968), La Chambre (1972) e Portrait d’une paresseuse (1986) –, a cineasta belga Chantal Akerman abre ao espectador as portas da(s) sua(s) casa(s) – da sua alma? – e experimenta várias declinações do autorretrato cinematográfico, oscilando entre ficção e documentário, movimento e imobilidade, pulsões de vida e de morte – precisamente, os pólos magnéticos que definem a força do seu cinema desde o final dos anos 60. Instalando a câmara de filmar no interior de alguns dos apartamentos onde viveu (dispositivo de mise en scène minimalista a que vários críticos viriam a chamar de “chambre Akerman“, num duplo trocadilho entre o cenário íntimo dos filmes e a camera obscura na origem do cinema), Chantal Akerman realiza aqueles que são talvez os filmes mais “habitados” pela sua presença, refletindo(-se) neles – e projetando através deles – a evolução da sua imagem enquanto mulher e da sua vocação enquanto cineasta, a ponto de ambas se tornarem indissociáveis.

Em Saute ma ville, obra inaugural de Akerman que de certo modo prefigura toda a sua filmografia (e até, alguns dirão, o desfecho que escolheu para a sua vida), realizada no rescaldo do Maio de 68 e concebida como uma homenagem trágico-cómica a Pierrot le fou (1965), de Jean-Luc Godard, assistimos a um ritual burlesco levado a cabo por uma jovem (a própria, então com 18 anos), à medida que ela instala o caos na minúscula cozinha do seu apartamento em Bruxelas (um espaço tão exíguo que só permite dois ângulos de câmara) e se prepara para “mandar tudo pelos ares”. A curta-metragem seguinte, desta vez sob a influência do estruturalismo experimental de La Région centrale (1971), de Michael Snow, consiste num longo e lento plano-sequência composto por uma série de panorâmicas circulares que descrevem o quarto nova-iorquino da cineasta, espaço tão habitado por esta quanto pelos restantes móveis, objetos e peças de fruta que o ocupam (assim o sugere a indiferença com que a câmara dá conta da presença da cineasta, deitada na cama banhada pela luz exterior, qual Olympia transformada em natureza-morta). Por fim, em Portrait d’une paresseuse, Akerman aproxima-se do humor autorreflexivo da sua conterrânea Agnès Varda, filmando a sua própria indolência face à ideia de realizar um filme sobre a preguiça, em resposta a uma encomenda para o projeto coletivo Seven Women, Seven Sins (1986).
Ao mutismo cacofónico de Saute ma ville, cuja banda sonora, isenta de qualquer forma de discurso articulado (à exceção do genérico final, enunciado à maneira de um filme de Orson Welles), adquire uma certa eloquência através das cantilenas trauteadas e das ruidosas onomatopeias com que se orquestra gradualmente a explosão final, e ao suposto silêncio de La Chambre que, numa projeção em suporte analógico, se revelaria um berço embalado pelo constante crepitar da maquinaria cinematográfica, opõe-se a serenidade ligeiramente entediada da voz off de Akerman que se faz ouvir em Portrait d’une paresseuse, acompanhada ao violoncelo por Sonia Wieder-Atherton, companheira da cineasta. Juntas, estas três curtas-metragens arquitetam a casa-retrato de Akerman, dando particular destaque às divisões da cozinha e do quarto, precisamente aquelas por norma associadas às mulheres e que, em várias ficções da cineasta, serão o palco das tragédias e das revelações vividas pelas protagonistas. Dois outros documentários – News from home (1977) e No Home Movie (2015) – vêm de certa forma completar a casa-retrato de Akerman sob o modo da ausência, convocando a figura-fantasma da mãe da cineasta no apartamento de família que aquela nunca abandonou até à sua morte, um ano e meio antes da filha.

Akerman sabe que habitar um espaço implica igualmente ser habitado/a por ele; e que de todos os espaços que ocupamos, a casa é aquele que mais se nos cola à pele, sobretudo se somos uma mulher numa sociedade patriarcal. Akerman sabe que a casa é o nosso “canto no mundo”, como escreveu o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard: modelo reduzido do Universo feito à medida do ser humano, por vezes um ninho ou um porto-seguro de onde podemos observar ou sonhar o mundo exterior, outras vezes – e aqui reside a principal diferença entre as visões de Akerman e do poeta –, um espaço de reclusão e de alienação que reproduz as dinâmicas de poder e a ordem social e económica vigentes. A casa é, também, palco: de tarefas e de hábitos repetidos dia após dia, como rituais onde cada um(a) desempenha o papel que lhe é atribuído, com maior ou menor respeito pelo guião ou pela partitura de ações quotidianas previamente coreografadas. E a casa é corpo: carapaça ou concha que nos acolhe, nos contém, nos molda, que por vezes nos impede de crescer para além das quatro paredes que nos rodeiam, e outras vezes nos impele para fora de nós mesmos.
Se o espaço fornece “um instrumento de análise para a alma humana”, como afirma Bachelard, é no espaço íntimo e protetor da casa que, segundo o autor, estão reunidas as condições favoráveis para o sonho e o devaneio, instâncias da psique que, para muitos, são um combustível para a imaginação poética e para a criação artística. Com efeito, a reflexão desenvolvida no seu livro “A Poética do Espaço” em torno dos diversos espaços de intimidade da casa – quartos, sótão, cave (e, no interior destes, os “espaços onde habitam as coisas”: gavetas, cofres, armários) – é guiada por eloquentes metáforas e imagens poéticas tiradas das obras literárias de escritores célebres: Charles Baudelaire, Rainer Maria Rilke, Edgar Allan Poe, Yvan Goll, Victor Hugo, Henri Bosco, André Breton… Uma lista de nomes exclusivamente masculinos que não permite dar conta da realidade do espaço doméstico vivido no feminino.
Do latim “domus“, do qual derivam igualmente as palavras “domicílio” e “domínio”, o termo “doméstico” parece impor-se quando se trata de pensar o espaço do lar determinado por dinâmicas de classe ou de género: note-se que Bachelard utiliza este termo apenas em três momentos do seu livro, nomeadamente quando evoca a mãe de Rilke (que desde cedo lhe terá incutido o “prazer” das lides domésticas) ou a propósito de uma criada num romance de Bosco; já a terceira evocação surge na forma de uma interrogação: “Como fazer de tais afazeres domésticos uma atividade criadora?” A resposta avançada só poderia vir de alguém – um homem – que não conhece a realidade da maior parte dos lares no final dos anos 50, numa época em que as lides da casa são ainda reservadas às mulheres, e constituem um dever ao invés de um passatempo, um instrumento de alienação ao invés de um incentivo à criação: “Desde o momento em que atribuímos um lampejo de consciência ao gesto mecânico, desde o momento em que fazemos fenomenologia limpando um móvel velho, sentimos nascer, sob o terno hábito doméstico, novas impressões. (…) Que maravilha é voltarmos a transformar-nos realmente no autor do ato mecânico!”
“Maravilha” não é o termo que utilizaria para descrever essa tomada de consciência, por vezes bem dolorosa e disruptiva; talvez seja mais ajustado falar de uma “revolução” que poderá eventualmente conduzir à emancipação do indivíduo ou, ao contrário, ao colapso do seu mundo. Será esta a “lição” de Chantal Akerman em Jeanne Dielman, 23, Quai do commerce, 1080, Bruxelas (1975), com Delphine Seyrig no papel de uma dona de casa viúva e alienada, cuja existência, rigorosamente cronometrada e vivida em “modo automático”, entre afazeres domésticos e prostituição no domicílio, será abalada por um inesperado curto-circuito na sua rotina diária: um orgasmo.
De forma semelhante, as ações que Akerman executa em cada uma das curtas-metragens que compõe a sua casa-retrato transgridem e subvertem a ordem opressiva do espaço doméstico no qual ela se espelha. Em Saute ma ville, tarefas utilitárias e aparentemente inofensivas como cozinhar uma refeição, lavar o chão ou engraxar os sapatos tornam-se pequenas paródias chaplinianas que, mais do que semear a desordem no apartamento da jovem, deixam entrever o seu caos interior e as pulsões de morte que a animam. Em La Chambre, o movimento regular da câmara cria uma certa forma de suspense em torno das aparições cíclicas da cineasta, revelando apenas breves fragmentos das suas ações: estendida na cama, ela contempla o vazio (a menos que o seu olhar intercepte a objetiva e, através dela, desafie o espectador: quem olha e quem é olhado?), contorce-se sob os lençóis (de dor? de prazer?), acaricia e come uma maçã, sem nunca deixar de encarar a objetiva de cada vez que esta a enquadra, sendo que a câmara acabará mesmo por inverter o seu movimento de rotação para lhe conceder mais tempo no ecrã. Por fim, em Portrait d’une paresseuse, Akerman filma sobretudo a sua resistência em executar as mais elementares ações quotidianas, como sair da cama, vestir-se, lavar-se, comer… (e a cineasta é a primeira a declarar que “Para fazer cinema, é preciso levantar-se”); outros gestos, como preparar um cocktail de vitaminas ou fumar um cigarro enquanto ouve o violoncelo de Sonia, levam todo o seu tempo, funcionando como langorosos pretextos para adiar os deveres da vida adulta: lavar a loiça, fazer a cama, realizar um filme.

Ao reivindicar a autoria dos gestos mecânicos que executa ou que comanda (como um movimento de câmara), e através dos quais repensa os espaços onde habita, Akerman abre novas vias para uma afirmação do corpo e do olhar femininos, a começar pelos seus, inscritos na topografia íntima dos filmes e materializados pelas diferentes estratégias de mise en scène que experimenta nos seus autorretratos. Em Saute ma ville, isso passa por uma tomada de consciência, da parte do espectador, quanto à entidade criadora por detrás do dispositivo ficcional: os últimos gestos da jovem suicidária são mostrados através de um espelho, e é como se nesse reflexo víssemos aparecer a cineasta sob a pele da personagem. Em La Chambre, Akerman procura menos pôr-se em cena do que forjar um ponto de vista feminino, pondo a experimentação formal ao serviço de uma reinvenção dos códigos visuais para figurar o prazer no cinema: assim, ao invés de satisfazer a pulsão escópica do espectador (masculino) face às aparições da figura feminina na cama, ela submete-o à longa duração do evento fílmico, não sem um pingo de provocação, ao devolver-lhe o olhar que sobre ela se deita. De forma menos hermética, o formato do autorretrato adquire finalmente uma dimensão claramente performativa em Portrait d’une paresseuse, na medida em que Akerman, ao mesmo tempo que fala diretamente para a câmara, enumerando todas as ações que devia executar, mas que tem demasiada preguiça para levar a cabo, parodia o próprio processo de criação do filme – o qual, afinal de contas, não existiria se ela não se tivesse, realmente, levantado da cama.
Sobre uma coisa Bachelard tinha razão: “É fechado na sua solidão que o ser de paixão prepara as suas explosões e as suas proezas”. Talvez Akerman nunca tenha realmente saído dessa solidão, dessa angústia herdada da sua mãe, sobrevivente de Auschwitz; talvez Akerman nunca tenha deixado de habitar a casa do passado maternal, tão capaz de a assolar quanto de a consolar. E se os espaços da solidão são constitutivos do ser e permitem acolher os seus devaneios poéticos, como pretende o filósofo, então a casa onde mora a solidão de Akerman não é outra senão o próprio cinema, e os seus filmes são simultaneamente explosões e proezas, aos quais nós, espectadores, regressamos como a um sonho que nos desperta para a nossa própria realidade.
As três curtas-metragens de Chantal Akerman Saute ma ville (1968), La Chambre (1972) e Portrait d’une paresseuse (1986) serão projetadas, no âmbito do ciclo “O que é um autorretrato?”, no Auditório da Casa do Cinema Manoel Oliveira, em Serralves, no dia 29 de Janeiro, às 17h.
[…] inicialmente publicado no site A Pala de Walsh, a 25 de janeiro de […]
[…] initialement publié en portugais sur A Pala de Walsh, le 25 janvier […]