Basta ver os primeiros minutos de Sevmek Zamani (Time to Love, 1965), de Metin Erksan, para perceber que são feitos do tecido das histórias criadas para serem contadas, na forma como atestam à compreensão do que se encontra na base do nosso ser em continuidade: amor.

Neste caso, amor platónico e o papel que a realidade propriamente dita protagoniza, ou não. Em quatro redondos planos-chave, é desde logo apresentada a natureza do seu olhar. 1. A vulnerabilidade da face do homem durante o olhar. 2. A direcção do seu olhar. 3. O olhar visto pela câmara, por cima do ombro do homem, em jeito de confirmação expositiva da acção. 4. Um alguém que vislumbra esse olhar, de fora. O filme de Erksan é, ainda antes de sabermos no que poderá vir a ser, um conto popular, daqueles que passam de boca em boca, e se vão reinventando ao longo do tempo, assim que depositam a sua fidelidade num e depois noutro narrador. Mas uma outra dimensão abre-se quando contextualizamos este filme tonto e belo, que alimenta a existência das paixões súbitas, num mundo que parece ser arbitrado pelo furacão da vida online. Mais de cinco décadas depois da sua estreia, com a curadoria virtual a desorientar e reconfigurar a própria noção de autenticidade no mundo físico, Sevmek Zamani retoma o verdadeiro caminho da imagem em movimento no que diz respeito às relações interpessoais. O cinema enquanto mecanismo de edição do olhar.
Não são as melhores histórias de amor aquelas que contamos e criamos para nós mesmos? Onde há um casal, há dois caminhares interiores na mesma direcção. E parece ser esta a equação que perdura pelo filme, a mesma que alimenta a sua tonalidade destoante.
Talvez seja por isso que a plataforma de streaming, distribuidora e exibidora Mubi o tenha escolhido para primeiro projecto de restauro digital. Um filme que, para além de ser um belo exemplo da nova onda do cinema turco por conhecer, e que dificilmente chegaria até nós de outra forma, expõe a figuração do amor na história da expressão deste. Re-olhar as imagens monocromáticas de Erksan agora, afinadas e tão saturadas, empurradas ao seu extremo, alerta-nos para um abrandar. Tal como as ilhas onde a história decorre – transcultural, no seu combate pelas convenções e percepções –, estas imagens fazem-se sentir demasiadamente, depois de tanto tempo presas dentro da liberdade do cinema de autor por distribuir. Pensar nisso e no papel que as redes sociais, por exemplo, têm tido enquanto instrumentos (ou serão armas?) no desenvolvimento das relações humanas é um bom ponto de partida para um respirar diferente, ao mesmo tempo arcaico e moderno, dentro de uma discussão que contempla a plasticina do olhar no cinema no que ao amor diz respeito.
Mas já me estou a adiantar. Melhor começar pelo início. Um pintor, Halil (Musfik Kenter), apaixona-se pelo retrato de uma mulher, Meral (Sema Ozcan), enquanto pinta a mansão da família dela na ilha de Büyükada na Turquia, a maior das nove ilhas do Príncipe no mar Marmara, perto de Istambul. Um ano depois, Meral visita a ilha e encontra um homem estranho dentro da sua casa sentado numa cadeira a contemplar a fotografia na parede em frente. Meral assume rapidamente que este homem estranho, que ela nunca viu antes, e que não consegue parar de vislumbrar os contornos da sua face, a deve amar. Mas Halil rapidamente a corrige. Ao contrário do amor que este nutre pelo seu amigo, colega de profissão e confidente Mustafa (Fadil Garan), o romance desenvolvido entre ele e o retrato pertence-lhe só a ele, e não indica de todo o prenúncio de uma relação com Meral. Desde quando é que a imagem da pessoa é a pessoa? Desde quando é que o amor surge apenas de uma projecção de desejos? Poderá alguma vez a realidade de uma relação que existe no mundo físico igualar e até suplantar uma fantasia? Muitas mais questões surgem, mas Meral, protagonista dos melodramas mais acesos, não quer saber dos pormenores ou das idiossincrasias… Assim que descobre que alguém a ama com tanto ímpeto, a vida de Meral pára e torna-se uma prisão. Nunca antes ela tinha reconhecido a força da torrente da paixão. Agora não consegue deixar de saber o que sabe. Seja como for, Halil continua a rejeitar estes avanços. Perder o domínio indelével daquele amor platónico para a realidade seria o pior dos desastres.

Por caminhos insidiosos, descobri Sevmek Zamani na Nouvelle Vague de Guy Gilles – o filme enquanto poema, as imagens juntas em mosaicos rígidos, mas que se movimentam como a ondulação do mar –, especialmente porque misturada com a mesma magnificência visual de Michelangelo Antonioni e do seu tempo morto (temps morts). Sequência atrás de sequência, planeadas de forma dialéctica (fílmico-filosófica) mas sempre sem um rumo aparente em vista, as poucas personagens que habitam o filme de Erksan fazem-no sozinhas, longe do mundo que os rodeia, como se só elas habitassem a ilha. São heróis literários, evocação da pequena porção de terra rodeada por água que delimita os seus movimentos. Enquadrados e emoldurados pela câmara aquando da imensidão do isolamento e/ou enormidade da paisagem e arquitectura, Halil e Meral caminham pelo filme fora, faça chuva ou sol, de forma quase reflexiva (como se caminhassem por cima deles mesmos). Quando penso na beleza que emana de tudo o que não dizem, vem-me à cabeça a imagem mental de monumentos de bronze esculpidos, terrivelmente melancólicos, ruidosos se alguma vez falassem, sempre juntos e majestosos no mesmo enquadramento, mas longe um do outro. Os seus olhares não se cruzam e as suas mãos nunca se tocam. Também sabem da presença da câmara, e fazem um esforço para não a fitar. Preferem olhar em frente ou para o horizonte. E no entanto, ficamos com a ideia de que sabemos quem são. Mas como o poderemos se nem eles mesmos parecem saber?
Enquanto isso, e à medida que avançamos, um terceiro elemento junta-se ao casal numa tentativa de os separar e é acrescentada uma cobertura diferente ao esqueleto do filme. Este começa como que a confundir-se com uma narrativa que nunca foi: a imagem do amor. Aqui estamos nós, envoltos na mística espectral da ilha, numa cidade separada por dois continentes, de mãos dadas com estranhos e o que tinha até então começado por ser uma deambulação emocional, imperiosa porque benigna, cai na habitação do romance condenado à la William Shakespeare. Pensando bem, só o chamamento que ressoa do oud turco (espécie de bandolim) seria um indício da perda da stasis do filme para a fluidez narrativa do filme de género. Mas nem o quis considerar.
Ainda assim, as combinações da pintura de Metin Erksan, independentemente de como se unem entre si, desaguam todas no mesmo lugar, na pergunta que atemoriza o ser humano. O que é o amor afinal? Será sempre a nossa imagem de alguém, sim, mas coincidirá ela com a manifestação do corpo falante? E será que isso importa? Podemos acreditar que, como um vírus invisível, tornamo-nos presa dele e daí em frente aceitar o seu domínio. Mas Erksan parece querer chegar a um lugar com o qual até o submundo online concordaria. Não são as melhores histórias de amor aquelas que contamos e criamos para nós mesmos? De gancho afiado nessa metáfora central de viver o amor literário da imagem que se sonhou sozinho, acompanhado, a alienação que se fazia sentir nunca sai do ecrã. Onde há um casal, há dois caminhares interiores na mesma direcção. E parece ser esta a equação que perdura pelo filme, a mesma que alimenta a sua tonalidade destoante.

Até porque tudo fica por dizer em Sevmek Zamani, talvez o elemento mais encantatório do filme. A derradeira calamidade emocional surge no formato do homem que ama, e que por isso mesmo acaba num pequeno barco, acompanhado por um manequim feminino. A troca deste último pela Meral de carne e osso, e o arrepiante destino que se avizinha para ambos só vem evidenciar quanto amamos amar a imagem do amor, mais do que qualquer outra coisa. Erksan pode não ter começado aí, mas é aí que acaba. Era escusado trazer a realidade para aqui. A realidade não tem um papel neste amor e neste filme tão pessoal. Afinal nunca somos convidados a ele. Tornamo-nos nele! E é essa a história a ser contada.
Sevmek Zamani (Time to Love, 1965), de Metin Erksan, está disponível para visionamento na plataforma de streaming Mubi em nova cópia digital restaurada.