If you live in France, for instance, and you have written one good book, or painted one good picture, or directed one outstanding film fifty years ago and nothing else since, you are still recognized and honored accordingly. People take their hats off to you and call you “maître”. They do not forget. In Hollywood—in Hollywood, you’re as good as your last picture. If you didn’t have one in production within the last three months, you’re forgotten, no matter what you have achieved ere this.
— Erich von Stroheim
Que estranha obsessão é esta a da velha Hollywood pela morte? Este manto fúnebre e um perfume de ausência que cobrem muito do cinema em que o cinema se pensa a si próprio? É num funeral chuvoso que começa a ser desnovelada a história de Maria Vargas, em The Barefoot Contessa (A Condessa Descalça, 1954), sendo o filme de Joseph L. Mankiewicz em tudo idêntico a The Bad and the Beautiful (Cativos do Mal, 1952) no modo como três personagens narram em flasback a sua versão da história, o rags to riches de uma estrela do cinema. Por seu lado, Sunset Blvd. (Crepúsculo dos Deuses, 1950) ostenta igualmente a sua carga fúnebre, partindo da narração do morto na piscina (“Nobody important, really. Just a movie writer with a couple of B pictures to his credit. The poor dope. He always wanted a pool. Well, in the end he got himself a pool… only the price turned out to be a little high.”) para o funeral do macaco no andar de cima.

O peso da morte e da ausência é um traço que transitará para a não-sequela tardia de Sunset Blvd., Fedora (O Segredo de Fedora, 1978), onde a personagem que dá título ao filme organiza majestosamente o seu próprio funeral, numa obra que é tomada por uma impressão de pré-morte (ou final de carreira), um convite à reflexão sobre o fim de linha da Hollywood dos grandes estúdios e das grandes estrelas (“those days”, como se refere em alguns dos filmes acima mencionados). Aqui, morte e ausência são sinónimos, algo que parece contaminar o mundo por trás da câmara. Pensemos, por exemplo, no exílio de Greta Garbo, que mais não é do que uma morte antecipada, porque se ela vive longe das câmaras, não vive no mundo do cinema. Um rosto que continue a envelhecer longe do olhar da câmara irá conquistar o direito a uma existência própria, deixará de estar colado a uma imagem que existe para o cinema, ainda que esta possa ou não confundir-se com a actriz que lhe dá corpo. “We had faces then.” – diria Norma Desmond. Sim, mas a voz, a cor e todo o resto não libertaram a actriz do seu pacto de morte com o próprio rosto. Fedora é, acima de tudo, a obra que enterra definitivamente a velha Hollywood (“It’s a whole different business now. The kids with beards have taken over. They don’t need scripts, just give’ em a hand-held camera with a zoom lens.” diz Barry Detweiler a dada altura), preparando o terreno post mortem que viria a ser o espaço próprio para a intimidade serena e melancólica de um filme como Somewhere (Somewhere – Algures, 2010). Entre estes filmes que escolhem os berços da civilização como mantos de morte (andamos por Roma e pela Grécia), Fedora sabe levar os anacronismos e as inadequações mais longe, sendo possível avistar Gottfried John, membro da trupe Fassbinder, como motorista de Fedora, enquanto Henry Fonda encarna o papel de presidente da Academia, em deslumbramento face a um rosto quase invisível, que mais parece armadilhado para enfrentar um paparazzo.
A vida em Hollywood só pode ser vivida como um jogo de cartas, entre a sorte e o azar, a glória e a desgraça que se vão sucedendo.
Também Minnelli escolheu um cemitério como ponto de partida do flashback que é o cerne de The Bad and the Beautiful. E, como habitar Hollywood é perder-se entre o real e o faz de conta, a ponto de não poder regressar a solo firme, os que marcam presença nesse funeral do Shields-pai (um ausente que nunca toma corpo) são também eles actores, pagos pelo Shields-filho a onze dólares a cabeça (o negócio inclui também o verter de lágrimas). Carpideiras em versão sofisticada e sindicalizada, em suma.
The Bad and the Beautiful vive num limbo permanente entre amor e ódio, entre arte e fome (veja-se como a câmara deambula pela festa, entre o luxo das roupas e as conversas dos convidados, entre a grande arte e o penny pinching, para acabar num tabuleiro de sanduíches). Jonathan Shields (Kirk Douglas) odeia o seu próprio pai, mas reconhece que o nome Shields é toda a herança que lhe resta, é o último pertence que terá de guardar com todas as suas forças. E a vida em Hollywood só pode ser vivida como um jogo de cartas, entre a sorte e o azar, a glória e a desgraça que se vão sucedendo. Morrer um ano antes significaria deixar um filho milionário, um ano depois significaria deixar um estúdio para ele gerir. Mas não este ano. Este é o ano em que morrer significa deixar nada, apenas uma caneca de cerveja com uma divisa roubada ao brasão de armas de Shakespeare – Non sans droit. É essa a herança de Jonathan, o direito a ocupar o seu lugar em Hollywood. Mais uma vez, aquilo que parece haver de mais palpável, uma risível caneca, único legado do pai com existência real, poderá também não passar de um mero adereço, uma peça subtraída a um qualquer cenário.
No jogo de perder e ganhar em Hollywood, Jonathan acaba por perder, e muito, no jogo de poker que estava destinado a ganhar, mas usa a derrota para ganhar um emprego num estúdio, o emprego que irá abrir-lhe todas as portas. Esta montanha-russa entre sucesso e fracasso continua, quando na noite da preview do The doom of the cat men que o boy genius e o talentoso realizador congeminaram, esperamos o elogio rasgado no cartão do espectador, mas vemos apenas um categórico “It stinks”, para afinal descobrirmos que essa não passa de uma opinião minoritária de um – Minnelli brincando com os próprios ditames do cinema, conduzindo-nos em curvas e contracurvas de reacções.

Se a glória que aí se adivinhava acaba mesmo por concretizar-se, isso nada diz do tratamento mais ou menos impiedoso, mais ou menos realista, que Minnelli adopta na sua visão de Hollywood. Ainda que o enquadramento no tempo presente, no início e no fim do filme, esteja talhado a proporcionar uma imagem benévola de Jonathan Shields, a verdade é que o filme expõe simultaneamente a sua faceta impiedosa, nunca pedindo desculpas quanto ao seu verdadeiro carácter. Jonathan está disposto a tudo – mesmo tudo – para alcançar o resultado pretendido, o filme de qualidade que ele pretende produzir, sem que haja um “sim, mas”. As acções de Jonathan podem ser postas em causa do ponto de vista ético, mas nunca existe uma tentativa de justificá-las através de algo mais que não seja a sua busca incessante de produzir arte e atingir a perfeição – o Shields Touch. Mesmo perante aqueles que foram feridos por esse rolo compressor, o que se diz é apenas que os benefícios profissionais que colheram poderão de algum modo compensar a ferida infligida na sua vida pessoal. Ainda assim, fica claro que essas feridas não seriam uma inevitabilidade, já que o sucesso pode igualmente ser construído tendo por base a lealdade, algo que Georgia (Lana Turner) demonstra expressamente, referindo que apesar de ela ter passado de uma mera figurante com trabalho intermitente a grande estrela, o seu agente continua a ser Gus (Sammy White) – o mesmo que se comoveu quando Georgia assinou o primeiro contrato.
Para Jonathan, o cinema existe ao nível do biológico, nele se confundindo a fome e a arte, porque a sua necessidade de criar é também ela uma fome insaciável.
Essa história que fragmentariamente vai sendo construída sobre o(s) métier(s) do cinema é feita de um olhar de espelho, a câmara de Fred Amiel (Barry Sullivan) que se precipita na direcção da câmara de Minnelli para repousar no rosto da actriz ou o travelling magnífico em sentido ascendente, partindo da cena para depois fitar o produtor, o realizador, os técnicos de som e de luz, e terminar num holofote. O efeito de espelho está ainda na relação de Jonathan com Georgia, no tratamento da actriz, que passa por apaparicá-la e incentivá-la de modo a alimentar a sua autoconfiança, algo que, segundo os relatos das filmagens, mimetizará a relação do próprio Minnelli com Lana Turner, compreendendo ele que uma estrela é feita disso mesmo – não tanto a capacidade de representar, mas o dom de brilhar diante da câmara.
A relação de Georgia com a memória do pai não é muito diferente daquela que liga Jonathan ao seu próprio pai. Georgia venera o pai de forma explícita, dedicando-lhe um altar no seu apartamento miserável, ainda que simultaneamente não consiga perdoar-lhe o facto de ele ter sido um pai absolutamente ausente. É esta a nova aristocracia americana, assente na construção de uma linhagem do cinema. Os fazedores de cinema da “velha guarda”, aqueles que viviam em mansões gigantescas, reproduções de castelos europeus (“It was a great big white elephant of a place… the kind crazy movie people built in the crazy ’20s.”), não estão distantes, no entanto. São o velho Shields e o velho Lorrison, são Norma Desmond, apenas a geração anterior, mas conhecendo um fausto e uma desmesura que já nada tem a ver com a Hollywood de Jonathan e Georgia. É uma Hollywood já morta, a mãe desta Hollywood a que agora chamamos de velha.
Para Jonathan, o cinema existe ao nível do biológico, nele se confundindo a fome e a arte, porque a sua necessidade de criar é também ela uma fome insaciável, uma necessidade que se superioriza relativamente a todas as outras. Ele é a antítese de Harry Pebbel (Walter Pidgeon) sempre preocupado em poupar alguns tostões em detrimento da qualidade do produto final. Jonathan sabe quando ceder às exigências de um realizador do calibre de Henry Whitfield – esse muito hitchcockiano Leo G. Carroll, o actor que estava do outro lado da pistola que cometeu um dos mais incríveis suicídios do cinema [falamos de Spellbound (A Casa Encantada, 1945)].

Minnelli não se fica pelo lado inebriante da indústria do cinema, The Bad and the Beautiful não deixa de ilustrar o contraponto (o outro lado do espelho?) do sucesso, a vertente normalmente ausente dos retratos do “vencer em Hollywood”, que se reconduz àquilo que Shields apelida de “letdown” – o desalento, o vazio enorme que dele se apodera quando o filme está concluído, o nada que se segue à criação, quando a obra chegou ao seu momento definitivo. É aí que Jonathan se torna intolerante ao contacto humano, procura isolar-se, votando qualquer tentativa de aproximação ao desastre. Quando Georgia força o contacto, procurando partilhar com Jonathan a consagração, acaba totalmente rejeitada, seguindo-se uma das cenas mais memoráveis do filme, o abrir da ferida numa condução desvairada na estrada, muito próxima da colisão – cena, aliás, que rimará com a viagem desenfreada de Kirk Douglas e Cyd Charisse em Two Weeks in Another Town (Duas Semanas Noutra Cidade, 1962), a também quase-sequela de The Bad and the Beautiful.
O retrato que Minnelli faz de Hollywood não deixa espaço para sentimentos serenos. Tudo é arrebatado, feito de paixão e ódio. Não há outra forma de vencer. Jonathan vê mais longe do que todos aqueles que o rodeiam, toma por eles as decisões difíceis, mas é incapaz de conceber uma existência que encontre espaço para algo mais do que o fazer cinema (“Love is for the very young”, repete Georgia). O seu modus operandi produz resultados miraculosos em James Lee Bartlow (Dick Powell), mas provoca igualmente a tragédia, a morte da sua mulher Rosemary (Gloria Grahame). “I’ll tell you the truth, l missed her interruptions. Even when she’s a bother, she does it in a gay naive, Southern belle kind of a way that tickles me.” Ainda assim apetece acreditar que a força de Jonathan é parca para conseguir apagar a sereia Gloria Grahame, que ela é demasiado cativante para ser tão facilmente aniquilada – “Even when she’s a bother” –, que ela continuará a viver algures – talvez na existência tardia de sereia em Head Over Heels (1979), de Joan Micklin Silver.

“You can’t be a star in a cemetery”, diz Jonathan a Georgia, tentando forçá-la a libertar-se da sombra do pai. Mas não será Hollywood isso mesmo, o incessante reconstruir sobre cemitérios? O constante demolir de cenários, o contante refazer de histórias, as carreiras construídas à sombra de carreiras passadas? Talvez Hollywood não seja mais do que isso, um terapêutico reinventar dos mortos.
The Bad and the Beautiful, de Vincente Minnelli, é exibido na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema nos próximos dias 24 e 30 de Janeiro, às 15h30 e 19h00, respectivamente, na sala Manuel Félix Ribeiro, no âmbito do ciclo À Glória de Ghrahme, em que se homenageia Gloria Grahame (1923-1981), “uma das mais emblemáticas femme fatale do cinema dos anos 50 e do film noir americano”.