É inédito: três curtas-metragens portuguesas estão na shortlist aos Oscars. Dentro de uma semana saber-se-á se alguma conseguirá, pela primeira vez, uma nomeação. Ice Merchants (2022), de João Gonzalez, e O Homem do Lixo (2022), de Laura Gonçalves, concorrem na categoria de Melhor Curta-Metragem de Animação, ao passo que O Lobo Solitário (2021), de Filipe Melo, está na corrida para o Oscar de Melhor Curta-Metragem de “Acção Real”, que é como quem diz, “filme de ficção com actores e tal”. São três filmes muitos diferentes entre si que merecem ser vistos no grande ecrã – o que já tem vindo a ser possível no circuito dos festivais. Em jeito de antecipação, três walshianos escrevem sobre cada um dos três filmes, desejando-lhes muita sorte para o próximo dia 24 de Janeiro, dia em que será divulgada a lista final dos nomeados.
O percurso de João Gonzalez no cinema de animação tem sido exponencial (e corresponde, como poucos mais, à justa coroação do trabalho, não fosse o realizador também animador, montador, compositor das bandas sonoras e intérprete nos seus filmes). Depois de uma curta-metragem feita na ESMAD, The Voyager (2017), que correu uma série de festivais e lhe valeu vários prémios, o realizador fez, também em contexto académico, na Royal College of Art (onde foi fazer um mestrado em animação com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian), um segundo filme igualmente bem recebido, Nestor (2019). Este mais recente título, o seu terceiro, Ice Merchants (2022), que o aproxima agora da nomeação ao Oscar de melhor curta-metragem de animação, é o primeiro que realiza fora de um contexto académico (apesar do apoio) e é, de longe, o mais ambicioso (e mais apurado) dos seus três filmes. Vistos como um conjunto, é possível entendê-los como uma “trilogia do isolamento”. The Voyager trata de uma personagem ansiosa que sofre de agorafobia, vivendo aprisionado no seu apartamento, num andar bem alto de uma grande metrópole; Nestor é um navegador que vive sozinho com a sua obsessão-compulsão pelo arrumo, num barco onde o constante balançar tudo desarruma; e se em Ice Merchants a saúde mental deixa de ser o tópico central da narrativa (a não ser a ansiedade ambiental) e a ação passa a centrar-se em dois protagonistas – pai e filho – por oposição ao “herói” singular dos títulos anteriores, o isolamento permanece, retratando-se aqui uma família monoparental que vive bem alto num penhasco, longe da povoação mais próxima.
Estas pequenas alegorias do isolamento são particularmente desesperançadas, procurando cada uma delas sonhar com uma saída dessa espiral que é a rotina malsã, e acabando sempre por se confrontar com o alheamento, a perpetuação dos problemas ou a utopia oca. Esse olhar “doente” sobre o mundo traduz a visão autoral de João Gonzalez, o que contradiz em grande parte a qualidade um tanto juvenil do seu traço, especialmente no desenho de personagens. Só que essa não é a única contradição dos seus filmes, e ainda bem, porque é nelas que se encontra aquilo que eles têm de mais interessante, em especial em Ice Merchants. Sendo este seu mais recente filme uma fábula sobre o aquecimento global (o filme descreve um negócio familiar de venda de gelo, que certo dia deixa de se formar naturalmente), ele funda-se numa enorme contradição, a razão do salvamento de pai e filho prende-se, exatamente, com a causa da sua desgraça: o consumismo e o desperdício. Posto em jeito popular, ao menino e ao borracho mete o capitalismo selvagem a mão por baixo (a mesma mão que lhes torce o pescoço). O desenlace é uma total incógnita, digna de um puro surrealista, e é esse extraordinário paradoxo que é capaz de elevar o filme acima da sua tendência para o melodrama delicodoce.
Ricardo Vieira Lisboa
Um filme de animação também pode ser, apesar de não ser muito comum, um documentário, e neste caso particular, sobre a memória de uma pessoa que sobrevive através da forma como é recordado, mas também pelos vários objectos que foi recolhendo e colecionando ao longo de uma vida. O cenário de O Homem do Lixo (2022) é um almoço de família, no qual depois de a mesa estar posta e todos tomarem o seu lugar, passa-se comida, bebida e acima de tudo histórias sobre Manuel Botão, o tio da realizadora Laura Gonçalves, que aos poucos ganha contorno de figura mítica. Fisicamente ausente, já falecido, é o centro das conversas e o filme permite que volte a ganhar a vida, quando o seu retrato numa das paredes salta alegoricamente para a sala de jantar como um gigante benevolente que observa aquela reunião. Desde a sua participação na “Guerra do Ultramar”, à passagem clandestina da fronteira durante a ditadura, até à sua vida como homem do lixo em Paris que guardava objectos que outros descartavam mas onde ele encontrava valor (como um moderno “respigador”), e que depois distribuía quando regressava a Portugal, são várias as suas epopeias pessoais retratadas com a narração dos seus familiares como recordações melancólicas, através do uso engenhoso de depoimentos e excertos sonoros de entrevistas aos familiares, gravadas pela realizadora. Essas aventuras, que à medida que são contadas parecem quase fábulas e parte de um imaginário comum, traduzem-se e ganham forma tal como o retrato de Botão, num filme visualmente arrebatador, numa espécie de carrossel de imagens sempre em movimento e de linhas que desenham um caminho próprio, como uma vertigem continuada, que acima de tudo fazem jus à forma sentida e carinhosa como Botão é continuamente recordado pelos que lhe eram próximos.
João Araújo
A boa lição hitchcockiana dita que umas vezes o realizador detém a informação capital da intriga [como é o caso da morte precoce de Vivian Leigh em Psycho (Psico, 1960)], outra vezes essa informação é dada numa bandeja ao espectador e temos de ser nós a lidar com as circunstâncias, quer dizer, a nos “desemerdarmos” moralmente [é o caso de Rope (A Corda, 1948), por exemplo, em que é a personagem que está às escuras sobre a presença de um cadáver escondido no baú no décor onde o filme se desenrola, em falso continuum]. O que se passa neste O Lobo Solitário é um compromisso entre estas duas perspectivas: é verdade que não sabemos ao certo o que se vai passar, que “bomba” vai rebentar, mas há um ambiente de tensão que não anuncia nada de bom desde o primeiro instante. Sabemos que o realizador tem uma carta na manga, mesmo que o dispositivo em continuum, à maneira do citado Rope, seja discreto, quase invisível, permitindo a imersão nesta história contaminada ab initio por um certo clima condenatório (primeiro, é o tédio ou o profissionalismo cansado do locutor de rádio a ouvir as opiniões pueris dos seus ouvintes “habituais”, depois, é a interrupção abrupta e violenta dessa rotina, que o expõe publicamente a um embaraço sem nome). A câmara gira, acometida por uma náusea premonitória do horror que se avizinha, “na próxima chamada”. Não é uma “chamada para a morte”, pior que isso, é uma chamada para a morte da imagem pública do tão simpático e entediado/entediante locutor de rádio (interpretação soberba, e exigentíssima, de um dos actores mais subestimados do nosso cinema, Adriano Luz). A “bomba” que rebenta resulta na dolorosa queda de uma máscara – é lidar.
Luís Mendonça
Hoje, dia 16 de Janeiro, no Teatro Maria Matos, pelas 21h00, são exibidas as três curtas portuguesas na shortlist para os Oscars de 2023, Ice Merchants, O Homem do Lixo e O Lobo Solitário. A sessão é de entrada livre e contará com uma conversa com os três realizadores e respetivos produtores, moderada por Nuno Markl.